segunda-feira, 16 de agosto de 2004

‘Soma’

Deixo por escrito estas linhas para que não haja nenhuma dúvida relativa ao procedimento que tomei e suas infalíveis conseqüências. Não quero ser entendido por conhecidos, ou pessoas que nunca pronunciaram meu nome, com sentimentos que na verdade não possuo. Para isso, também acredito ingenuamente que serei sincero aqui neste papel, não deixando ausente qualquer pormenor. Por mais que haja tentativas, a verdade total não sai por escrito, nem nunca é pronunciada em voz alta, e quando atinge seu ponto máximo, consideramos tal obra como um marco – detalhe que não figurará (creio eu) neste destino literário.

Claro está que tomei o ‘soma’. E antes que as conclusões se premeditem, afirmo que o meu intuito não é e nunca foi o do extermínio próprio. Pelo contrário, gostaria de continuar para ao menos ter a possibilidade de decodificar ao máximo possível todo o sentido de tal droga. O que eu vi, e arrisco-me a transmitir – mesmo que admita da impossibilidade de abarcar todo o complexo sentimento que vivenciei –, é o mais próximo que se pode alcançar da plenitude em felicidade. Uma hipótese: é por isso que alguns, nas suas últimas horas, descrevem uma aproximação com Deus. Não há termos de comparação viável no mundo conhecido e racional.

Acredito, também, que vem daí a inevitável pós-vida efêmera. Como se naquelas horas (quem me convencerá que foram instantes?) consumíssemos todo o resto de nossa energia. Como se houvesse uma cota em toda a vida e resolvêssemos utilizá-la de uma vez só. É uma tese mística demais para aparecer sob qualquer égide, eu sei, mas admito a crença para mim mesmo sem muitos pudores.

Quando o entorpecente era estudado, na época em que seu consumo ainda era permitido, e, principalmente, receitado para pacientes terminais, concluíram que o desgaste provocado no músculo cardíaco e no tecido pulmonar por ocasião do aumento extraordinário do metabolismo fazia com que o óbito fosse inevitável em pouco tempo. Sinto agora, por exemplo, alguns sintomas de uma doença que me era inexistente. Meu nariz sangra, há lenços de papel ao alcance de minhas mãos, a cabeça lateja e estou extraordinariamente zonzo.

Contudo, essas adversidades em nada diminuem a minha vontade de escrever esta narrativa. Pelo contrário, só aumenta a confiança nesta minha atitude. Não me arrependo e, provavelmente, nessas últimas horas não cambiarei de opinião quanto a isto.

O governo, num lapso de liberalismo (num contraponto à tradicional atitude conservadora), por alguns meses liberara o consumo de ‘soma’ para o fim da eutanásia. Era a única forma permitida para que um doente sem esperança pudesse dar fim ao horror que são os últimos dias. Muitos não resistiam não voltando da ‘ausência’ – como chamam o estado em que o consumidor fica durante o consumo da droga. O entrave, argumentado pelos comandantes deste Estado-nação, é que em pouco tempo tal costume não ficou apenas restrito aos doentes, mas se alastrou rapidamente pelas camadas juvenis da sociedade.

O incrível, me parece, é que tiveram a convicção de que, ao proibi-la, colocando como crime hediondo o porte e a venda da droga, o decreto faria com que houvesse uma diminuição em seu consumo. O óbvio aconteceu e é constante. A ingestão do entorpecente só aumenta por causa da áurea mística que envolve as pílulas, e não importa as mentirosas publicidades que se mostram em qualquer lugar. A campanha pessoal, de quem esteve presente, de quem já ouviu algum relato, de quem ler isto aqui, fez, faz e fará muito mais pelo ‘soma’.

Minha tontura aumenta. Demoro mais tempo para conseguir digitar poucas palavras, meu raciocínio fraqueja, tenho lapsos de ausência; mesmo assim, continuarei até cair, tenho que fazer isto. Não é possível haver tamanha inverdade sendo disseminada como única. Meu intuito é combater esta anomalia.

Não é debatido, por exemplo, a absurda interferência do Estado na existência privada dos cidadãos. Quem são os homens para decidirem sobre a vida e a morte de seus iguais? Se o indivíduo crê que ele próprio pode deliberar pelo seu fim, o que deve ser feito para impedi-lo? Inclusive: deve ser feito algo? Qual é o motivo para que queiram que continuemos vivos? Por quê? Somos condenados a um pena de vida, onde a privação é uma constante. Por que não optar por alguns momentos de felicidade completa, o máximo que alguém já chegou ou haverá e sem depois?

Há barreiras econômicas, claro, é fácil identificar. Num raciocínio raso: haverá menos mão-de-obra, os salários aumentariam, o exército de reserva decairá etc. Ainda, podemos considerar que, pelo crescimento na procura pela droga, seu preço será constantemente inflacionado. Em pouco tempo, pessoas deixarão todos os seus pertences para os vendedores dos pequenos comprimidos - do tamanho de um anticoncepcional. E, como acontece com todas as outras drogas ilegais, sem um controle da qualidade, haverá manipulações na fórmula original para diminuir o seu efeito e o que ocasionaria na provável criação de viciados, à mercê do tráfico.

Há, ao mesmo tempo, outras questões de cunho filosófico (como já foi sugerido por autores de verdade): quem é responsável por minha vida além de mim mesmo? Se sou totalmente apto a viver em sociedade, se tenho a necessidade de cumprir com meus deveres e a obrigação com meus direitos, quem, além da fatalidade, deve ter o poder de morte fora eu mesmo?

As respostas são infinitas e a discussão não é o meu tema, nem conseguiria ser claro quanto a isso nesse momento. Anseio, com meu resto de força, propagar os sintomas do ‘soma’ e a sensação que minha essência está se desprendendo do meu corpo e deixar as verdades absolutas para quem quiser alcançá-las.

Não importa a maneira como consegui meu comprimido, nem quanto paguei por ele (embora, admito, não foi pouco). Estava ontem em minha casa, com as luzes apagadas, em pé, perto da mesa de centro. Recomenda-se deitar logo após a ingestão porque não há como se manter de pé e o inevitável tombo causaria uma dor desnecessária, piorando a ‘ressaca’.

Obedeci ao protocolo e me acomodei no divã. Em pouco tempo, os efeitos começaram a aparecer de um jeito que suspeitei ser auto-sugestão. Tentei fugir um pouco o foco das projeções que apareciam na minha mente como reais. A minha luta durou alguns poucos segundos até que desapareceram por completo as noções de realidade e ‘viagem’. Logo estava num mundo onde as regras eram minhas. Eu decidia, eu escolhia, eu tinha o poder da eternidade e da rasura. Lembranças de assuntos há muito esquecidos, memórias que eram extremamente alegres, pequenos detalhes da minha vida que haviam sido guardados em local inacessível, situações tão pessoais que ninguém mais saberia entender, detalhes só meus que jaziam em algum lugar no fundo de meu inconsciente e que não visitava há vinte, trinta anos inteiros. Era tão confortável, tão seguro, envolvente, um calor me absorvia sem parecer em nada com opressão. Sentia novamente uma alegria infantil que se perde em algum momento da vida e a encarava brincando como se fosse tátil. Ao mesmo tempo era um observador de um ‘eu’ menino e o próprio garoto que corria num campo de areia sozinho. Era como se eu tivesse a possibilidade de voltar no período de minha existência que desejasse e fosse capaz de mudá-la completamente, como um ator que conhece o desfecho do enredo. Poderia viver novamente as melhores situações de minha biografia, aquelas onde tenho um orgulho mais intrínseco. E também de corrigir por completo as atitudes que me arrependia. Era uma chance de alterar por completo a memória, construindo da maneira como queria, tendo a visão final da história como parâmetro.

Eu era o futuro, o único que sabia como ia terminar, que possuía a chave final de todo o mistério, que havia decidido por tudo, e agora, também, a possibilidade de mexer no que ficara para trás. Não é algo pessoal, querer modificar as lembranças, fazemos porque nos sentimos impelidos a tentar. E se temos essa oportunidade de maneira prática, a mudaremos para a perfeição.

Agora que escrevo, me sentindo cansado, com uma dificuldade enorme de respirar, já não sei qual fora a realidade, o que realmente aconteceu ou o que é a verdade afinal. Se perguntasse às pessoas que compõem a minha memória, será que elas, em algum momento, teriam a lembrança igual a minha? Ou, pior, será que algum dia a tiveram, já que o passado é intransferível e, na certeza da palavra, mutante?

Não sei mais responder a perguntas. A única vontade que tenho agora é terminar de escrever e deitar. Apenas isso.

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