Série personagens fictícios
capítulo 4: dancing along the edge
Menina tímida, quieta, Lídia sempre despertou a preocupação de seu pai. Este, nos poucos momentos em que podia ficar em casa, gostava de ir ao quarto dela e conversar um pouco. Fazer perguntas simples, saber como estava a vida, a escola, os amigos. Sentia-se um pouco intruso, já que não passava muito tempo com ela e não a conhecia profundamente. Mas, mesmo assim, insistia em fazer-lha agrados, sendo o mais natural possível, para não parecer que a estivesse comprando com migalhas.
A garota entendia o pai. Sabia de suas responsabilidades e tentava agir com naturalidade quando ele se aproximava. Para falar a verdade, encarava esses momentos como se fossem um refúgio do cotidiano opressor com a sua mãe. Via nele uma salvação, oxigênio para continuar.
Há pouco tempo, Lídia se tornara ainda mais fechada. Por iniciativa da mãe, a filha começou a se tratar com um psiquiatra amigo da família materna, que logo receitou alguns medicamentos que tiravam toda a pouca iniciativa da menina. A pequena fazia o caminho para a escola, voltava e não conseguia permanecer acordada por muito tempo em casa. Era deitar no sofá da sala que caia em sono.
E ela gostava de dormir. Assim, raciocinava, permanecia mais tempo longe de tudo. Todos os dias de manhã, quando o despertador insistia em tocar, Lídia tinha que pensar no pai para poder se levantar. Se não, dormia para sempre. Hibernaria e mesmo no maior verão possível continuaria dormindo. Por isso, focava o pensamento às 7h no pai. Não queria deixá-lo triste, o pai não merecia. Lembrava dele sentado na beira da cama, acariciando sua cabecinha, seus cabelos macios, dando um beijo antes de se retirar. Ela não teria coragem de desapontá-lo.
A aversão que Lídia sentia pela mãe piorou um determinado dia. Era de tarde, a filha contou à mãe que iria ao cinema. Mas a sessão estava lotada e, por isso, teve que voltar antes do previsto para casa. Pegou o elevador até o andar da família, caminhou vagarosamente pelo corredor longo, frio e mal-iluminado, escutando suas passadas, como se andasse em câmera-lenta. Olhava para baixo, para os próprios pés, balançava as chaves procurando a correta para abrir a porta. Chegou em frente de casa, girou a maçaneta e encontrou a mãe parada com o olhar assustado junto de um homem que nunca vira antes. Lídia não reparou no sujeito além de perceber que era grisalho. A mãe ficou estática olhando a menina, enquanto ambas empalideciam em conjunto. Se não fosse esse olhar de espanto a garota nunca desconfiaria de nada. Mas bastou que elas ficassem quietas por milésimos de segundos para Lídia entender tudo.
O pequeno coração disparou e o barulho da sístole e diástole a ensurdeceu. O grisalho se despediu cautelosamente da mãe e Lídia não tirou os olhos da mãe. Pareciam conectadas e enraizadas ali, a mãe com um olhar de raiva gelada, uma combustão fria, transferindo toda a culpa para a filha, estática, perdida com pensamentos desconexos, confusos, que não formavam nenhuma frase, não emitiam nenhuma ordem. O homem foi embora, Lídia entrou, a mãe fechou a porta.
Agora, hoje ou ontem, Lídia decidiu não tomar o remédio e teve a coragem que sempre duvidou ter. Deixou um recado para o pai na escrivaninha pedindo perdão, mas explicando-lhe que não era capaz, que não agüentava mais, era o seu limite. E foi caminhar no umbral da varanda.
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