terça-feira, 16 de dezembro de 2014

'Especulações em torno da palavra homem' - Carlos Drummond de Andrade


Mas que coisa é homem,
que há sob o nome:
uma geografia?


um ser metafísico?
uma fábula sem
signo que a desmonte?


Como pode o homem
sentir-se a si mesmo,
quando o mundo some?


Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome?


E não perde o nome
e o sal que ele come
nada lhe acrescenta


nem lhe subtrai
da doação do pai?
Como se faz um homem?


Apenas deitar,
copular, à espera
de que do abdômen


brote a flor do homem?
Como se fazer
a si mesmo, antes


de fazer o homem?
Fabricar o pai
e o pai e outro pai


e um pai mais remoto
que o primeiro homem?
Quanto vale o homem?


Menos, mais que o peso?
Hoje mais que ontem?
Vale menos, velho?


Vale menos morto?
Menos um que outro,
se o valor do homem


é medida de homem?
Como morre o homem,
como começa a?


Sua morte é fome
que a si mesma come?
Morre a cada passo?


Quando dorme, morre?
Quando morre, morre?
A morte do homem


consemelha a goma
que ele masca, ponche
que ele sorve, sono


que ele brinca, incerto
de estar perto, longe?
Morre, sonha o homem?


Por que morre o homem?
Campeia outra forma
de existir sem vida?


Fareja outra vida
não já repetida,
em doido horizonte?


Indaga outro homem?
Por que morte e homem
andam de mãos dadas


e são tão engraçadas
as horas do homem?
mas que coisa é homem?


Tem medo de morte,
mata-se, sem medo?
Ou medo é que o mata


com punhal de prata,
laço de gravata,
pulo sobre a ponte?


Por que vive o homem?
Quem o força a isso,
prisioneiro insonte?


Como vive o homem,
se é certo que vive?
Que oculta na fronte?


E por que não conta
seu todo segredo
mesmo em tom esconso?


Por que mente o homem?
mente mente mente
desesperadamente?


Por que não se cala,
se a mentira fala,
em tudo que sente?


Por que chora o homem?
Que choro compensa
o mal de ser homem?


Mas que dor é homem?
Homem como pode
descobrir que dói?


Há alma no homem?
E quem pôs na alma
algo que a destrói?

Como sabe o homem
o que é sua alma
e o que é alma anônima?


Para que serve o homem?
para estrumar flores,
para tecer contos?


Para servir o homem?
Para criar Deus?
Sabe Deus do homem?


E sabe o demônio?
Como quer o homem
ser destino, fonte?


Que milagre é o homem?
Que sonho, que sombra?
Mas existe o homem?

2 comentários:

Anônimo disse...

adoro esse poema - é realmente excepcional :)

contonocanto disse...

Eu também!