É quase uma contradição dizer que vivemos em uma epidemia de opinião. Melhor dizendo: é uma contradição. Mas alguém tem que incorrer nessa contradição na tentativa certamente vã de acender não mais uma luz amarela, mas algo ainda mais intenso que o vermelho. O sacrifício é por conta da casa.
O momento é de grande confusão de vozes, de um emaranhado de chiados como uma sobreposição de distorções. Todos falam e poucos se escutam. Todos opinam, poucos leem outras opiniões. Todos escrevem grandes tratados no Facebook, poucos frequentam ambientes contraditórios. Todos são autores, poucos são leitores. Todos têm certezas, poucos duvidam de si. Todos são portadores de alguma verdade, poucos são aqueles que desconfiam daquilo que sabem.
Temos que ter alguma solidez para cumprir nossas metas cotidianas, sem dúvida. Alguma coisa que nos faça levantar da cama e enfrentar oito horas de trabalho nem sempre recompensador, chefes às vezes pouco amigáveis, salários quase nunca abonados. Seja o lazer que o dinheiro suado proporciona das noites de sexta à música de abertura do "Fantástico", a compra de um apartamento de dois quartos, duas vagas na garagem e churrascaria na varanda, ou o futuro de engenheiro, advogado ou médico dos filhos. Também não cabe ficar, a todo momento, duvidando se estamos certos ou errados em relação às nossas decisões. Por que temos que pensar se votamos corretamente, se poluímos o planeta, se estamos ajudando o mundo, se só pensamos em nós mesmo, se o egoísmo é a única forma de convivência dentro de uma cidade caótica? Certezas são importantes para o cotidiano, sem dúvida. Mas não duvidar de si, em nenhum momento, nos torna pouco maleáveis, nos estabiliza, nos estaciona no tempo. O que pode ser um problema para um mundo que corre cada vez mais veloz.
Se a era moderna recebeu como epígrafe um trecho do famoso monólogo de "Hamlet", o tal "Ser ou não ser, eis a questão", que simbolizaria a dúvida existencial do ser humano frente à infinidade de possibilidades que a vida lhe traz, o momento atualíssimo nos parece trazer um outro temperamento, não mais baseado numa peça de teatro, mas em personagens de videogames: somos imaginados como personagens estanques, com três estrelinhas na característica de velocidade, meia estrelinha nas habilidades de lutas, duas estrelinhas na quantidade de força, quatro coraçõezinhos cheios de vida e três armas de calibres cada vez maiores. Diferentemente dos personagens dos games atuais, não temos "continues" infinitos nem podemos salvar uma fase para voltar depois.
Determinado nosso caráter, como uma escolha customizada num guarda-roupa virtual, a partir das nossas mais variadas formações e defesas, o próximo passo é bradar essa escolhas fixas. O facebook se transformou em um canal interessante para isso, principalmente por conta de seu algoritmo que vai, aos poucos, filtrando opiniões contrárias às suas. Quanto mais nos afirmamos, mais angariamos curtidas, que no linguajar atual quer dizer reconhecimento. O se expressar, podemos suspeitar a partir disso, está ligado diretamente à construção da nossa própria imagem. Pensamos ser o que escolhemos ser, o que pudemos escolher ser, e o espelho da internet só nos mostra o reflexo de Narciso.
É possível suspeitar, porém, que o mundo seja mais flexível, mais multifacetado, do que nos mostra a nossa própria vontade de ser. Não basta construir família, ser bem sucedido, viajar para lugares cada vez mais exóticos, fazer parte de um programa social que ajuda os menos afortunados no fim de ano, para sentir esse sentimento que o seu Aristóteles chamou de "eudaimonia", palavra complicada de traduzir, que recebeu versões bem diferentes no português que vão da simples felicidade, passando pelo "bem-estar" e chegando ao "desenvolvimento humano". É complicada porque "felicidade" não é um porto de chegada, não é uma linha final, não é a completude de uma caminhada. Se você acredita nisso, você pode se considerar devedor das religiões que acreditam em paraíso. Mas, pense: qualquer ambiente que não se modifica, que permanece o mesmo, é, em pouco tempo, absorvido, se torna sem vida, chocho, sem graça. Mesmo a melhor das festas não pode durar naturalmente para sempre. Ela tem que acabar. Todo o carnaval tem que ter o seu fim.
Se você, ainda assim, se mantém muito seguro de suas certezas, de suas verdades, é bem provável que vai gritá-las para, inclusive, se convencer delas. O pensamento quando transformado em palavras e sons é mais poderoso que quando apenas isolado dentro da cabeça, onde fica matutando, maturando, batucando, indo de um lado a outro como um pinball. Ao se tornar expressão, o pensamento se cristaliza, se transforma, mesmo que momentaneamente, em uma verdade. Fixa, imutável. É possível se apoiar nela. Você, que quase duvidou de si mesmo, tem que se apoiar nela. É sua única jangada no meio de um oceano nada pacífico.
Há ainda os que acreditam que essa difusão de vozes cada vez mais violentas e em volume mais alto seria apenas a indicação de uma muito incipiente formação do novo tipo de praça pública, agora virtual. Um lugar onde estaríamos debatendo para chegar aos nossos melhores consensos possíveis. O problema é que ninguém quer abrir mão de suas convicções, porque elas não são apenas opiniões, elas são a Verdade - ditadas por deus, o diabo, o pastor, a globo, o colunista da veja, o site patrocinado pelo pt, o meme do facebook, o vídeo do whatsapp.
Inventamos uma nova forma de interação: em vez de diálogos, diversos monólogos. O "eu" vem sempre à frente do "tu", do "ele" e só não vem à frente do "nós", caso o "nós" envolva gente muito, mas muito próxima mesmo, porque o pirão deve ser servido para mim primeiramente, mesmo se a farinha estiver sobrando. Nesse tempo de epidemia de opinião, descobrimos o óbvio: não há forma de conversar quando todos só falam.
O momento é de grande confusão de vozes, de um emaranhado de chiados como uma sobreposição de distorções. Todos falam e poucos se escutam. Todos opinam, poucos leem outras opiniões. Todos escrevem grandes tratados no Facebook, poucos frequentam ambientes contraditórios. Todos são autores, poucos são leitores. Todos têm certezas, poucos duvidam de si. Todos são portadores de alguma verdade, poucos são aqueles que desconfiam daquilo que sabem.
Temos que ter alguma solidez para cumprir nossas metas cotidianas, sem dúvida. Alguma coisa que nos faça levantar da cama e enfrentar oito horas de trabalho nem sempre recompensador, chefes às vezes pouco amigáveis, salários quase nunca abonados. Seja o lazer que o dinheiro suado proporciona das noites de sexta à música de abertura do "Fantástico", a compra de um apartamento de dois quartos, duas vagas na garagem e churrascaria na varanda, ou o futuro de engenheiro, advogado ou médico dos filhos. Também não cabe ficar, a todo momento, duvidando se estamos certos ou errados em relação às nossas decisões. Por que temos que pensar se votamos corretamente, se poluímos o planeta, se estamos ajudando o mundo, se só pensamos em nós mesmo, se o egoísmo é a única forma de convivência dentro de uma cidade caótica? Certezas são importantes para o cotidiano, sem dúvida. Mas não duvidar de si, em nenhum momento, nos torna pouco maleáveis, nos estabiliza, nos estaciona no tempo. O que pode ser um problema para um mundo que corre cada vez mais veloz.
Se a era moderna recebeu como epígrafe um trecho do famoso monólogo de "Hamlet", o tal "Ser ou não ser, eis a questão", que simbolizaria a dúvida existencial do ser humano frente à infinidade de possibilidades que a vida lhe traz, o momento atualíssimo nos parece trazer um outro temperamento, não mais baseado numa peça de teatro, mas em personagens de videogames: somos imaginados como personagens estanques, com três estrelinhas na característica de velocidade, meia estrelinha nas habilidades de lutas, duas estrelinhas na quantidade de força, quatro coraçõezinhos cheios de vida e três armas de calibres cada vez maiores. Diferentemente dos personagens dos games atuais, não temos "continues" infinitos nem podemos salvar uma fase para voltar depois.
Determinado nosso caráter, como uma escolha customizada num guarda-roupa virtual, a partir das nossas mais variadas formações e defesas, o próximo passo é bradar essa escolhas fixas. O facebook se transformou em um canal interessante para isso, principalmente por conta de seu algoritmo que vai, aos poucos, filtrando opiniões contrárias às suas. Quanto mais nos afirmamos, mais angariamos curtidas, que no linguajar atual quer dizer reconhecimento. O se expressar, podemos suspeitar a partir disso, está ligado diretamente à construção da nossa própria imagem. Pensamos ser o que escolhemos ser, o que pudemos escolher ser, e o espelho da internet só nos mostra o reflexo de Narciso.
É possível suspeitar, porém, que o mundo seja mais flexível, mais multifacetado, do que nos mostra a nossa própria vontade de ser. Não basta construir família, ser bem sucedido, viajar para lugares cada vez mais exóticos, fazer parte de um programa social que ajuda os menos afortunados no fim de ano, para sentir esse sentimento que o seu Aristóteles chamou de "eudaimonia", palavra complicada de traduzir, que recebeu versões bem diferentes no português que vão da simples felicidade, passando pelo "bem-estar" e chegando ao "desenvolvimento humano". É complicada porque "felicidade" não é um porto de chegada, não é uma linha final, não é a completude de uma caminhada. Se você acredita nisso, você pode se considerar devedor das religiões que acreditam em paraíso. Mas, pense: qualquer ambiente que não se modifica, que permanece o mesmo, é, em pouco tempo, absorvido, se torna sem vida, chocho, sem graça. Mesmo a melhor das festas não pode durar naturalmente para sempre. Ela tem que acabar. Todo o carnaval tem que ter o seu fim.
Se você, ainda assim, se mantém muito seguro de suas certezas, de suas verdades, é bem provável que vai gritá-las para, inclusive, se convencer delas. O pensamento quando transformado em palavras e sons é mais poderoso que quando apenas isolado dentro da cabeça, onde fica matutando, maturando, batucando, indo de um lado a outro como um pinball. Ao se tornar expressão, o pensamento se cristaliza, se transforma, mesmo que momentaneamente, em uma verdade. Fixa, imutável. É possível se apoiar nela. Você, que quase duvidou de si mesmo, tem que se apoiar nela. É sua única jangada no meio de um oceano nada pacífico.
Há ainda os que acreditam que essa difusão de vozes cada vez mais violentas e em volume mais alto seria apenas a indicação de uma muito incipiente formação do novo tipo de praça pública, agora virtual. Um lugar onde estaríamos debatendo para chegar aos nossos melhores consensos possíveis. O problema é que ninguém quer abrir mão de suas convicções, porque elas não são apenas opiniões, elas são a Verdade - ditadas por deus, o diabo, o pastor, a globo, o colunista da veja, o site patrocinado pelo pt, o meme do facebook, o vídeo do whatsapp.
Inventamos uma nova forma de interação: em vez de diálogos, diversos monólogos. O "eu" vem sempre à frente do "tu", do "ele" e só não vem à frente do "nós", caso o "nós" envolva gente muito, mas muito próxima mesmo, porque o pirão deve ser servido para mim primeiramente, mesmo se a farinha estiver sobrando. Nesse tempo de epidemia de opinião, descobrimos o óbvio: não há forma de conversar quando todos só falam.
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