Série personagens fictícios
capítulo 5: o chaveiro que amava os russos
Fui morar sozinho em 2002, num minúsculo conjugado em um prédio que tinha mais de quarenta por andar. O meu era o 316. O pequeno tamanho do imóvel não me incomodava, já que funcionava como um imenso quarto. Inclusive foi o maior dormitório que já tive e, provavelmente, o maior que terei.
Entre vários problemas dessa época, havia a solidão. Na prática, morar só, me trazia a responsabilidade de resolver todas as pequenezas da casa. Se, por exemplo, o ventilador parava de funcionar, era eu que tinha que arranjar alguém para trocar a fiação. Eu, recém-chegado, pela primeira vez longe da família e mal saído das fraldas, devia personificar o homem seguro que nunca fui. A vergonha é minha companheira desde pequeno.
Nessa época, com o intuito de me proteger do mundo, erigi um muro que me separava das outras pessoas. Culpava-os por não me entender e discriminava quem não fosse parecido comigo. O isolamento era constante. Ficava dias sem abrir a boca, sem conversar com ninguém. Qual um velho ermitão morador de áreas inabitáveis praguejava ante a ignorância alheia e me refugiava dentro de livros e escrevendo fanaticamente no meu caderno pessoal.
Um dia tive que fazer uma cópia das chaves da porta. Mas, era horrível ter que interagir com pessoas. Ouvi-las, prestar a atenção em assuntos pouquíssimos importantes para mim, me magoava porque ia de encontro com um plano pré-determinado de não contaminação com situaçõs e pessoas que considerava supérfluas. Não enxergava que poderia haver algo de bom no mundo longe da minha estante, não mesmo. Contudo, como dito acima, não tinha a quem recorrer e saí à rua procurando um desses chaveiros ordinários.
Planejara todo o diálogo para evitar surpresas. Entregaria a chave e diria: "bom dia. Por favor, o senhor poderia me informar quanto custa para fazer uma cópia dessa chave?", ele me responderia o preço e estávamos combinados. Lembro-me que vestia um moleton velho, uma pequena pelugem cobria meu rosto e calçava chinelos de dedos. Nunca me importei com a aparência. Não vejo necessidade em vestir-me com nada caro ou na moda. Considero isso o cúmulo da superficialidade.
A uma quadra da minha casa, encontro uma portinha, ao lado de um boteco malcheiroso que me fez parar: era o chaveiro. Acreditava - e ainda tenho um pouco dessa fé - que o ser humano mais sincero está nos lugares mais fétidos e podres. Eles não precisam aparentar nada, porque estão no limiar da humanidade. Ali, não há máscaras, todos são sinceros, verdadeiros, se apresentam sem censuras.
Em questão de segundos sai um sujeito de dentro do bar ainda mais maltrapilho que eu, as pernas sujas de graxa, os cabelos ensebados, a barba enorme, as roupas com buracos ou remendadas. Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele falou num tom extremamente calmo e educado: "pois não?". Entreguei a chave e fiz a pergunta formulada, não com a segurança que tinha sido imaginada, mas entre gagueiras e sobressaltos na frase. O resto continuou como planejado e o silêncio, em poucos instantes, já imperava. Como no meu sonho.
Só que, logo após ficarmos quietos, ele me perguntou: "você gosta dos russos?". Pego assim de supetão, não soube a que russos ele se referia. "Tolstói, Dostoiéviski, Tchecov", ele me ilustra. Não, nunca tinha lido nada deles, não conhecia nada da obra, era um completo ignorante do assunto. "Eu gosto muito dos russos, eles conseguem sintetizar o que há de mais emotivo entre os homens, os seus sentimentos mais primários", eu em silêncio, escutava aquela aula sobre a literatura da Rússia, invejando o seu autor porque ele era uma espécie de arquétipo do meu ideal naquela época. Um homem que ignora a vaidade e alimenta apenas o espírito. Queria ser esse tipo de homem. Se ficasse isolado do mundo, que importa?, teria sempre os livros.
Em questão de minutos, o trabalho dele acabou e ele me pergunta quem eu gostava de ler. Não soube responder porque não tinha, como não tenho, uma nacionalidade preferida. Tenho uns autores, mas não obedecem a uma ordem. Talvez, hoje, dissesse que gosto daqueles que priorizam a trama, em detrimento dos personagens, ou seja exatamente contrário a maior característica dos conhecidos eslavos, mas os meus preferidos não obedecem a nenhum padrão geográfico, podendo ser de qualquer origem, inclusive russos.
Agradeci e fui-me embora, embasbacado. De certa forma, aquele homem aumentou a minha crença na vida, demonstrando que sempre há como se surpreender, mesmo quando você não alimenta mais nenhuma esperança. E, principalmente, tendo paciência comigo, com aquele garoto que não conhecia nenhum dos russos e, mesmo assim, insistia em olhar a humanidade de cima para baixo. Foi uma lição de humildade inesquecível.
Essa semana, voltei lá porque estava perto e precisava copiar outras chaves. Mas não encontrei o chaveiro que amava os russos.
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