Andar pelas ruas da Medina de Marrakesh assusta às primeiras passadas de um turista acostumado com a organização das cidades europeias contemporâneas. A melhor e a mais simples definição é a de um labirinto, "maze" em inglês, que faz lembrar a origem da palavra "amazing". Um espanto. São ruelas, e ruelíssimas, que levam a lugar nenhum, ou a casas de pessoas que vivem suas vidas como viviam seus antepassados há dezenas de dezenas de anos. São pequenas vias onde passam burros, motonetas e até carros de pequeno porte. Onde os verdureiros dividem espaço com o senhor que só fala berber e vende arruda e alecrim murchos que parecem ter sido colhidos há dias em sua própria horta. São lojinhas de quinquilharias em que os atendentes não lembravam como se chamava fósforo em francês. Vendinhas de frutas onde pode-se encontrar uma criança de 9, 10 anos carregando uma faca com um papelão fazendo as vezes de punho, para cortar um cacho de bananas que será devida ou indevidamente, não se sabe, pesado numa balança antiga que ele mesmo segura. E há os souks, os mercados intrincados, em zigue-zague, com vários boxes, onde se encontra todos os produtos tradicionais do norte da África: chá, temperos, tecidos, couro, artesanatos, pinturas, açougue, etc. Perder-se na Medina é uma regra e, após o costume, uma regra bem-vinda.
A Medina é como um bairro histórico, preservada à maneira marroquina, dentro da grande cidade que é Marrakesh. Do lado de fora dos seus muros, parece uma urbe qualquer. Ocidentalizada, europeizada, americanizada. A Globalização é uma troca desigual de forças. Sair da Medina faz lembrar "A vila", o filme de Shyamalan. Pulamos alguns séculos de um instante para o outro.
Essa região cresceu em volta da Jemaa el-Fna, a praça central que por séculos reúne todo o tipo de gente do Marrocos e além. Sempre um lugar de concentração. O coração da cidade. No final do século XIX, parece, tentaram transformar o lugar para um estacionamento. Não deu certo e as pessoas continuaram a frequentá-la. De dia, vendedores de suco de laranja, frutas secas, encantadores de serpentes, malabaristas, videntes, poetas e contadores de história que repetem os relatos ouvidos há gerações. De noite, restaurantes que vendem os tradicionais tajine e cuscuz, mas também frituras de frutos do mar, espetos de todos os animais, cabeças inteiras de novilho - onde as famílias marroquinas se reúnem nos fins de semana para apreciar a iguaria, como se num estrela Michelin, e quase ninguém fala francês (uma exceção no lugar em que quase todos os atendentes conseguem arranhar ao menos algumas palavras em muitas línguas).
O preparo da cabeça do novilho, à vista de todos, é de espantar. Coloca-se inteira dentro de um panelão, onde será cozido, num caldo feito com os ossos de outras cabeças e especiarias. Após, corta-se ao meio, em sentido meridional, arranca o couro, e se retira todas as carnes moles: bochecha, língua, cérebro. Corta-se até o triturar e joga-se tudo dentro de uma panela com um caldo para refogar. Na versão "mixture", come-se com pão e sem talheres. Aconselha-se estar com a mão, direita, limpa. O guardanapo parece os papéis de refugo dos jornais que cobrem mesas dos bares mais tradicionais do Rio. Espalha em vez de absorver a gordura. O prato não surpreende: é excepcional.
Marrakesh é a última cidade importante do Marrocos (é uma das cidades imperiais) antes da chegada ao Saara. Para lá de Marrakesh, o deserto-mor. Para lá de Marrakesh, a África negra, o coração das trevas. Os europeus, pode-se suspeitar, tinham receio de ultrapassar essa fronteira - mais um motivo para nos espantarmos com a coragem dos portugueses, que iniciaram a circunavegação da África nos primórdios do século XV, quase como uma continuação das guerras de reconquistas. Parece que se empolgaram.
Andar por esses becos e travessas é uma afronta ao pensamento único ocidental. Tão próximos da Europa, e ao mesmo tempo tão distantes. As ruas tortuosas que funcionam de um jeito menos organizado se os mirarmos pelos nossos olhos cartesianos, limpinhos e assépticos, são metáforas imperfeitas, como todas as metáforas. Lembram favelas. Lembram a área de Londres anterior ao incêndio de 1666, o que faz pensar o quanto esse grande fogo não teria sido proposital para fazer uma "higiene social". Lembram um mundo antes das revoluções, principalmente antes da revolução científica, que tudo calcula, tudo metrifica. É uma organização orgânica, que cresce à medida que a necessidade exige. Não há planejamento. Há sobrevivência. Há uma inteligência que se pode encontrar, em menor ou maior grau, em lugares pobres: ginga, malandragem, balanço. Um raciocínio mais intuitivo, mais ligado à corporalidade.
Isso não quer dizer que a Medina de Marrakesh é o melhor lugar para se morar - porque não é. Nem próximo. É, isso sim, um desafio a uma imposição de se comportar, e pensar, de uma única e exclusiva maneira ao redor de todo o globo. É um grito para dizer que não devemos seguir as mesmas regras, que não devemos respeitar o mesmo tempo, que o Ocidente, a Europa, os EUA não dão conta - nunca deram - de todo o mundo. É a tentativa de mostrar que outras formas de viver são mais que possíveis, são necessárias.
O projeto hegemônico ocidental-europeu-norte-americano chegou, ou, ao menos, deveria ter chegado, ao seu fim.
A Medina é como um bairro histórico, preservada à maneira marroquina, dentro da grande cidade que é Marrakesh. Do lado de fora dos seus muros, parece uma urbe qualquer. Ocidentalizada, europeizada, americanizada. A Globalização é uma troca desigual de forças. Sair da Medina faz lembrar "A vila", o filme de Shyamalan. Pulamos alguns séculos de um instante para o outro.
Essa região cresceu em volta da Jemaa el-Fna, a praça central que por séculos reúne todo o tipo de gente do Marrocos e além. Sempre um lugar de concentração. O coração da cidade. No final do século XIX, parece, tentaram transformar o lugar para um estacionamento. Não deu certo e as pessoas continuaram a frequentá-la. De dia, vendedores de suco de laranja, frutas secas, encantadores de serpentes, malabaristas, videntes, poetas e contadores de história que repetem os relatos ouvidos há gerações. De noite, restaurantes que vendem os tradicionais tajine e cuscuz, mas também frituras de frutos do mar, espetos de todos os animais, cabeças inteiras de novilho - onde as famílias marroquinas se reúnem nos fins de semana para apreciar a iguaria, como se num estrela Michelin, e quase ninguém fala francês (uma exceção no lugar em que quase todos os atendentes conseguem arranhar ao menos algumas palavras em muitas línguas).
O preparo da cabeça do novilho, à vista de todos, é de espantar. Coloca-se inteira dentro de um panelão, onde será cozido, num caldo feito com os ossos de outras cabeças e especiarias. Após, corta-se ao meio, em sentido meridional, arranca o couro, e se retira todas as carnes moles: bochecha, língua, cérebro. Corta-se até o triturar e joga-se tudo dentro de uma panela com um caldo para refogar. Na versão "mixture", come-se com pão e sem talheres. Aconselha-se estar com a mão, direita, limpa. O guardanapo parece os papéis de refugo dos jornais que cobrem mesas dos bares mais tradicionais do Rio. Espalha em vez de absorver a gordura. O prato não surpreende: é excepcional.
Marrakesh é a última cidade importante do Marrocos (é uma das cidades imperiais) antes da chegada ao Saara. Para lá de Marrakesh, o deserto-mor. Para lá de Marrakesh, a África negra, o coração das trevas. Os europeus, pode-se suspeitar, tinham receio de ultrapassar essa fronteira - mais um motivo para nos espantarmos com a coragem dos portugueses, que iniciaram a circunavegação da África nos primórdios do século XV, quase como uma continuação das guerras de reconquistas. Parece que se empolgaram.
Andar por esses becos e travessas é uma afronta ao pensamento único ocidental. Tão próximos da Europa, e ao mesmo tempo tão distantes. As ruas tortuosas que funcionam de um jeito menos organizado se os mirarmos pelos nossos olhos cartesianos, limpinhos e assépticos, são metáforas imperfeitas, como todas as metáforas. Lembram favelas. Lembram a área de Londres anterior ao incêndio de 1666, o que faz pensar o quanto esse grande fogo não teria sido proposital para fazer uma "higiene social". Lembram um mundo antes das revoluções, principalmente antes da revolução científica, que tudo calcula, tudo metrifica. É uma organização orgânica, que cresce à medida que a necessidade exige. Não há planejamento. Há sobrevivência. Há uma inteligência que se pode encontrar, em menor ou maior grau, em lugares pobres: ginga, malandragem, balanço. Um raciocínio mais intuitivo, mais ligado à corporalidade.
Isso não quer dizer que a Medina de Marrakesh é o melhor lugar para se morar - porque não é. Nem próximo. É, isso sim, um desafio a uma imposição de se comportar, e pensar, de uma única e exclusiva maneira ao redor de todo o globo. É um grito para dizer que não devemos seguir as mesmas regras, que não devemos respeitar o mesmo tempo, que o Ocidente, a Europa, os EUA não dão conta - nunca deram - de todo o mundo. É a tentativa de mostrar que outras formas de viver são mais que possíveis, são necessárias.
O projeto hegemônico ocidental-europeu-norte-americano chegou, ou, ao menos, deveria ter chegado, ao seu fim.
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