Não creio em Deus, mas acredito que exista uma posição de Deus. Não um lugar, um espaço físico reservado para um ser de barba branca que tudo sabe, tudo vê e tudo pode. Mas uma postura que seria negada aos homens e reservada apenas para esse Deus-que-não-existe. Uma forma de comportamento, um jeito de ser que todas as vezes que o homem tenta repetir se dá mal. Uma prepotência, mas uma prepotência não dada aos pobres mortais, uma prepotência em que a potência aí é de uma voltagem maior que o homem aguentaria. E o homem sempre se queima feio.
A história está cheia de exemplos desse tipo. Pensemos em Prometeu, para começar. Tentou roubar o fogo dos deuses, para de alguma maneira ter o mesmo poder deles, e foi condenado por esses mesmos deuses, vingativos, à eternidade a ter o fígado comido pelos abutres durante o dia, enquanto de noite o órgão se regeneraria - fazendo com que o martírio jamais acabasse. Mas não aprendemos com Prometeu. Pense em César, que ainda tentava segurar o ímpeto de ter dominado Europa, norte da África e parte da Ásia com a ajuda do ajudante, mas que acabou morto por um amigo, por exatamente ter concentrado demais o poder em si mesmo. Ou, mais recentemente, me lembrei agora, de "Scarface". Ou, mais próximo da gente, mesmo, de Eike.
Eu já escrevi sobre um desses momentos "divinos" de um dos grandes homens que já dividiram a humanidade conosco. Nada me tira da cabeça que Nietzsche entrou em colapso quando, já debilitado, percebeu que ele não era o Übermensch, o tal do além-do-homem, muitas vezes traduzido por super-homem, que ele pensava ser. Como se percebesse que sua proposta de comportamento ético/estético não era atendido por si mesmo. Que o Zaratustra não pregava nem mesmo para o seu criador.
Não foi o único, porém, a ter tido uma pane após um momento de grande estresse. Algo parecido - menos dramático, como aliás tudo em sua vida, mas certamente mais épico - aconteceu com Heidegger. É curioso como a história vai envolvendo o filósofo de Meßkirch, elevando-o para fora da realidade, até que ele simplesmente despenca. E o som do corpo dele no chão é parecido com aquele de Hiroshima ou Nagasaki. Quanto mais alto estamos, maior é a queda.
Em 1927, Heidegger publica sua obra mais famosa: Ser e tempo. Foi feita às pressas, para que ele assumisse a cátedra que era de Husserl, seu mais famoso professor, em Freiburg. Sua proposta era investigar o "ser", em vez de se ater apenas aos "entes", onde, ele reclamava, toda a tradição filosófica tinha se mantido. Em outras palavras, ele queria responder à famosa pergunta: o que nós somos? O que está lá em nosso cerne? O que é a nossa verdade mais verdadeira? Qual é o chão que todos nós pisamos?
Queria responder a isso, mas sem precisar usar de subterfúgios, de qualquer outra explicação que não fosse apenas o ato de "ser" mesmo. Não queria dizer que somos isso ou aquilo, porque isso seria resumir demais o que seria o ser. Chegou a sugerir um bom caminho de resposta, quando acrescentou o conceito de temporalidade, lembrando que somos a cada momento algo diferente. Mas não se deu por satisfeito. Entregou a obra incompleta, segundo o seu planejamento, percebendo que tinha, de alguma maneira estranha para uma obra que veio a fazer tanto sucesso, fracassado.
Mas antes mesmo da publicação do livro e de ele assumir a cátedra que fora de Husserl, Heidegger já era chamado de "O rei oculto" da filosofia, conforme lembrou Hannah Arendt, então sua discípula e amante, no texto em comemoração aos 80 anos de Heidegger.
For Heidegger’s “fame” predates by about eight years the publication of Sein und Zeit (Being and Time) in 1927; indeed it is open to question whether the unusual success of this book—not just the immediate impact it had inside and outside the academic world but also its extraordinarily lasting influence, with which few of the century’s publications can compare—would have been possible if it had not been preceded by the teacher’s reputation among the students, in whose opinion, at any rate, the book’s success merely confirmed what they had known for many years.Logo após a publicação do livro, sua fama cresce enormemente, como se lê aí em cima. Ele consegue a cátedra e, pouquíssimos anos depois, num período que para sempre vai manchar a sua reputação, ele se associa ao partido Nacional-Socialista. Num lance para lá de estranho, ele aceita virar reitor da mesma universidade - cargo que ocupa por pouco tempo, mas cujo período o persegue até hoje.
Muito já foi escrito sobre essa passagem, esse deslumbre. Não sem receio de resumir demais, sugiro que ele tenha entrado para o partido nazista para tentar "salvar" a Alemanha, do que ele chamava "bagunça" que o país tinha se enfiado após a 1a guerra. E tenha saído do partido por conta de uma espécie de decepção com o ritmo lento dessa salvação. Ele queria mais organização, mais militarização da vida cotidiana, mais ordem. Mas nem mesmo o nazismo conseguiu transformar, na velocidade que ele queria, a mentalidade da nação.
Após sair da reitoria, ele começa a ser perseguido. De um dos orgulhos do partido, vira vidraça. Resolve, então, salvar Nietzsche dos nazistas, com as famosas aulas sobre o conterrâneo - e para sempre vai usar esse argumento a seu favor na hora de se defender. Logo depois começa a guerra.
Sem ter tido acesso aos cadernos negros, só posso imaginar o que se passou na cabeça dele. O editor deles, que aliás vem num evento em São Paulo mês que vem, assegura que "pela primeira vez, é preciso dizer que Heidegger não só se engajou pelo nacional-socialismo, o levou muito a sério e durante um certo período o acompanhou com simpatia – para depois criticá-lo severamente; além disso, vemos agora que ele também abriu seu pensamento filosófico ao antissemitismo".
Dando uma bisbilhotada no famoso "Beiträge...", uma coleção de textos filosóficos de fôlego curto escritos um pouco antes da guerra, dá para ver que uma mudança estava em curso. Marco Antonio Casanova - autor da tradução em português - explica como tal obra é a demonstração de que já, então, havia uma crítica ao trabalho anterior de Heidegger. Estava sinalizada uma mudança profunda de sua perspectiva. Mas ainda não totalmente.
Logo após o fim da guerra, ele tem que passar pelo comitê de desnazificação, é criticado fortemente pelo seu então amigo-do-peito Karl Jaspers, é impedido de dar aulas até 1950 e acontece, enfim, a queda física: Heidegger tem um colapso nervoso em 1946. Menos dramático que Nietzsche, com certeza, mas também certamente mais épico.
Quando volta a produzir, Heidegger é outro. No fim do mesmo ano, escreve uma carta, a tão citada "Carta sobre o humanismo", para Jean Beaufret, talvez o seu maior entusiasta na França, onde já demonstra com todas as letras que houve uma mudança. Tal mudança foi apelidada por ele mesmo como "Kehre", ou, como ficou conhecida em português, "virada", ou "viragem". Já não tenta observar a totalidade do ser, como se soubesse que essa posição não pertencesse aos homens, mas somente ao divino. Atem-se, desde então até a sua morte, aos entes. Pelo restante da sua vida, vai falar sobre a questão da tecnociência, da linguagem. Vai revisitar Kant, Hegel, Nietzsche rapidamente, os pensadores originais, como Parmênides e Heráclito. Nunca mais escreve um texto com tanto fôlego como Ser e tempo. Transforma-se em mais um no meio do mundo.
Curioso como até mesmo as chamadas mais brilhantes mentes da humanidade não conseguem fugir de um dos sentimentos mais comuns dos seres humanos: a vaidade. Não espanta, então, que Milton, o diabo interpretado pelo mesmo Al Pacino que imortalizou Scarface citado lá em cima, o considere seu pecado favorito.
Na verdade, ainda em tempo, nada contra a vaidade. Mesmo. O problema é a posição divina. Se colocar acima dos outros, numa posição de superioridade, de pensar maior ou melhor. Mesmo Heidegger ou Nietzsche, ou qualquer grande homem que fundou escolas, academias, religiões, nunca foram melhores ou essencialmente diferentes que qualquer outro sujeito que andou por estas terras. Todos somos humanos, demasiadamente humanos.
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