quarta-feira, 27 de agosto de 2003

a coisa aí de baixo faz parte de um concurso de contos da prefeitura de Niterói. é até primeiro de setembro. não sei se dará tempo para ajudar alguém. o endereço é: http://www.niteroi-artes.gov.br/nitconto.html
Icaraí

Antes do início, como marco zero, gostaria de fazer uma espécie de prefácio, uma justificativa, algo que demonstre o motivo de todo o texto e o porquê de seu caráter.

A linha que separa a realidade do que se convencionou chamar ficção se torna, a cada segundo, mais tênue. Todos os dias, somos abastecidos por uma coleção de atrocidades e situações que só eram imaginadas – e realizadas – em livros e filmes ficcionais. Por isso, quando, hoje, alguém chama seu texto de realista, eu o considero, no mínimo, corajoso.

Por outro lado, já que vivemos nessa tal era do inacreditável, inventar algo novo, que fuja de tudo o que já foi dito, ou que aconteceu, virou uma missão complicada, quando não impossível. Normalmente vejo que esses criadores se limitam pelo exagero e transformam suas criaturas em algo que vive muito distante do possível. Não os discrimino, muito pelo contrário, até tenho uma certa inveja, pois não consigo supor tamanha criatividade.

No meu caso, na circunstância desse texto que segue – o meu primeiro e único até agora – optei apenas por tentar descrever exatamente aquilo que vi e senti numa tarde, que deveria ser qualquer, em Icaraí. Talvez algumas pessoas não acreditem no que será dito, como eu não acreditaria. O relato parecerá algo fora do comum, e essa é exatamente o motivo que me fez sentar em frente a esse computador e escrever. Para falar a verdade, aquelas imagens não saem da minha cabeça e, por isso, pensei que se compartilhasse essas sensações, poderia melhorar, um pouco que seja, a confusão que me tomou desde aquela tarde.

Justificado o texto, quero me apresentar para o leitor, qualquer um que seja, para que ele saiba com quem está falando. Meu nome é João Rodrigo da Silva Feitosa. O primeiro nome, João, é homenagem ao meu avô, sargento do exército já na reserva daqueles que assistimos em filmes de quartel. Homem severo, rígido até o extremo, criou meu pai numa educação pior que a espartana.

Meu pai se chama Hamilton da Silva Feitosa, mas todos só o chamam de Feitosa. Seguindo os passos de meu avô, ele também entrou para as forças armadas. Em comparação ao pai dele, meu pai é o que se chama popularmente de uma flor. Entretanto, em absoluto, fica complicado encarar o touro à unha. É daqueles que briga com o tom de voz baixo. Parece que te martiriza mais, uma tortura que não acaba tão rapidamente.

Criei um certo desconforto com toda a família quando não optei pela carreira militar. Lembro que meu pai me chamou diversas vezes para conversar sobre o meu futuro quanto tinha apenas quatorze anos. Ele me pediu para fazer a prova para o colégio naval e eu respondi que não tinha nenhuma vontade de fazer o que ele fazia. Hoje acredito que ele está mais sossegado.

De resto minha família é das mais tradicionais, daquelas que ainda se esforçam para irem na missa aos domingos. Meu pai nunca permitiu que minha mãe trabalhasse e, então, ela teve que se ater apenas aos afazeres domésticos. Dona Miriam, minha mãe, é uma figura calada, quieta, sempre no canto à procura de algo para preencher o seu ócio. Lembro dela fazendo tricô e crochê na poltrona da sala com o sol se pondo depois da montanha que pode ser vista pela janela. Ou deitada na sua cama, de tarde, após o almoço, lendo algum tipo de romance. Aliás, ela lê muito. Acho que vem dela esse meu vício. Ela não tem um autor preferido, que eu saiba, e não faz muita distinção entre a chamada alta literatura e os autores mais populares. Já a vi com Stephen King, João Ubaldo Ribeiro, Sidney Sheldon, Morris West, Fernando Morais, Robin Cook, Carlos Heitor Cony e centenas de outros autores. Temos umas três estantes lotadas de livros de alto a baixo lá em casa. O importante para ela é manter a mente ocupada.

Minha irmã Jaqueline, coitada, tem quinze anos e começa agora a sofrer os efeitos diretos de uma família de cunho conservador. Acho que o meu pai queria vê-la sendo freira ou coisa parecida. É inacreditável a maneira como ele a trata. Não a deixa sair de noite com as amigas, tem horário para tudo, e promove questionamentos absurdos todas as vezes que volta para casa. Ultimamente eu é que comprei um pouco do barulho dela, mas nada ainda muito escabroso. Acredito que vamos ter problemas no futuro.

Eu, bem, como disse, me chamo João Rodrigo da Silva Feitosa. Tenho vinte e três anos, sou formado em ciências contábeis na faculdade do estado e trabalho hoje na secretaria estadual de administração. Cheguei até a passar para a fluminense, mas como moramos em Vila Isabel, resolvi estudar nas redondezas. Assim que acabei o curso, por sorte e coincidência, abriu este concurso público. Fiz a prova e, novamente por sorte, coincidência, e dessa vez por uma promessa da minha mãe para São Judas Tadeu, consegui passar. Ganho razoavelmente bem, mais que a grande maioria dos meus colegas de turma, e moro ainda com a minha família, o que me deixa numa situação bem confortável em comparação aos demais. Comprei um carrinho mil, saio de vez em quando com uns amigos e não sei se ainda tenho namorada. Não depois do que aconteceu em Icaraí.

Ela se chama Lívia e mora em Niterói, em São Francisco mais exatamente. A conheci numa festa de fim de ano que organizamos lá na secretaria. Era uma espécie de churrasco, num sítio, lá para os lados de Itacoatiara e ela foi por ser amiga de uma menina que trabalha no setor de RH. Não sei se devia dizer isso, mas foi uma espécie de amor à primeira vista. Ela é linda. Não tinha idéia do que iria acontecer, mas, por outro lado, era certo, para mim, que ela não era uma qualquer. Por mais idiota que possa parecer, tenho que escrever isso aqui, quando a vi, sabia que a conhecia de algum outro lugar. Não imaginava de onde, de como, de quando, apenas que já a tinha visto. Lívia tem uns cabelos lisos castanhos escuros que iam até quase a cintura e estava extremamente queimada de sol. Quando ela chegou todos os homens se viraram, eu incluído, e marca daí a minha perdição, ou salvação, dependendo do referencial. Lembro do Antunes, o chefe lá do setor, me perguntando, na hora que peguei uma latinha de cerveja, se eu sabia quem ela era. Sua amiga, Amanda, uma lourinha de cabelo queimado, gordinha, bem branca não é o que podemos chamar de mulher bonita, entretanto posso apostar que nunca foi tão paparicada quanto nesse dia.

Em nenhum momento, contudo, tive coragem de ir falar com ela. Fiquei na minha mesa com algumas pessoas, todos casados, com filhos, e eu, o mais novo da seção, me sentindo um pouco fora do meu habitat. Minha participação se resumia a ir buscar cerveja e pratinhos com comida para o tira-gosto. Tinha decidido ir embora cedo porque sabia que da forma como estava a festa, eu não iria me divertir mais que aquilo. Porém – e nessas horas as coincidências me fazem rever meus conceitos – de uma hora para outra o tempo fechou e uma chuva torrencial, típica do verão, desabou. Logo todos ficamos ilhados. Ao saber que eu queria ir embora, Amanda veio falar comigo se eu podia levar Lívia para a casa. Seria caminho, ela justificou. Não pude conter o meu sorriso ao dizer que seria um prazer. Depois de uns quarenta e cinco minutos, como acontece sempre com esse tipo de tempestade, ela deu uma melhorada. Partimos, eu e Lívia, então.

Ao entrar no carro, permanecemos em silêncio. Coloquei um som calmo (provavelmente cardigans) e dirigi com bastante cuidado porque as ruas estavam todas alagadas ou totalmente enlameadas. Quebrei o silêncio pedindo para ela me guiar até chegar na casa dela, já que não era habitué de Niterói. Para falar a verdade, podia citar de cor todas as vezes que tinha ido para a cidade do outro lado da baía. Ela me respondeu que não havia problema, com o tom de voz baixo, porém, me pareceu, bastante segura. Eu adoro mulheres seguras. Não uma segurança petulante, feita para incomodar, ou para medir vontades, mas aquela que sabe exatamente o que vai fazer. Ou, quando tem uma dúvida, é por questões muito amplas e significativas. Nada de “com que roupa eu vou?”, ou “qual a minha cor preferida?”.

Segurava o volante com as duas mãos e me aproximei do pára-brisa para melhor enxergar a estrada que aparecia repentinamente na minha frente e agradeci aos anos que joguei enduro no atari. Logo ela pegou uma flanela debaixo do painel e se ofereceu, sem que eu pronunciasse uma única palavra, para me ajudar a desembaçar o vidro. Eu virei minha cabeça e agradeci com todo o meu rosto sem precisar falar nada. Percebi que ela entendeu e sorriu de volta. Nossa, lembro perfeitamente do sorriso dela e de como ela estava linda naquele dia.

Depois de uns quinze, vinte minutos, entramos em perímetro urbano e a chuva parou por vez. Pareceu que nunca tinha chovido e o sol, que já tinha se posto, deu lugar a um céu estrelado. Dentro de mim eu sentia algo confortável, uma felicidade que não sabia de onde vinha, ou o motivo de existir, só tinha noção que queimava o meu rosto e me dava vontade de pular como uma criança pequena. Estávamos calados, sem pronunciar nenhuma palavra, mas sabia que as nossas sintonias eram as mesmas. Olhei para ela, e ela me olhou e rimos, mais uma vez, só por estarmos ali. Novamente tive a certeza que já a conhecia há muito tempo. “Boa música”, ela disse. O carro parou num sinal de trânsito. Puxei o freio de mão e me virei para ela. Ela fez o mesmo. Dessa vez não rimos.

Dali, antes de leva-la em casa, paramos num quiosque onde tínhamos toda a praia de São Francisco como vista. Não tinha nada demais, mas foi uma das noites mais perfeitas da minha vida. Tudo o que não tínhamos conversado durante o trajeto, foi colocado em dia, em cima do capô do meu carro. A cada palavra que ela pronunciava, descobria que ela era uma mulher maravilhosa. Várias vezes me senti a vontade para poder tocar em determinados assuntos que nunca pude falar com mais ninguém. Outras, percebi o quanto éramos parecidos. A família dela era também bastante conservadora, ela era a filha única e tinha tido uma formação altamente católica. Como eu, tinha lutado contra hipocrisias e preconceitos entranhados na mesa do jantar, ou no almoço de domingo. Porém, atualmente, vivia um momento de relativa tranqüilidade, por ter atingido uma certa independência por causa do trabalho. Tinha terminado letras e dava aulas em alguns colégios de Niterói, assim conseguia tirar uma grana boa.

Deixei-a na frente do seu prédio com um pesar enorme. Não queria voltar para o Rio e sabia que ela também não queria subir para o apartamento. Fui embora quando quase amanhecia e com uma vontade louca de ligar para ela assim que chegasse em casa. Não sei até hoje como dirigi o carro na volta, já que não estava com a cabeça exatamente ali, nem conhecia o caminho. Acho que fui guiado por um instinto que me protegia dos erros.

Para namorar foi um pulo. Voltamos a sair várias outras vezes, e quando me dei conta, já conhecia toda a família dela e era apresentado como “genro” ou o “namorado de minha filha”. O fatídico dia aconteceu uns dois meses depois de nos conhecermos.

Marcamos de ir ver um filme que só estava passando no cinema em Icaraí. Era o “Conto de Verão”, do Eric Rohmer, acho que nunca vou esquecer. Um domingo de céu nublado, num clima agradável, algo em torno das quatro da tarde. Havíamos comprado duas casquinhas de sorvete (eu de morango, ela de chocolate) e começamos a andar na orla só pelo passeio. Era a primeira vez que fazíamos este tipo de passeio, e era a primeira vez na minha vida que andava pela praia de Icaraí. O calçadão estava vazio, com apenas alguns casais que faziam exatamente a mesma coisa que nós. Resolvemos sentar num dos bancos de pedra de frente para o mar, que batia calmamente na areia. Ela sentou de frente para mim, e eu de frente para a água. Comecei a observar as ondas vindo e voltando, vagarosamente. Vinham e voltavam. Molhavam a areia tornando-a mais escura, depois se retiravam, e a água escorria entre cada grão, e a areia clareava, como num ciclo. As ondas vinham e voltavam, vinham e voltavam, vinham e voltavam, quase idênticas. Na minha frente, só o mar, nenhuma alma, nada além da água que vinha e voltava. Fiquei tanto tempo que perdi a noção. Então olhei para o lado e tomei um susto. Vi Lívia, mas ela não era ela. Sim, tinha os mesmos traços, a mesma tez, a mesma cor de cabelo, mas não era ela. Me olhava com a mesma vontade, tinha a mesma intenção, mas já não se vestia como estava há poucos instantes atrás, trajava um vestido antiqüíssimo, provavelmente do final século XIX, com um chapéu de abas longas. Já não sentava de frente para mim, porém de lado, mais recatada, não tinha o sorriso franco, era mais discreta. Já não se chamava Lívia, e eu não sabia o seu nome. Olhei assustado para a orla, e não achei nenhum dos prédios que deveria estar ali. Apenas um sítio ou uma chácara, algo dessa natureza que não consegui identificar de onde estava. Tudo havia desaparecido, todos os carros, todas as pessoas, o banco em que estava sentado, o chão de pedra-portuguesa, o calçamento da rua. Só o mar que vinha e voltava era o mesmo. “O que passa em teus sonhos?”, Lívia, ou a mesma mulher porém com outro nome, me perguntou, “Por que esses olhos tão assustados?”. Não sabia o que responder. Parecia que o que dissesse, me denunciaria e diria que eu não pertencia àquele lugar, nem àquele tempo. Fechei meus olhos com a intenção de deixar todas essas imagens para trás e voltar para a minha realidade, mas, quando os abri novamente, percebi que foi em vão. A primeira coisa que vi, foi um tílburi sozinho passando pela orla com apenas um homem que o dirigia. Lívia, ou a mulher ao meu lado, me inquiriu novamente, e eu apenas abaixei a cabeça e respondi bem baixinho que não havia acontecido nada. Ela se apoiou na pedra que estávamos sentados para poder olhar para o meu rosto e insistiu em perguntar, num português arcaico, o que havia acontecido. Pelo meu lado, eu persisti em afirmar que não tinha acontecido nada e me levantei grosseiramente. Toda a praia deserta, como eu não podia imaginar que pudesse ter acontecido em algum dia. Ela continuou falando que eu não deveria ficar preocupado, que o pai dela gostava de mim, que iria autorizar o nosso casamento. Eu já não conseguia me concentrar no que ela dizia. Tentei entender o que estava acontecendo comigo. Fiquei um tempo em pé, olhando para o mar novamente, as ondas que vinham e voltavam, exatamente iguais às que tinha visto depois do cinema. Elas vinham e voltavam, vinham e voltavam, nada mais era idêntico, apenas aquelas ondas, exatamente iguais, durante séculos gêmeas das primeiras ondas, e a senti me agarrando pela cintura. Fiquei um pouco surpreso e me virei assustado e ela já não era ela de novo. Novamente tinha as mesmas feições de Lívia, porém vestia-se de maneira diferente, uma calça jeans boca de sino, uma camisa florida e tinha o cabelo preso à cabeça por uma fitinha pequena. Eu a empurrei para que se afastasse de mim e me desse algum tempo para pensar. Ela se ajoelhou no chão de areia, “Pode dizer, é outra mulher, não é? Eu agüento, pode dizer”. Atrás dela, casas já apareciam aqui e ali. Um ou outro carro antigo passava na rua. Ela ficou ajoelhada no chão, parecia que chorava, e eu paralisado, estático. Tinha vontade de ir lá, beija-la, mandar, pedir, implorar para que se levantasse, afirmar com toda a minha força que nunca houve outra mulher além dela, mas não tive coragem. Alguma coisa muito maior que eu me segurava no chão. Não conseguia concatenar os pensamentos na minha cabeça, não fazia idéia do que acontecia comigo, conseguia escutar apenas duas vozes na minha cabeça, uma que gritava para que eu fosse embora, que esquecesse tudo, e outra que dizia baixinho para ficar ali, para enfrentar toda a situação, por mais inacreditável que fosse, que lutasse por Lívia, qualquer que fosse seu nome, porque ela era a minha mulher. As duas vozes tomaram toda a minha cabeça e começaram a me sufocar, já não enxergava mais nada, só tinha a noção da existência de ambas as vozes, uma aos berros, outra em sussurros, eu tinha que tomar alguma decisão, tinha que acabar com aquelas vozes, tinha que fazer algo... Abri meus olhos e só avistei meu carro parado na praia e para ele andei apressadamente. Tenho certeza que Lívia, que ela me gritou, só não sei o que disse. Eu tinha que resolver toda aquela situação e fugir foi a única coisa que me passou pela cabeça.

Entrei no carro e assim que dirigi um pouco, voltei ao normal, à minha realidade entre uma piscadela e outra. Assim, sem nenhuma explicação, tão rápido e tão imprevisível como foi a ida. Estanquei o meu carro assim que pude e retornei à praia o mais rápido possível. Quando passei pelo banco, Lívia, obviamente, não estava mais ali.

Passaram duas semanas desde a tarde de Icaraí e eu ainda não consegui entender o que me aconteceu. Não consegui achar nenhuma explicação racional, nem qualquer fato sensato e coerente. Nada. O que me parece mais óbvio é o que é mais difícil de se acreditar. Porém, o que mais me envergonho é do fato de ter sido tão covarde. Fugi de uma situação que não tinha a menor idéia de como ia acabar, só por não ter o total controle. Parece que eu só me sinto confortável quando sei exatamente onde piso. Quando aparece uma surpresa, ou algo fora dos planos, eu corro. Vivo apenas a minha vidinha média, tudo na média, no comum, no meio, nunca explorando o máximo que é permitido. Sempre planejado, dentro de limites, dentro das expectativas. Sou um ser comum, que não brilha diferente, que vai ser esquecido pela vida assim que me for. E não adianta ter outras oportunidades, sempre desistirei, fugirei, nunca vou colocar meu rosto para fora. Viverei sempre na defensiva. Isso é, se eu quiser. Isso é, se eu quiser, claro. Eu posso mudar isso ainda. Vou agora ligar para ela. Nunca mais falei com ela, nem ela me ligou, até hoje. Não tenho a mínima idéia de como as coisas se passaram para ela, nem do que aconteceu. Até para isso não tive coragem. Vou pegar aquele telefone que vejo agora, que está a quatro passos de onde estou agora e vou marcar de me encontrar com ela. Na praia de Icaraí.

segunda-feira, 18 de agosto de 2003

as próximas mini-coisas que colocarei aqui são para o concurso de narrativas curtas de um brógui. para saber mais, o endereço é esse: http://www.meguimaraes.com/concurso/

Duzentos anos

Aos duzentos anos de convivência, você vai chegar a conclusão de que estava errada desde o início. Vai perceber que todas as suas preocupações, neuroses e dúvidas eram infundadas. Vai descobrir que todas as minhas palavras eram tentativas de colar uma foto instantânea da minha alma na sua frente. Elas eram impulsivas porque tinham urgência de aparecer, e pareciam exageradas porque não controlamos a nossa vontade. Vai descobrir, tenho certeza, de uma hora para outra, num detalhe meu, ou quando você fizer algo sem pensar. Vai parar onde quer que esteja, numa rua, dentro de um elevador ou na redação do jornal, e, sem nenhum tipo de controle, sem nada que possa impedir, um sorriso brotará no seu rosto. Se você tivesse o controle nesse momento tentaria impedi-lo, mas, mesmo assim, seria em vão. O sorriso explodiria, como acontece com os mais raivosos vulcões. Você terá a certeza que sempre te quis, da maneira como ininterruptamente afirmei. Por enquanto, qualquer tentativa de mudar esse seu pensamento é inócuo. Você não acredita, como costuma dizer. Assim, vivo cultivando, igual a uma plantinha de estimação, essa sua insegurança. Sobrevivo todos os dias com ela. Porém no momento que perceber que tudo era verdade, aquele peso que você carrega bem no meio do seu ser desaparecerá como mágica. E nós continuaremos iguais, inteiramente apaixonados.


Instantes

Num instante, que durou um ou dois segundos no máximo, ele se viu não mais sentado no sofá da sala da casa lendo o jornal, mas deitado na cama de um hospital frio e desconhecido, ligado a aparelhos, com tubos saindo de todos os lados, e logo voltou a si e ficou na dúvida se aquele que estava deitado era ele, e se fosse, quem era o homem que lia o jornal, entretanto, depois daquele momento, concluiu que ele deveria ser os dois, que ele poderia estar em ambos os lugares, não ao mesmo tempo, e ficou boquiaberto, observando a parede branca na sua frente, não mais ali também, agora flutuava dentro da própria cabeça, tinha certeza que já tinha vivido tudo que achava que agora existia pela primeira vez, que o tempo não é necessariamente linear, não, não era a primeira vez, ele já tinha vivido, agora só relembrava como tinha sido, como já tinham dito para ele, quando se está para morrer se re-visita tudo o que viveu, como num cinema, se revê, se transforma novamente no protagonista, também num espectador, e ficou se perguntando se ao chegar novamente no final da vida, se tudo aconteceria novamente, se sonharia mais uma vez a mesma existência, comum, normal, cotidiana, e o fenômeno se repetiria eternamente, e não soube responder porque num baque tinha esquecido por completo dele na cama de hospital e voltou a ler o jornal na sala como se nada tivesse acontecido.


Fotografias

Os dois deitados de barriga para cima estavam ainda ofegantes. Ela, com os olhos fechados, cansada, quase dormindo. Ele, olhos vermelhos insones nas pás do ventilador no teto que giram, giram, giram, num vento quente e abafado. Lembrou de quando a conheceu. De como começou a namorar. Da conversa com o pai dela. Do pedido em casamento. De quando foram transferidos pela primeira vez por causa do trabalho dele. Da gravidez do primeiro filho. Do nascimento da filha. Viu a cor do quarto do menino, a primeira boneca da garotinha, os passeios no parque nos domingos. Ela estava linda na festa do menorzinho. A viagem para o Caribe. A ascensão no trabalho. Ele ensinou as crianças a andar de bicicleta. As viagens a negócio, como ele conheceu quase todo o país. Ela sempre ali, ao lado dele. O reveillon do milênio. A morte do sogro. As rotinas. Os jantares com os amigos. O seu aniversário de quarenta e cinco anos. As promessas não cumpridas. Lembrou de fatos mais recentes, da última viagem sozinho. Torceu o pescoço para o lado e os olhos marejaram. Não sabia como contar para ela que agora tinha aids.

quinta-feira, 14 de agosto de 2003

Novidades

Não é possível ter certeza se ele ainda se lembra do início de tal fenômeno. Faz tantos anos e ele provavelmente já não consegue conceber sua vida de maneira diferente. Parece que, para ele, sempre foi assim. Num sentimento de que as coisas por mais que se apresentem travestidas em novidade, nunca as são realmente. Elas se repetem como num ciclo, que acontece, e já tinha acontecido, antes realmente de acontecer pela primeira vez. Explicando:

Na primeira vez ele era novo, provavelmente uns dezenove, vinte anos. Estava na casa de uma amiga, tarde da noite, uns conhecidos haviam se juntado para tomar um vinho, comer e conversar besteiras. Certo momento, alguém começou a falar sobre Machado de Assis, um autor que ele tinha lido apenas algumas obras embora gostasse bastante. Ficaram sobre a mesa, no meio de toda a roda, dialogando sobre a obra do escritor e um sujeito disse algo sobre “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Ele nunca tinha lido exatamente esse livro. O rapaz descreveu com minúcia todas as aventuras e as desventuras amorosas do personagem falecido e ele escutava com um extremo de atenção. Cada detalhe das paixões do defunto, os seus envolvimentos, as ironias, o humor fino, e ele prendia tudo dentro da alma.

No dia seguinte, como em todas as manhãs, levantou-se e foi para a cozinha tomar um leite com chocolate. Estava de costas para a pia, com o copo na mão e o levantou para toma-lo quando uma idéia assaltou sua cabeça. Não podia doma-la mais, o conceito era soberano, dominava-o. Tinha certeza mais que absoluta que sabia de cor as “Memórias Póstumas...” antes mesmo de o amigo ter contado no dia anterior. Era um fato indiscutível, impassível de erro, ele já sabia do livro, já conhecia todos os trechos narrados. Ele se lembrou da mesa na véspera, com o fulano no lado oposto ao dele, da maneira empolgada que destrinchava os capítulos, e parecia que ele assistia a uma reprise. Já conhecia o livro, não era necessário escuta-lo tudo de novo. A dedicatória para o verme, a história da morte, a volta no tempo para quando o protagonista ainda era uma criança, o seu envolvimento precoce com uma mulher mais velha, a ida para a Europa, a paixão por uma mulher que se casará com um próximo, as traições, a ausência do casamento, a velhice, a morte de amigos e parentes e, novamente, o seu falecimento, tudo parecia já conhecido há muito. Como se ele sempre soubesse disso e não tivesse tomado contato dessa obviedade no dia anterior naquela mesa.

Ele achou estranho, mas não lutou contra essa emoção, até deu um sorriso que tinha algo de soberba. Não era desconfortável sentir o que ele sentia. Era uma certeza que ele possuía, não tinha dúvidas, ele sabia que conhecia toda a história antes mesmo de tê-la ouvido na véspera. O que o incomodava um pouco, talvez a única coisinha, era entender o motivo que o tinha feito escutar toda a história, como se não a soubesse. Isso, ele não fazia a menor idéia do porquê.

O prodígio começou a acontecer com freqüência. Via um filme e, na saída, pensava que conhecia o filme há anos, mesmo que fosse um lançamento visto numa pré-estréia dentro de um festival. Acontecia em livros, em conversas, em cenas do cotidiano, tudo quanto fosse novidade, ele tinha a certeza que já tinha passado por tudo aquilo, antes mesmo de acontecerem pela primeira vez.

Certo dia sem mais nenhuma importância, passeou com a namorada em um parque, dentro de um museu, e disse para ela que, assim como ela, era a primeira vez que andava naquele bosque. Quando ela foi embora, lembrou que já conhecia aquelas árvores, a gruta, o chão de terra cercado pelas gramas, já tinha visto aquilo tudo. Tentou lembrar de quando e a memória não veio. Ficou na dúvida se era a primeira vez ou não que tinha ido àquele parque. Confundiu-se um pouco com a idéia de não lembrar de quando tinha ido. Mas tudo era tão familiar, as luminárias quebradas, as grandes palmeiras imperiais, o vão central largo debaixo das árvores centenárias, a ponte em cima do pequeno riacho que percorria todo o parque. Ele já tinha feito o mesmo percurso outra vez. Mas quando?

Depois, esses sentimentos começaram a acontecer com mais freqüência e por razões muito mais cotidianas. Saía de casa e avistava um carro passando na sua frente e logo depois sabia com certeza que aquele carro cruzaria na frente da sua casa. Dobrava a esquina e encontrava uma barraquinha de balas e chicletes e, ao passar pelo vendedor, lembrava que já sabia que a barraquinha estaria ali, mesmo que fosse a primeira vez que ela lá estivesse.

Todas as visões únicas se desdobravam em outras mais. Até podia se surpreender com alguma coisa qualquer, porém, no instante seguinte, se sentia estranho por ter se assustado com o fato pois sabia da sua existência desde sempre. Era como se ele pudesse desvendar o passado, ao invés do futuro. Sabia que não era vantagem nenhuma saber exatamente o que tinha acontecido no passado, mas, quando se acostumou com o fenômeno, achou, como da primeira vez, uma certa graça disso. Não tinha coragem de contar para ninguém, mas ria sozinho se achando uma espécie de vidente pelo inverso.

Hoje convive normalmente com esses estranhos acontecimentos. É muito complicado para ele falar como as outras pessoas sobre o que aconteceu, pois para ele, era inegável que tudo já tinha acontecido antes e ele sabia que já tinha visto, ou ouvido, tal história anteriormente. Acostumou-se a isso. Vive num constante ir e vir no tempo. Os fatos nunca são exatamente novos para ele por muito tempo, se tornam comuns e evidentes assim que acontecem, contudo, e essa ressalva é a questão, para antes de terem sucedido.

O único fator que ainda o deixava um pouco intrigado é ter a extrema consciência de todo o procedimento. Por mais que ele não passe pelos fatos anteriormente, e esteja de acordo que o episódio era inquestionável mesmo antes dele ocorrer, como ele sabe deles depois? E, pior, tem a noção que ele não os viveu e, ainda por cima, depois sabe deles, como se fossem inconfundíveis? É uma certeza inquestionável e, mesmo assim, improvável. Ele apenas sabe. E ele conhece todo o processo. Ultimamente, porém, ele desistiu de achar a resposta para isso também. Apenas vive essa vida da maneira que consegue. Por mais que pareça caótica, ele se vira bem.

quarta-feira, 13 de agosto de 2003

Qualquer pessoa desavisada que fosse naquela casa não suspeitaria quem é o seu dono. Uma casa simples num condomínio de mansões luxuosas que vive quase o dia inteiro com a luz apagada, “Por economia”, disse sarcasticamente seu dono. Este, um senhor meio careca, meio grisalho, que vive com uma camisa meio velha dois números maiores que o dele, com um short curto e rasgado. Entramos na sua sala, completamente enfumaçada, o dono, cigarro dentro do cinzeiro, assistia televisão e comia algum biscoito.

Paulo Horácio Cunha, professor titular da universidade federal, professor da cadeira de filosofia da comunicação que teve como seus alunos três dos maiores escritores da atualidade não se considera o guru dessa nova geração e um cético em relação à razão, “A razão morreu”, determina.

N – Professor Paulo Horácio, seu último livro, “O elogio da loucura – uma paródia”, é considerado um marco nos estudos filosóficos atuais, principalmente porque ela é uma obra de fácil acesso, para todas as pessoas. A pergunta é ruim, mas inevitável, você se considera o guru dessa nova geração?

Paulo Horácio Cunha – De maneira nenhuma.

N – Mas, você deu aula para três dos mais aclamados escritores da atualidade (Carlos Amorim, Eduardo Linsterberg, Hélio Prattinni)? Não seria coincidência demais?

PHC – Não.

N – Não, desculpe-me, não o que?

PHC – Acho que seja só coincidência mesmo.

N – Mas a sua obra é chamada de definitiva, você não acha isso interessante, principalmente numa época onde se dizia que todas as obras definitivas tinham sido jogadas para debaixo do tapete?

PHC – eu também não acredito nessa história de definitiva. Eu escrevi o que eu acredito, se essa é a verdade, essa é outra história. Aliás, eu concordo mais com você quando você disse que não temos nenhuma dessas certezas pré-fixadas.

N – Exatamente. No seu livro você diz que a razão morreu em algum lugar no final do século XIX, você poderia falar um pouco sobre essa idéia?

PHC – você leu o meu livro?

N – sim, li, achei muito interessante.

PHC – pois então. ‘Tá tudo lá já. Não preciso me repetir. Basta que você copie todas as minhas opiniões e coloque no seu jornal.

N – revista.

PHC – na sua revista.

N – Mas, me diga professor Paulo Horácio, o que o senhor quis dizer com “A morte da Razão”?

PHC – não foi você que disse que a minha linguagem era acessível a todo mundo? Eu até não concordo, porque tem tanta gente que nunca vai entender a idéia de que a razão não pode resolver nada, hoje em dia e talvez nunca pôde realmente.

N – como assim?

PHC – ‘tá bom, você quer que eu fale. Eu estou de bom humor hoje. Vou me deixar levar. A razão, meu caro, não serve mais. Ela serviria se explicasse tudo, se tivesse todas as respostas. Ela renasceu com o Iluminismo para acabar com o domínio da igreja católica sobre os homens. A igreja não dava todas as respostas de maneira clara, mas a qualquer dúvida ela tinha a desculpa da fé e de deus. Nada melhor foi inventado nos últimos séculos, e talvez em toda a história, como deus, ou os deuses. É perfeito. Quem criou o mundo? Deus. Por que minha plantação não rendeu o que eu esperava? Porque deus quis. Deus se transformou em instrumento de resignação. E é tão bom que até hoje ele é utilizado.

N – mas por que a razão não serve mais?

PHC – Como dizia, a razão veio acabar com a supremacia – e opressão – da igreja sobre os homens. Começaram a ver que não choveu o suficiente na plantação do sujeito e por isso ela não rendeu o suficiente. Não foi obra divina. Começaram a se perguntar o motivo de não ter chovido tanto na plantação dele e ai chegamos até hoje, onde tudo deve ter um motivo lógico, plausível e facilmente decodificável por qualquer um.

Porém, o problema ficou implícito, agora. Usando ainda o exemplo do sujeito que reclamou porque ele não teve a colheita esperada. Ele pode culpar a falta de chuva, e isso é fácil, mas, por que não choveu então o necessário? Ele, considerando o hábito, dirá que foi por vontade de Deus. Então vem um meteorologista e diz que é um fenômeno natural, de tantos em tantos anos a chuva escassa mesmo. Mas por quê? O agricultor quer saber. E assim irá para sempre. Você deu o direito do cidadão comum perguntar.

N – mas isso é ruim?

PHC – não, não disse isso. Porém, é difícil afirmar também se é bom. Ao confiar demais na razão, espera-se que ela tenha a resposta para tudo e ela não tem. Por que de tantos em tantos anos a chuva escasseia? Talvez haja a explicação lógica, talvez por causa do ciclo de chuvas, ou por qualquer outro motivo, eu não tenho a mínima idéia do porquê. O que é fato, para mim, é que chega em certo momento que a razão não consegue explicar nada. Nem que seja de uma maneira ampla e irrestrita.

N – Como assim?

PHC – bem, se voltássemos no tempo, se fizéssemos as mesmas perguntas que sempre foram feitas, não conseguiríamos achar nenhuma resposta. Qual o motivo que a filosofia nasceu? Para responder essas perguntas. Podemos responder tudo, menos as grandes perguntas.

N – você quer dizer: “por que estamos aqui?”, “quem criou o mundo?”, “para onde vamos?”, essas coisas?

PHC – é por aí.

N – E você acha que a razão nunca conseguirá responder exatamente essas perguntas?

PHC – eu não tenho a menor idéia disso. Qualquer tipo de aposta agora é um chute. É certo, porém, que vivemos uma era fragmentada. Aliás, o Brasil sempre foi um país ótimo para vermos melhor essa idéia.

N – como assim?


PHC – cacete, tu é muito lacônico mesmo, hein? Bem, vou entrar pelo lado da sociologia de botequim, que é a minha especialidade. Aliás, essas definições, de o que é sociologia, onde termina a antropologia, onde começa a filosofia, está tão embaçada hoje em dia... enfim.

A tal modernidade que é cantada em prosa e verso por vários estudiosos tinha pelo menos um fato incontestável: a bipolarização. Ou eles ou nós, ou direita ou esquerda, ou eua ou urss. Tomava-se partido de um dos lados de maneira cega e inconseqüente, e o outro lado era o inimigo. Não importava a realidade, apenas a ideologia. Acreditava-se fanaticamente nas cores da bandeira que defendíamos.

Assim, quando alguém era católico, por exemplo, detestava os protestantes, ou qualquer dos exemplos que podem ser formulados. O genuíno no Brasil é que aqui, o sujeito ia à igreja católica no domingo, porém, se precisasse de uma ajudinha mais forte e urgente, procurava o candomblé na segunda, fazia algum despacho ou coisa parecida. Não havia uma obediência infinita pela religião oficial. Os motivos para isso são vários e eu sou a pessoa menos apta a explicar cada um deles.

Agora, por outros ‘n’ motivos que não serei eu a te explicar, o brasileiro – com certeza, o mundo também – passeia tranqüilamente entre a razão e a fé.

Aliás, acho essa a idéia mais original.

N – Qual idéia?

PHC – essa idéia, meu filho, de não termos mais nada em que acreditar cegamente. Nem na razão. A razão, a ciência veio para substituir uma a religião nas explicações infinitas. Logo, a razão se transformou numa crença. E nada mais irracional que crer em algo. Só que a razão tem um defeito se comparado com os credos convencionais: ela não tem a carta branca, ela não tem a chave especial, ela não tem a resposta para tudo, ela não tem deus. Por isso a junção das duas vertentes nem é tão, como posso dizer, incongruente.

N – você é a favor de acabar com os julgamentos feitos pela razão?

PHC – que pergunta mais anos 80. Parece que eu tenho que tomar partido de um lado. Razão versus emoção, quando o correto seria razão e emoção.

N – quando você achar que a razão começou a perder força?

PHC – quando começamos a desconfiar das coincidências. Tudo, de vez em quando, parece muito ensaiado. Não pode ter uma explicação lógica para isso. Deve ter algo inexplicável, ainda, por aí.

N – então você acredita em deus?

PHC - De onde você tirou essa idéia absurda?

N – você disse que a razão não explica nada.

PHC – sim, e daí?

N – logo deve ter um outro tipo de explicação...

PHC – Por quê?

N – porque senão não haverá explicação para todas as perguntas iniciais...

PHC – Sim, e daí, repito?

N – você não se importa, então, com as perguntas iniciais?

PHC – não, aí é que mora a minha idéia de que a razão não tem nenhuma credencial. Ainda não sabemos nada. Não saberemos tão cedo e qualquer pensamento para resolver isso é apenas agonizante. Se a vida não tem motivo, e isso é um fato, por que ficar anos da sua vida pensando num motivo para ela? Escolha aleatoriamente qualquer coisa, escolha e mude de opinião, como quem muda de roupa mesmo, a todo o momento.

Essas duas coisas ai embaixo são recentes, oriundas de uma necessidade qualquer de escrever. bem mais ou menos.
doador

As entradas de hospitais são exatamente iguais. Todas. Acho que no mundo inteiro, não haverá uma que seja diferente. Sempre com esse ar frio, impessoal, com esse cheiro de morte, com pessoas zanzando de um lado para o outro. A recepcionista me apontou o andar que deveria ir. Esse, pelo menos, era um hospital particular e, por isso, tinha algumas características próprias a estes. Era um lugar limpo, aliás, que prezava por, além de ser limpo, parecer limpo. Assim, a emergência ficava longe da entrada principal e o cheiro de sangue, éter, álcool podiam ser disfarçados com algum tipo de desinfetante ordinário. Por onde quer que você olhasse havia alguém de roupa azul escura, com máscara e luvas de borracha empurrando carrinhos de limpeza.

Fiz um esforço imenso para pensar apenas na limpeza, apenas no dia-a-dia do hospital, mas quando entrei no elevador já sentia o meu real motivo pulsar mais alto que qualquer outra coisa. Outros pensamentos seriam apenas paliativos, placebos para me anestesiar por segundos, instantes antes da resposta que eu procurava.

Fui no hospital para buscar um exame. Não, não tinha suspeita de nenhuma doença. Deveria ir buscar um exame de compatibilidade. Meu irmão, meu único irmão, aquele que cresceu comigo, jogou bola, viu minha primeira namorada, que brigou comigo e contra mim, aquele que é talvez a pessoa mais presente na minha vida tem um problema nos rins. Vai ter que fazer um transplante. E como a fila para esse tipo de operação é enorme, resolvemos – a família inteira, eu e minha mãe – fazer os exames para saber se poderemos doar um dos nossos para ele.

É incrível como só suspeitamos do problema dele no ano passado, quando a doença já tinha se tornado irreversível. Ele sempre apresentou – segundo me explicaram depois – todos os sintomas. Apenas eu sabia, nem minha mãe suspeitava. Ele sempre passava mais mal que todo mundo quando bebia. Dizia que, às vezes, aparecia alguns traços de sangue na urina, e tinha a pele ligeiramente amarelada. Aliás, bem mais que todos nós da família. Porém, sempre pensamos que somos imortais, que isso não vai acontecer e não nos informamos direito.

Agora, toda semana ele tem esse martírio que é a hemodiálise. Tem que vir aqui filtrar o sangue já que os seus dois aparelhos idênticos, que todo mundo possui, não funcionam mais. Ele teve que largar a faculdade. A mesma a qual tinha batalhado tanto para entrar. Meu irmão, o que montou a banda comigo, o que eu chamava para tomar chope na sexta quando sabia que não havia mais outros amigos, o que jogava videogame comigo.

Estou aqui no elevador e não tenho muitas opções. Basta-me esperar pela resposta que vem num carimbo do hospital em papel timbrado. Vai dizer apenas “doador”, ou “não-doador”. Impessoal, como tudo aqui. Bem provavelmente nem terei um nome, apenas uma sucessão de números. Serei o 1255.

Imagino como deve ser a vida de alguém sem um dos rins. O médico disse que quase não há diferença. Apenas não podemos “dar mole para o destino”. Disse que se há um caso na família, todos os irmãos devem tomar mais cuidado. Isso se resumia a mim, apenas eu. Fico me perguntando, então, e se acontecer comigo, depois? E se eu tiver esse mesmo problema depois, essa mesma merda de doença? Quem poderá ser meu doador? E se eu não conseguir um doador? Será que me tornarei um dependente, como a do meu irmão agora? Estou com medo de não poder doar o meu rim, mas acho que ainda mais de poder doar. Viverei uma vida com limitações, com preocupações extras, além de passar por uma cirurgia que é complicadíssima. E se também houver rejeição? Todo o nosso esforço não será em vão?

Posso estar parecendo um insensível, meu irmão, meu único irmão mal e eu negando ajuda. Entretanto, essa ajuda é um pedaço meu, algo que vem de dentro de mim, literalmente. E talvez seja inócuo. Por mais que todos os exames digam que eu posso doar, nada me garante que o meu rim se encaixará perfeitamente nele. Depois, terão que jogar no lixo um pedaço meu, eu viverei uma vida limitada e tudo para que?

Pronto, o elevador chegou, estou apenas há um corredor da bancada com todos os papéis onde sacarão o número 1255 e me entregarão. Não há nada nos corredores, nenhum barulho além de uma tosse incessante lá bem no fundo da minha cabeça. Talvez só haja dentro da minha cabeça mesmo. A tosse lateja minhas têmporas, sinto meu corpo quente, meu corpo está molhado de suor. A cada piscada de olho que dou, a luz diminui e as lâmpadas ficam mais sozinhas. Minhas pernas pesam alguns quilos a mais que o normal e só tenho que atravessar essa porta de vai-e-vem. Não adianta pensar em mais nada, não adianta dizer depois que não quero mais doar meu rim, se aquele papel disser que eu sou o doador, eu serei o doador, meu futuro está na mão de algo irracional, sem cronograma ou perspectiva. Tudo agora é questão de sorte. Entrego o meu cartão, o documento que me identifica, o número 1255, e a moça, de azul claro, com máscara pendente verde, me entrega o envelope. Pesa uma tonelada ou mais. Sento na poltrona logo a frente da atendente, ela fica me olhando, o que será que ela está pensando nesse exato momento? Será que ela imagina o motivo de eu estar aqui? Será que ela já sabe o resultado do exame e está apenas esperando a minha reação? Ela quer saber se sou um sádico ou um egoísta. Ela me olha com uma expressão de curiosa. É melhor eu ir embora. A poltrona me agarra, me levantar é complicado, porém é necessário, tenho que ir embora antes que a atendente pense que eu não me importo com o meu irmão. Mas, por que todas as pessoas me olham? Por que aquele senhor ali está rindo para mim? Será que ele sabe de alguma coisa?

É melhor parar com essa paranóia. Vou sair desse ambiente, vou sair daqui de dentro, vou passar daquela porta que eu estou vendo agora e vou abrir o envelope.

Se der positivo é quase o meu fim. Tudo o que eu programei para a minha vida terá que ser reavaliado. Negativo quer dizer que eu não sou, não posso ser doador. Isso quer dizer que eu vou viver o que sobra da minha vida exatamente como eu quero, sem nenhum tipo de problema ou entrave, sem limites externos. Também significa que meu irmão terá que viver com menos esperança ainda. Com menos perspectiva de ter uma vida normal novamente. Terá que esperar o resultado da minha mãe sair para saber se ela será a escolhida. Minha mãe, minha única mãe, vai ficar defeituosa por causa dessa doença escrota. Tenho certeza absoluta que minha mãe não vai se importar com o transplante. Ela tem que ser a doadora, assim tudo estará correto. A mãe que se doa para salvar o filho. É quase bíblico. Eu não posso ser doador, eu não quero ser doador...

Rasgo o papel e... Ne. Nem dou tempo de ler o resto da palavra, já corria por todo o corredor, descendo os andares pelas escadas, pulando que nem um vestibulando aprovado. Minha mãe que resolva o problema dele.
parque

Não é novidade para ninguém que eu sou péssimo para dar presentes. Principalmente para as pessoas que são mais próximas a mim, as que eu mais gosto. Acho que por mais que as conheça, sempre ignoro exatamente esse pedaço da personalidade que diz o que elas mais desejariam ganhar. Muitas vezes dou presentes que eu gostaria de ganhar, sem nem ao menos me dar conta disso, e sou eu o maior beneficiário do gesto. O que já me fez passar por bocados nada bons. Por isso, adotei um estilo nem um pouco romântico, que pode e deve ser desaprovado por todo mundo: eu pergunto para a pessoa o que ela quer ganhar. É claro que muitas vezes a resposta é o tradicional “não precisa”, mas com um pouco de insistência, consigo atingir o cerne da questão.

Foi assim que a uma semana do aniversário de minha namorada, perguntei para ela o que gostaria de receber. Adrianinha, a menina mais linda do mundo, a mais delicada, o rosto quadrado, exótico, de apresentadora de telejornal, o corpo pequeno, os olhos firmes, simpática de dar inveja, ficou em silêncio. Não era o jeito dela, ela que conversa com qualquer um na rua, que me causa transtorno em boates e shows por dar trela para todo homem que vinha puxar papo com ela, aquietou-se, me deu as costas e saiu de perto de mim.

Estávamos na minha casa e era logo depois do café da manhã. Ela tinha dormido aqui e eu estava preparando uns sanduíches e o leite para ela tomar. Quando já estava na cozinha, ela me aparece e senta à mesa. Tomamos o café rindo e ela se ofereceu para lavar a louça. Numa dessas viagens da pia para a mesa, eu fiz a pergunta sobre o aniversário dela. Ela se voltou para a pia, não me respondeu nem voltou para buscar os copos que ainda estavam sobre a mesa.

Era o primeiro aniversário dela que passaríamos juntos. A conhecia há tempos, mas, juntos, namorando, era a primeira vez. Levantei-me e me aproximei dela. Entrelacei meus braços pela sua cintura e dei um pequeno beijo no pescoço dela. “O que foi?”; Ela abaixou as mãos cheias de espuma de detergente e a cabeça acompanhou. Me afastei um pouco e ela se virou. Estava com os olhos cheios de lágrimas. Me aproximei para segurar seu rosto, “O que aconteceu?”, “Me leva para um parque de diversões”, ela me respondeu. Sorri, sorrimos, eu a achando cada vez mais linda, ela sem jeito.

“Quando eu fiz cinco anos de idade, pedi para o meu pai irmos para um parque de diversões perto de casa”, Adriana começou a contar com a voz embargada de choro preso. “Meu pai, que sempre foi contrário a sair de casa para qualquer coisa, mesmo que fosse aniversário, dia santo ou qualquer coisa parecida, desconversou e não me levou”, ela virada para mim, com a cabeça baixa, olhando ora para mim ora para o chão. “Fiquei completamente decepcionada. Aquela idéia de ir ao parque não me saía da cabeça, toda vez que via a propaganda do Tivoli Parque na televisão, meus olhos se enchiam de lágrimas e eu ia, chorando, para a cozinha pedir minha mãe para irmos. Ela sempre dizia para que eu tivesse paciência, que um dia, iria me levar. O problema é que minha mãe teve que fazer uma operação nesse ano, nada demais, nem lembro o que ela tinha, mas que a impediu de sair de casa durante um bom tempo. Nesse meio tempo, ela insistia muito com o meu pai para que ele me levasse. Chegava a fazer chantagens do tipo ‘não vou mais cozinhar para você’ e meu pai não cedia.

“No dia das crianças, foi um pouco diferente. Meu pai se aproximou já com uma boneca na mão e me entregou. Eu coloquei o brinquedo de lado e perguntei se eu poderia recusar a boneca para ir ao parque de diversões. Meu pai, como era do feitio dele, saiu de perto para não ter que responder. Lembro que fiquei chorando o dia inteiro. Umas meninas que moravam na minha rua vieram me chamar para brincar, para mostrar os brinquedos novos delas, sei lá para que, e eu não queria sair do meu quarto. Minha mãe dormiu comigo nesse dia porque ficou assustada. Eu não parava de chorar”.

Adrianinha ainda estava encostada na pia da cozinha e eu já me apoiava na parede em frente. Percebi uma lágrima sozinha descendo pelo seu rosto. Ela continuou.

“No natal a mesma coisa, eu enviei uma carta para o papai Noel pedindo que ele me levasse no trenó para um parque de diversões. Quando abri o meu presente” ela deu uma fungada e engrossou um pouco o tom da voz, “eu nem me lembro qual presente era”, desceu novamente de tom, “e descobri que ele não me levaria para o parque de diversões, me senti novamente decepcionada.

“Já estava se transformando num negócio sério e minha mãe prometeu para mim que nem que ela me levasse a pé, nós iríamos para o parque no meu aniversário. Até meu pai amoleceu e disse que não havia problema, que íamos todos para o parque no meu aniversário.

“Acho que nunca esperei o meu aniversário com tanta vontade, com tanta ansiedade. Queria o meu aniversário mais que tudo. Todos os meus amiguinhos da escola já tinham ido para o parque e quando eles comentavam sobre eu saía de perto. Tinha uma certa vergonha por nunca ter ido a nenhum.

“Na noite anterior ao meu aniversário, eu mal dormi. Fiquei rezando para o meu anjo da guarda para que ele me protegesse até o dia seguinte e que nada acontecesse comigo antes de eu ir para o parque. Fui a primeira a ficar pronta lá em casa. Ajudei o meu pai e a minha mãe a se arrumarem e quando entramos no carro, um corcel bege velho que meu pai tinha, eu fiquei na janela do lado direito para poder ver tudo o que passava. Não queria deixar passar nada longe dos meus olhos nesse dia que era o mais importante para mim.

“Meu pai decidiu que deveríamos ir para um parque que estava montado na Praça Onze, porque era o melhor do Rio na época, e fomos para lá. Depois de termos andado por alguns minutos, comecei a escutar alguns cochichos do meu pai para a minha mãe. Algo como ‘e agora?’’, ‘o que vamos fazer?’. Eu era pequena, tinha apenas sete anos, mas sabia que alguma coisa não estava correta. Minha mãe, percebendo a minha cara de preocupação, resolveu falar comigo.

Adriana deu um suspiro longo, para tomar ar e na hora de expirar, senti sua respiração tremular, “O parque tinha ido embora”. Ficou alguns segundos em silêncio. Não tinha mais nada para contar, se virou para a pia novamente e continuou a lavar as louças. Escutava-a fungando e me sentindo incapaz de mudar aquela situação. A abracei novamente pelas costas e disse bem baixinho perto do seu ouvido, “Larga toda essa louça que nós vamos agora para o parque”. Só lembro dela ter se virado sorrindo e me dado um beijo.

terça-feira, 5 de agosto de 2003

Quietude

É incrível como uma simples volta no quarteirão pode fazer com que lembranças escondidas voltem à frente dos nossos olhos. Ou pelo menos aticem a imaginação que andava preguiçosa. Porém, é possível imaginar algo que não tenha ainda sido visto, por isso, o que era impossível de ser lembrado? Talvez não lembramos de muitas das coisas que já vivemos. Ou talvez haja mesmo a tal consciência coletiva que nos faz rememorar de situações que não passamos. Enfim, teremos que passar uma vida inteira para descobrir isso e não tenciono, nem quero ter o desprazer, nem acredito poder desvendar qualquer dos segredos do homem, com “h” maiúsculo.

Quero contar uma história simples de uma volta no quarteirão, como disse no início, sem nenhuma pretensão a atingir conclusões ou moralizar algo ou alguém. Já tinha ido à minha geladeira procurar algo para comer e só consegui achar as grades de sustentação e vasilhames vazios. Decidi atravessar a rua para comer qualquer porcaria que as esquinas travestidas de vendedores nos fornecem. São ambulantes que cumprem uma função social que, por uma série de “regalias” – o não pagamento de impostos, ou de funcionários, por exemplo – eles conseguem atribuir para nós, seres urbanóides, habitantes de bairros de classe-média.

O ambiente é Botafogo, ao lado da estação de metrô, na saída da São Clemente. O local, uma daquelas barraquinhas verdes na quina, uma das únicas abertas. O dia, domingo, é noite, está fazendo um razoável frio para o Rio, uso casaco de moletom, meus óculos no pau do nariz e estou sem vontade de conversar. Peço para o atendente – provavelmente o balconista, o vendedor, o caixa e o dono – um sanduíche que venha o máximo de alimentos, pelo menor preço possível. Ele liga a chapa de aço e pergunta se eu quero me sentar na parte de trás da barraca, já que vai demorar um pouco. Agradeço e digo que não, prefiro ficar em pé.

Vejo ele passar a espátula na chapa que esquenta para tirar a gordura desprendida. Na hora, exatamente como aconteceu outrora com um outro personagem literário ao comer um quitute, aquele ato me lembrou um outro sujeito que fazia um outro sanduíche não sei quando, não sei onde. Apenas raspava a chapa de maneira parecida. Queria tirar todo o óleo antigo e repassava a espátula com cuidado, metodicamente, repetidas vezes. O ato me lembrava um zelo, algo que ele quisesse guardar com carinho, como se fosse importante aquele hambúrguer sair sem muita gordura. Depois, me lembro dele tacar um pouco de óleo de soja novo, e pude sentir o cheiro que evaporou na hora.

Voltei para o presente quando ele colocou a carne e o queijo no fogo para logo em seguida me perder novamente nesse sujeito que trabalhava na minha frente. Quem será que ele era? Um negro, grande, quieto. Será que estava revoltado por trabalhar no domingo? Será que tinha alguma religião? Escutava uma rádio evangélica e essa era uma resposta. Deve se agarrar na igreja como a resposta para todas as suas questões. Deve querer progredir, melhorar de vida, trabalhar no domingo para poder ter dinheiro e pagar um dízimo maior para a igreja. Não dizia nada, e eu olhava para fora, para os táxis estacionados, para a igreja universal do outro lado da rua, para a São Clemente vazia quando uma garotinha de vestes bem pobrezinha se aproximou. Perguntou com bastante dificuldade quanto era o hambúrguer. Ele responde que o simples era apenas um real. Eu olho para a tabuleta de papelão improvisada ao meu lado e vejo que o preço ali não é esse, é maior, mas finjo ignorância. Ele completa afirmando que por um e cinqüenta, viria queijo, tomate, alface e mais um guaraná natural.

A menininha sai e nem reparo quando volta. Já estava no dia anterior, dentro de um ônibus, às sete e meia da manhã, voltando de uma festa, na saída da rodoviária Novo Rio. Ônibus lotado, eu bêbado e cheio de roupas, ao meu lado, uma menina pequena, no máximo sete anos, de óculos de armação branca com detalhes delicados, séria, muito séria. Sua mãe, ou a mulher que estava ao seu lado, comenta algo com ela e ela não responde. Meus olhos querem fechar, mas a menina que franze a testa, com o semblante meio chateado olha para mim com uma certa curiosidade. Não reparei se carregava bolsa, mas considerei que ela não entendia o motivo de eu estar ali, naquela hora, no exato instante que ela chega de viagem com a mãe dela, eu um sujeito bêbado, mal encarado, barbado, ao seu lado dentro do ônibus, uma menininha tão novinha, tão inocente. Será que é sempre assim onde meu pai mora? Eu poderia chutar que ela pensou nisso.

Saltei perto de casa, porém a imagem da pequenina com a testa enrugada não saiu da minha cabeça. Ontem mais um personagem veio fazer companhia a ela. Andava na São Francisco Xavier, na Tijuca e chutava as pedrinhas do chão como a maior diversão do mundo. Até que de uma casa muito antiga – não me surpreenderia se fosse do século XIX – duas mulheres, que juntas passariam dos cem anos, provavelmente mãe e filha, ambas sozinhas, a menor encalhada, saíam pela janela para observar o movimento da rua. Quantas vezes a velhinha tinha visto a mesma cena, a mesma rua, com os mesmo carros? As duas quietas, sem se importar com o tempo ou qualquer dessas necessidades contemporâneas. Observavam a rua porque faziam isso há anos, décadas talvez, porque era uma tradição.

Tradições não se explicam, nem desejam serem explicadas. Voltei para o domingo passado quando a menina decidiu-se pelo hambúrguer de um e cinqüenta. Recebi o meu, paguei o meu e tomei o meu caminho. Sei que não tinha muitos motivos para ter pensado nisso tudo, apenas a idéia foi mais forte que eu. Tomou as rédeas e guiou um pouco a minha vida, sem que eu pudesse nem reclamar.