Segurando a haste da larga taça, balançando a poção alcoólica, como tinha aprendido no curso de sommelier, observando a bebida em redemoinho, imaginando os odores exalados. Eduardo desviou o olhar um pouco para cima e encontrou os olhos de sua mulher Luana: olhos quase negros, sorriso largo do cabelo recém cortado, da aula de tênis terças e quintas, do bife mal passado com pimentas, steak au poivre, dizia o chef na televisão, ela resolvera experimentar, e deu certo, claro, como sempre. Os dois filhos, Lorena e Nicolas, 14 e 12 anos, sentados um de cada lado da mesa (“sou feliz”, pensa Eduardo ao observá-los), disfarçavam para mexer no celular – proibido pelo pai, mas... –, implicando um com o outro, lembravam de uma cena no recreio do colégio. (“Verdadeiramente feliz”.) A mãe quis saber o que houve, eles contaram: Nicolas foi picado por uma abelha ao tomar um refrigerante e gritou desafinadamente, para o deleite dos presentes. Ônus da adolescência. Ele com vergonha, a irmã caçoando, a mãe diz que não tinha por que ficar encabulado, acontece com todo mundo, e o que quer que ele fosse, o que quer que acontecesse, ela, eles estariam ali, com ele, com eles. Eduardo está imerso dentro de si, desligado completamente do seu entorno: Muito feliz, repete ele sem falar nada. Um homem realizado. “Não é, Eduardo?”, pergunta Luana. Ele desperta. Volta a olhar para onde os olhos olham. “Sim, claro”, ele sorri de volta, tranquilamente.
Por que, então, por que ele sentia esse desconforto, que ele nem sabia identificar de onde vinha, como saía, nem por quê? Era um achatamento, uma força ao mesmo tempo de cima para baixo, e de baixo para cima, espremendo, diminuindo os espaços, tornando-o uma massa sem muita diferença entre ele e qualquer outro. Era igual, apenas com detalhes em outra cor, torcendo por outro time de futebol, ou nem gostando de esporte – no máximo. Às vezes, faltava-lhe ar. Queria respirar, abria os pulmões, criava artificialmente um vácuo... e o oxigênio não entrava. Um sufocamento. Precisava ter um horizonte mais largo, mais profundo, precisava se desamarrar.
Precisava fazer algo errado. Precisava se tornar diferente, corromper essa beleza que se apresentava como inquebrantável. Fissurá-la. Precisava escapar, fugir da perfeição. Precisava sair da média, essa média que estabilizava e o prendia dentro de um formato, com um rótulo na testa, fazendo com que as pessoas esperassem por suas ações e aplaudissem até mesmo suas excentricidades como se fossem parte do pacote, está incluído no ingresso, senhor, nesse mundo em que todos se tornam compulsoriamente personagens de uma novela infinita, com diferentes tramas concomitantes, transmitidas ininterruptamente em qualquer tela que caiba no bolso. Precisava fazer algo errado.
Quando foram dormir, pijama de manga comprida, camisola branca-champanhe, as boas-noites, luz apagada, beijo, abraço, aconchego, Eduardo se levantou. Não abruptamente. Mesmo que não tivesse planejado isso, ele imaginou que se se movimentasse muito rapidamente, chamaria a atenção de Luana. Ele precisava apenas ir ao banheiro. Explicou, ela entendeu, ele levou o celular. Ter que dar satisfação. Por que não apenas fazer? Ele era feliz. Era uma escolha. Havia um solo, algo onde se apoiar. Mas não era infinito o mundo. Tinha que escolher, tinha que optar. Viver é viver em falta, falta de algo, mas não pode ser o essencial – e não era. Ele era feliz. Enquanto vale a pena, vale a pena. Mas admitira para si: precisava sair. Por um instante. Só hoje. Como? E para onde? Fazer o quê? E falar a verdade? Tinha recebido uma ligação, uma mensagem, uma ligação, na verdade. Do Fábio, isso. Avisou. Ele, Fábio precisava conversar. Luana não entendeu. Achou estranho, porém não novo: Eduardo estava agitado, de um jeito que ela já tinha visto anteriormente – e se sentiu em um poço escuro, sozinha. Eduardo não deixou espaço para conversa. Trocou de roupa e saiu de casa imediatamente.
Ao volante, luz mercurial refletindo no para-brisa, ele pensa que estava fugindo de uma prisão. A felicidade, ele imagina, talvez não seja um estado inalterado, mas um fundo, em que outros gostos, menos doces, poderiam aparecer, como lâminas acres. Tinha medo de repetir os erros do passado. De ser tão autodestrutivo – ou simplesmente destrutivo – como em outras épocas. Mas ele deveria fazer de novo – não era possível não fazer. Precisava. Algo. Quebrar a rotina, a certeza, alguma coisa, por favor, agora, só mais uma dose, ao menos. Não queria ser igual a todo mundo. Algo inaceitável – era isso. Precisava. Algo que destruísse essa estabilidade. De novo. Não uma superioridade, mas uma diferenciação, que o tornasse único, mesmo se sabendo igual, igualzinho a todo mundo. Se imaginava caminhando no meio de um trilha, bem centralizado, sem conhecer os extremos da estrada. Não aguentava representar eternamente o papel do bom moço – não era bem representação, ele era, também, bom moço, mas não apenas. Esse detalhe, esse detalhe fazia toda a diferença. Não podia ser estanque. Por que não reinvestia, não criava dentro do sistema já determinado, do mundo que ele compartilhava, das relações onde ele se sentia feliz – e ele se sentia feliz! –, da sua família, ora!, por que não imaginava saídas dentro desse próprio formato em que ele já estava desde o início inserido? Não havia lado de fora. Não era possível escapar.
Ele sabia, mas não sabia. O equilíbrio entre um lado e outro, fino, tenso, delicado. Tinha dentro de si, como um mantra, que toda decisão carrega em si o seu inverso. Não há éden, um mundo sem sofrimento ou dúvida. Não há limpeza completa, há sempre uma dor, mesmo que latente, como possibilidade. A chave é o positivo ser mais forte que o negativo. Aceitar o destino, imaginar que foi o melhor que se poderia ter tomado naquele momento, diante daquela questão, com as informações que se tinha, e com a coragem que apareceu no instante decisivo. Mas como não se arrepender? Engole sem saliva: lembrar, sempre, que se é feliz. Uma estrutura, algo onde o restante do corpo se encaixa. A felicidade como abertura, como o modo de operação principal, a linha mestra em que outros afetos poderiam atravessar, como atravessam – mas sem atravancar; a felicidade como a segurança, a certeza nos momentos mais difíceis. Como agora.
Mas o que de tão em baixa passou por ali para ele estar sentindo esse buraco dentro de si? Essa ausência sem nome, essa saudade de ser a miragem que ele diz para si que construiu, na sua cabeça, fantasiosamente? Essa vontade de apenas ser diferente da média, de escapar da massificação, de colocar a cabeça para fora, de não respeitar os limites estabelecidos? Nada, verdadeiramente. Ele gosta da vida pequeno burguesa, família classe média, trabalho de 9 às 18h, casa de praia nos fins de semana, crianças crescendo, vinhozinho, comidinhas, uma mulher linda... o que mais ele quer? Por que essa vontade incontrolável de rasgar a própria pele e se mostrar completamente? Por que esse desespero de sair de casa, de madrugada, e fazer o que ele estava tentando – e conseguindo – evitar havia tanto tempo, esse desejo que ele escondeu, porque ele sabia que era incompatível com a vida que ele vive, com a vida que ele gosta de viver, mas por que essa vontade agora pareceu tão incontrolável? Não havia uma resposta boa, além do fato de ele estar com uma vida boa, agora, estável, sem qualquer sobressalto, qualquer desafio. Era sólido demais.
Ele encosta o carro. A moça se aproxima. Ele abaixa o vidro. Ela está extremamente maquiada, com pouquíssima roupa. Maxilares proeminentes, rosto ossudo, pescoço musculoso, pomo de Adão avantajado, voz grossa fina. Ele não sabe o que dizer. Ela conduz todo o diálogo, sozinha. A participação dele se resume a abrir a porta. Ela entra. Já havia um quarto ali por perto. Ele queria ser o oposto do que ele era sempre.
No quarto, meia luz vinda do poste da rua, o rosto sombreado, ela vai tirando a roupa rapidamente. Ele não tem pressa, não tem tranquilidade, não tem nada, está perdido, observando como uma paisagem. Ela quer voltar à rua. Era apenas mais um da noite. Para ele, era especial: a possibilidade de visitar o outro lado, de atravessar a ponte, de descer ao subterrâneo, de encontrar o engano, a negatividade que ele negava há tanto tempo. Era a sujeira, o mundo real, quente, úmido, sangrento, dolorido, extremo, que ele tanto ansiava. Era o feio, o errado, onde ele queria mergulhar e emergir molhado, com vísceras escorrendo pelo seu rosto, destruído, despedaçado. Primeiro aparece o silicone, o corpo esculpido com doses iguais de dificuldade e criatividade. Era delicada, ou tentava. O que ele queria ali? Observá-la, para começo. O corpo ambíguo, o corpo duplo, o corpo que possuía duas metades, divididas e coladas, mescladas uma na outra, o corpo que era feminino e masculino ao mesmo tempo. Ela era ela e outro, ao mesmo tempo. Era um passado, um nascimento e um renascimento. Dois nomes, um sobre o outro, uma sobra e outro. Ele queria se refletir nela. Se levanta em direção a ela, se aproxima, ela, apenas de calcinha, o volume no púbis destoando, ele segura os braços dela, os abre, e tenta encostar o corpo no dela, com os braços abertos, num abraço sem abraçar por completo, queria adentrar por completo, queria ser ela, se transformar nela, atravessar o espelho. Os rostos se encostam, rostos pelados, ele, barba aparada em barbeiro, ela, hormônios que impedem pêlos, as respirações se adéquam, um com a outra, uma depois do outro. Era o suficiente? Ele se pergunta, sem conseguir desligar a obsessão. Será que o demônio que se alimenta de suas compulsões se daria por satisfeito? Onde fica a linha de segurança? Ela está com pressa, quer voltar para a rua. O programa tem tempo. Iria terminar ou não? Ele quer continuar? Como ele quer continuar? Ele paga, o dobro, coloca as notas sobre a cadeira velha. Pede mais tempo. Ele quer se escutar, voltar a se ouvir. Aproveitar o quarto sujo e silencioso. Ela fica mais tranquila. Coloca a cabeça dele no ombro dela, acaricia os fartos cabelos já prateando. Ele queria ser ele e ser ela. Queria ser, a cada momento, um, uma. Por que estacionar, de maneira tão profunda, em apenas um estado? Por que não fluir de uma forma para outra? Mais flexível, adaptável ao ambiente? Era o suficiente? Ele se pergunta, novamente. Já tinha se envergonhado o necessário? Ele quer ser dominado, domado, penetrado, invadido, possuído, ele quer ser invertido. Deita-se, de costas, ela entende. Se abaixa e beija o pescoço dele, tirando a roupa, primeiro a camisa, beija as costas, ele se arrepia, se sentia fragilizado, vulnerável, se sentia dependente dela, deixou seu destino na mão de uma desconhecida, de alguém que ele encontrou na rua. Ela tira as calças e continua a beijá-lo, descendo as costas, na bunda, nas coxas, períneo, no meio da bunda, ele se prende todo, ela o abraça por trás, ele sente o volume, ela o beija, e pede para ele relaxar, ele vai se soltando, se soltando, até que ela, com cuidado, devagar, começa a entrar, aos poucos. Ele fica vermelho, tenso, o pescoço teso, sem respirar, tentando aguentar o movimento, tentando relaxar, ao mesmo tempo que impedir o progresso dela o fazia ter ainda algum domínio, ela dizendo para ele se soltar, ficar calmo, perder o controle, que ela não faria nada, nada além do que ele queria, nada além do que já estava fazendo, e ele se sentia invadido, destruído, despedaçado, descarnado, exposto em ferida sangrenta. Ela continua, se empolgando, subindo de tom, e ele vai diminuindo, sumindo, desaparecendo, começa a chorar baixinho, como se o dique tivesse rompido, desaguando, primeiro aos poucos, depois, quando ela acaba, ele chora leve. Se encolhe como um inseto ferido, e não tem forças para se perguntar se queria mais, se era o suficiente, se deveria continuar. Ela se levanta, se veste, pega o dinheiro, abre a porta, olha para dentro, para por um instante e fala tchau. Ele continua enrolado em volta de um centro imaginário, sentindo a pressão diminuir, desabafando, desinflando. Soluça uma, duas vezes, respira fundo, e para. Tinha gostado. Da mecânica, do encontro, de se perder. Tinha gostado.
Da janela era possível ver um pedaço muito restrito da rua. Uma maneira tão diferente de viver. Como ele estava encastelado, como ele tinha criado um paraíso artificial que, como todo paraíso, não era suficiente. Tinha descarregado, estava vazio. Era ainda feliz porque sabia que não era mais feliz o tempo todo.
Por que, então, por que ele sentia esse desconforto, que ele nem sabia identificar de onde vinha, como saía, nem por quê? Era um achatamento, uma força ao mesmo tempo de cima para baixo, e de baixo para cima, espremendo, diminuindo os espaços, tornando-o uma massa sem muita diferença entre ele e qualquer outro. Era igual, apenas com detalhes em outra cor, torcendo por outro time de futebol, ou nem gostando de esporte – no máximo. Às vezes, faltava-lhe ar. Queria respirar, abria os pulmões, criava artificialmente um vácuo... e o oxigênio não entrava. Um sufocamento. Precisava ter um horizonte mais largo, mais profundo, precisava se desamarrar.
Precisava fazer algo errado. Precisava se tornar diferente, corromper essa beleza que se apresentava como inquebrantável. Fissurá-la. Precisava escapar, fugir da perfeição. Precisava sair da média, essa média que estabilizava e o prendia dentro de um formato, com um rótulo na testa, fazendo com que as pessoas esperassem por suas ações e aplaudissem até mesmo suas excentricidades como se fossem parte do pacote, está incluído no ingresso, senhor, nesse mundo em que todos se tornam compulsoriamente personagens de uma novela infinita, com diferentes tramas concomitantes, transmitidas ininterruptamente em qualquer tela que caiba no bolso. Precisava fazer algo errado.
Quando foram dormir, pijama de manga comprida, camisola branca-champanhe, as boas-noites, luz apagada, beijo, abraço, aconchego, Eduardo se levantou. Não abruptamente. Mesmo que não tivesse planejado isso, ele imaginou que se se movimentasse muito rapidamente, chamaria a atenção de Luana. Ele precisava apenas ir ao banheiro. Explicou, ela entendeu, ele levou o celular. Ter que dar satisfação. Por que não apenas fazer? Ele era feliz. Era uma escolha. Havia um solo, algo onde se apoiar. Mas não era infinito o mundo. Tinha que escolher, tinha que optar. Viver é viver em falta, falta de algo, mas não pode ser o essencial – e não era. Ele era feliz. Enquanto vale a pena, vale a pena. Mas admitira para si: precisava sair. Por um instante. Só hoje. Como? E para onde? Fazer o quê? E falar a verdade? Tinha recebido uma ligação, uma mensagem, uma ligação, na verdade. Do Fábio, isso. Avisou. Ele, Fábio precisava conversar. Luana não entendeu. Achou estranho, porém não novo: Eduardo estava agitado, de um jeito que ela já tinha visto anteriormente – e se sentiu em um poço escuro, sozinha. Eduardo não deixou espaço para conversa. Trocou de roupa e saiu de casa imediatamente.
Ao volante, luz mercurial refletindo no para-brisa, ele pensa que estava fugindo de uma prisão. A felicidade, ele imagina, talvez não seja um estado inalterado, mas um fundo, em que outros gostos, menos doces, poderiam aparecer, como lâminas acres. Tinha medo de repetir os erros do passado. De ser tão autodestrutivo – ou simplesmente destrutivo – como em outras épocas. Mas ele deveria fazer de novo – não era possível não fazer. Precisava. Algo. Quebrar a rotina, a certeza, alguma coisa, por favor, agora, só mais uma dose, ao menos. Não queria ser igual a todo mundo. Algo inaceitável – era isso. Precisava. Algo que destruísse essa estabilidade. De novo. Não uma superioridade, mas uma diferenciação, que o tornasse único, mesmo se sabendo igual, igualzinho a todo mundo. Se imaginava caminhando no meio de um trilha, bem centralizado, sem conhecer os extremos da estrada. Não aguentava representar eternamente o papel do bom moço – não era bem representação, ele era, também, bom moço, mas não apenas. Esse detalhe, esse detalhe fazia toda a diferença. Não podia ser estanque. Por que não reinvestia, não criava dentro do sistema já determinado, do mundo que ele compartilhava, das relações onde ele se sentia feliz – e ele se sentia feliz! –, da sua família, ora!, por que não imaginava saídas dentro desse próprio formato em que ele já estava desde o início inserido? Não havia lado de fora. Não era possível escapar.
Ele sabia, mas não sabia. O equilíbrio entre um lado e outro, fino, tenso, delicado. Tinha dentro de si, como um mantra, que toda decisão carrega em si o seu inverso. Não há éden, um mundo sem sofrimento ou dúvida. Não há limpeza completa, há sempre uma dor, mesmo que latente, como possibilidade. A chave é o positivo ser mais forte que o negativo. Aceitar o destino, imaginar que foi o melhor que se poderia ter tomado naquele momento, diante daquela questão, com as informações que se tinha, e com a coragem que apareceu no instante decisivo. Mas como não se arrepender? Engole sem saliva: lembrar, sempre, que se é feliz. Uma estrutura, algo onde o restante do corpo se encaixa. A felicidade como abertura, como o modo de operação principal, a linha mestra em que outros afetos poderiam atravessar, como atravessam – mas sem atravancar; a felicidade como a segurança, a certeza nos momentos mais difíceis. Como agora.
Mas o que de tão em baixa passou por ali para ele estar sentindo esse buraco dentro de si? Essa ausência sem nome, essa saudade de ser a miragem que ele diz para si que construiu, na sua cabeça, fantasiosamente? Essa vontade de apenas ser diferente da média, de escapar da massificação, de colocar a cabeça para fora, de não respeitar os limites estabelecidos? Nada, verdadeiramente. Ele gosta da vida pequeno burguesa, família classe média, trabalho de 9 às 18h, casa de praia nos fins de semana, crianças crescendo, vinhozinho, comidinhas, uma mulher linda... o que mais ele quer? Por que essa vontade incontrolável de rasgar a própria pele e se mostrar completamente? Por que esse desespero de sair de casa, de madrugada, e fazer o que ele estava tentando – e conseguindo – evitar havia tanto tempo, esse desejo que ele escondeu, porque ele sabia que era incompatível com a vida que ele vive, com a vida que ele gosta de viver, mas por que essa vontade agora pareceu tão incontrolável? Não havia uma resposta boa, além do fato de ele estar com uma vida boa, agora, estável, sem qualquer sobressalto, qualquer desafio. Era sólido demais.
Ele encosta o carro. A moça se aproxima. Ele abaixa o vidro. Ela está extremamente maquiada, com pouquíssima roupa. Maxilares proeminentes, rosto ossudo, pescoço musculoso, pomo de Adão avantajado, voz grossa fina. Ele não sabe o que dizer. Ela conduz todo o diálogo, sozinha. A participação dele se resume a abrir a porta. Ela entra. Já havia um quarto ali por perto. Ele queria ser o oposto do que ele era sempre.
No quarto, meia luz vinda do poste da rua, o rosto sombreado, ela vai tirando a roupa rapidamente. Ele não tem pressa, não tem tranquilidade, não tem nada, está perdido, observando como uma paisagem. Ela quer voltar à rua. Era apenas mais um da noite. Para ele, era especial: a possibilidade de visitar o outro lado, de atravessar a ponte, de descer ao subterrâneo, de encontrar o engano, a negatividade que ele negava há tanto tempo. Era a sujeira, o mundo real, quente, úmido, sangrento, dolorido, extremo, que ele tanto ansiava. Era o feio, o errado, onde ele queria mergulhar e emergir molhado, com vísceras escorrendo pelo seu rosto, destruído, despedaçado. Primeiro aparece o silicone, o corpo esculpido com doses iguais de dificuldade e criatividade. Era delicada, ou tentava. O que ele queria ali? Observá-la, para começo. O corpo ambíguo, o corpo duplo, o corpo que possuía duas metades, divididas e coladas, mescladas uma na outra, o corpo que era feminino e masculino ao mesmo tempo. Ela era ela e outro, ao mesmo tempo. Era um passado, um nascimento e um renascimento. Dois nomes, um sobre o outro, uma sobra e outro. Ele queria se refletir nela. Se levanta em direção a ela, se aproxima, ela, apenas de calcinha, o volume no púbis destoando, ele segura os braços dela, os abre, e tenta encostar o corpo no dela, com os braços abertos, num abraço sem abraçar por completo, queria adentrar por completo, queria ser ela, se transformar nela, atravessar o espelho. Os rostos se encostam, rostos pelados, ele, barba aparada em barbeiro, ela, hormônios que impedem pêlos, as respirações se adéquam, um com a outra, uma depois do outro. Era o suficiente? Ele se pergunta, sem conseguir desligar a obsessão. Será que o demônio que se alimenta de suas compulsões se daria por satisfeito? Onde fica a linha de segurança? Ela está com pressa, quer voltar para a rua. O programa tem tempo. Iria terminar ou não? Ele quer continuar? Como ele quer continuar? Ele paga, o dobro, coloca as notas sobre a cadeira velha. Pede mais tempo. Ele quer se escutar, voltar a se ouvir. Aproveitar o quarto sujo e silencioso. Ela fica mais tranquila. Coloca a cabeça dele no ombro dela, acaricia os fartos cabelos já prateando. Ele queria ser ele e ser ela. Queria ser, a cada momento, um, uma. Por que estacionar, de maneira tão profunda, em apenas um estado? Por que não fluir de uma forma para outra? Mais flexível, adaptável ao ambiente? Era o suficiente? Ele se pergunta, novamente. Já tinha se envergonhado o necessário? Ele quer ser dominado, domado, penetrado, invadido, possuído, ele quer ser invertido. Deita-se, de costas, ela entende. Se abaixa e beija o pescoço dele, tirando a roupa, primeiro a camisa, beija as costas, ele se arrepia, se sentia fragilizado, vulnerável, se sentia dependente dela, deixou seu destino na mão de uma desconhecida, de alguém que ele encontrou na rua. Ela tira as calças e continua a beijá-lo, descendo as costas, na bunda, nas coxas, períneo, no meio da bunda, ele se prende todo, ela o abraça por trás, ele sente o volume, ela o beija, e pede para ele relaxar, ele vai se soltando, se soltando, até que ela, com cuidado, devagar, começa a entrar, aos poucos. Ele fica vermelho, tenso, o pescoço teso, sem respirar, tentando aguentar o movimento, tentando relaxar, ao mesmo tempo que impedir o progresso dela o fazia ter ainda algum domínio, ela dizendo para ele se soltar, ficar calmo, perder o controle, que ela não faria nada, nada além do que ele queria, nada além do que já estava fazendo, e ele se sentia invadido, destruído, despedaçado, descarnado, exposto em ferida sangrenta. Ela continua, se empolgando, subindo de tom, e ele vai diminuindo, sumindo, desaparecendo, começa a chorar baixinho, como se o dique tivesse rompido, desaguando, primeiro aos poucos, depois, quando ela acaba, ele chora leve. Se encolhe como um inseto ferido, e não tem forças para se perguntar se queria mais, se era o suficiente, se deveria continuar. Ela se levanta, se veste, pega o dinheiro, abre a porta, olha para dentro, para por um instante e fala tchau. Ele continua enrolado em volta de um centro imaginário, sentindo a pressão diminuir, desabafando, desinflando. Soluça uma, duas vezes, respira fundo, e para. Tinha gostado. Da mecânica, do encontro, de se perder. Tinha gostado.
Da janela era possível ver um pedaço muito restrito da rua. Uma maneira tão diferente de viver. Como ele estava encastelado, como ele tinha criado um paraíso artificial que, como todo paraíso, não era suficiente. Tinha descarregado, estava vazio. Era ainda feliz porque sabia que não era mais feliz o tempo todo.
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