sexta-feira, 26 de novembro de 2004

Atuações animadas

Salvo sob o convite irrecusável, admito que não verei “O expresso polar”, mas já fiquei impressionado. Nada pela trama – um clichezaço de natal –, menos pelo resultado final, já que não tenho know-how suficiente para saber se esta animação é mais “realista” que todas as outras produzidas. Mas, pelo press kit que tenho em mãos explicando como foi feito a tal performance capture.

A “Época” diz que é uma evolução do que fizeram com o Gollum em “Senhor dos Anéis”. Tom Hanks (que interpreta as cinco personagens principais masculinas) aparece em fotos vestindo um macacão azul e, de acordo com a revista, um computador registrava cada movimento dele. O material impresso que recebi afirma: “diferentemente dos sistemas de captação de movimentos existentes, que são limitados em alcance, este poderia gravar ao mesmo tempo movimentos tridimensionais, com alta fidelidade facial, e movimentos corporais de diversos atores, por meio de um sistema de câmeras digitais com cobertura de 360 graus”.

Como perfeitamente resumiu o Tambarotti, Hanks foi scanneado. E, mais grave, em 3D. Robert Zemeckis (a voz por trás do “ação” e do “corta”) tinha em mãos, um ator, em todos os ângulos possíveis, e poderia inseri-lo em qualquer contexto, sob qualquer condição. Ele mesmo admite: “eu podia filmar um two-shot e dois closes, ou deixar o close de um ator ocupar toda a cena como se faria na ação ao vivo. Então podia fazer o contrário com um segundo ator, ou outro two-shot”. As possibilidades crescem ad infinitum.

E é daí que, talvez, nasça o problema dessa nova tecnologia aplicada ao cinema. Zemeckis até brinca com o fato: “a boa notícia é que qualquer coisa é possível. A má é que qualquer coisa é possível”. Até mesmo para enxergar a cena filmada (ou gravada como preferem os puritanistas), foi necessário criar uma janela onde o diretor e equipe assistiam a todas as interpretações. Mas, onde colocar essa janela? E, depois das performances serem captadas, qual delas escolher, já que ele tinha absolutamente todas?

A "Época" compara este filme a “O canto de Jazz”, de 1927, primeiro filme falado da História. Um pouco de exagero. Mais contido, o Zé já afirmou que grande parte do cinema do futuro será de animação para adultos, quando conversamos sobre “As bicicletas de Beleville”. Li algo parecido no Ricardo Calil à época do lançamento de “Shrek 2”. Quando os desenhos forem idênticos à realidade, por que o diretor usaria sua paciência para agüentar atores estrelas? Mas, e o espectador, o sujeito passivo dessa ação, será que percebe essa mudança?, me cochicha aqui atrás, neste exato momento, o Batata. Bem provavelmente não. Ou ainda não, já que as mudanças são graduais e lentas. Mas é inegável que a quantidade produções em desenho animado só cresce, e tende a crescer ainda mais. Para todas as respostas acima, só nos resta aguardar.


sábado, 20 de novembro de 2004

Da alvorada ao crepúsculo

Há anos atrás, um grande amigo meu se repetia ao me contar sobre um filme que ele havia gostado muito e que eu deveria ver. Achava curioso porque ele não é desse tipo que cometeu o erro de fazer comunicação, logo não é viciado na tríade: livros, cinema, música.

Mais exótico ainda foi quando uma menina que era a definição de jornalista tradicional (não o tipo hype) veio me confidenciar que, de todos os vários filmes que ela assistira, este, o mesmo dele, era o seu preferido.

Por anos fiquei com essa pulga, não só atrás de minha orelha, mas percorrendo todo o trajeto entre um ouvido e outro. Até que ano passado (não estou muito certo quanto à data) assisti à “Antes do amanhecer”, de Richard Linklater.

Esqueça o caráter cinematográfico e vamos falar de outra coisa mais inominável. Este diretor americano sofre uma forte influência do teatro, isso fica claro em cinco segundos de filme. Este longa em questão, por exemplo, não apresenta outra situação dramática além de um diálogo entre os dois protagonistas, um americano e outra francesa, que decidem passar uma noite em Viena por estarem viajando sozinhos pela Europa. Logo, não é cinema da maneira como o Batata gosta ou como estamos todos acostumados. Mas olvidemos disso por alguns instantes.

Antes, desse mesmo moço, já tinha visto, revisto e gravado em VHS “Waking Life”, uma animação surrealista, capaz de proporcionar dores de cabeça nas vistas mais sensíveis. E, também, que não é nada além de algumas esquetes teatrais filmadas e animadas por programas de edição de imagem. Vi outro, depois, chamado “Subúrbia”, este uma adaptação quase literal de uma peça ganhadora de alguns prêmios em Nova Iorque.

Então, o que torna esse diretor diferente de todos os outros, se não considerarmos seu caráter de ribalta? Seus diálogos. São excepcionais. Abordam assuntos completamente inéditos em qualquer cinematografia contemporânea (talvez somente na verborrágica francesa). Em “Waking Life”, por exemplo, há conversas inteiras sobre filosofia, de botequim, ou mais séria, existencialista, ou qualquer outra que eu não tenho a menor idéia de qual corrente de pensamento.

Mas, talvez isso seja o maior problema da animação. Falta conexão entre os pequenos curtas que formam o longa e entre a história toda e o espectador. Fica um sarapatel de nego que, se você pestanejar, perde alguma coisa. E, também, há um calhamaço de informações que tende a ser muito enfadonho para aquele que não estiver no clima.

OK, “Antes do amanhecer” não tem nenhum desses cacoetes. Como dito, o casal passa a noite na Áustria e, claro, conversam sobre os assuntos mais diversos possíveis. Criam-se situações para os dois passarem, mas o que importa é o diálogo. Na época, ambos são jovens, esperançosos e, o mais marcante, românticos até o último biquinho dela e petulância dele. Era isso que o meu amigo e a menina mais haviam gostado, óbvio. Ambos os meus chegados eram (são) visionários, imaginam um mundo que pode ser melhor, e neste mundo, claro, todos já terão encontrado suas caras-metade.

Talvez por ter assistido ao filme numa época diferente que eles, muito mais velho, ou por ser um cético ao natural, via naquela longa conversa, uma sucessão de sonhos impossíveis de se realizarem ou simplesmente cinematográficos demais para mim. Simplesmente o filme não dispunha dos códigos de comunicação necessários para falar comigo, era de uma felicidade eterna (mesmo que durasse apenas uma noite) que eu não cria.

OK dois. Nove anos depois, o diretor, incentivado sei lá pelo que, resolve filmar uma seqüência. Como em toda produção que é retomada décadas depois, senti um cheiro forte de mercantilismo barato no ar. Entretanto, fiquei curioso em saber como andavam as duas personagens com quem em outra oportunidade passara uma noite junto.

E foi então que “Antes do pôr-do-sol” me fisgou por completo. Se antes o americano e a francesa eram sonhadores, agora eles são tão ou mais céticos que eu. Por vias diversas (ele através de um casamento frustrado, ela por inúmeros relacionamentos falidos), ou por caminhos em comum, (os dois não terem se encontrado na data combinada), ambos haviam perdido a esperança no romance como algo perfeito e sem falhas.

Antes, contudo, percebemos que os dois protagonistas são “arquétipos” das personagens feminina e masculina. É claro que os dois não são exatamente iguais a quem assiste ao longa. Mas é impossível não se identificar com alguns detalhes de comportamento de ambos. Ela fala exageradamente, ele quer colocar piadas em suas vírgulas. Ele queria estar rodando o mundo numa motocicleta, ela mente sobre a memória que tem do último encontro deles. Ela faz alguns planos para tentar se manter em pé, ele quer apenas acordar mais um dia e continuar. Ela chega às lágrimas falando de como se lembrava da noite em que passaram juntos, ele fica desesperado quando ela, anteriormente, fingira não se recordar de “detalhes”. Ele acha que está jogando a vida fora, ela precisa de relacionamentos à distância porque não suporta um homem por muito tempo.

O que me deu alguma esperança (em mim mesmo, deixemos claro), foi que, até os mais incrédulos, e orgulhosos por isso, podem se pegar num lapso de otimismo. (Quem não viu o filme, pare de ler aqui). Ao final, ele vai deixá-la em casa, ela começa a dançar para ele. Ele tem que pegar um avião para ir embora de Paris, mas fica sentado. Ela lhe dirige a palavra: “Você vai perder o avião”, ele dá de ombros. Fim. Não se sabe, à exatidão, se ele sairá dali em segundos, ou se ignorará sua vida do outro lado do Atlântico na tentativa de ser tudo aquilo prometido pela imaginação, pela sua criação, pelos seus sonhos. Antes, ele próprio sugerira sutilmente que, de acordo com sua decisão, com o que você achasse que fosse acontecer, você poderia ser classificado ou como cético ou como romântico. E ele fica. Claro.

terça-feira, 9 de novembro de 2004

Polly Valente

Viajar mais de 400 km e gastar uma grana impensável só para assistir a um show de uma cantora completamente desconhecida do público em geral. Para muitos mortais essa frase é de uma incoerência atroz. Mas, se há uma resposta, por mais incompreensível que possa parecer é: faria novamente.

Ô, se não faria. Principalmente depois de assistir à inglesinha ao vivo, tomando proporções gigantescas (curioso é que todas as – poucas – matérias que li ressaltavam esse “engrandecimento” da cantora), com seu tradicional vestido vermelho de manga única, indo do sussurro ao urro, não tenho dúvidas. Valeu a pena ver Polly Jean Harvey.

Sua banda é formada por apenas três sujeitos, e ela própria, mas que parecem se multiplicar por inúmeros, tamanho é o peso que sai das caixas de som durante a apresentação. Originalmente são: 1) sujeito de moicano que pilota o baixão ocupando todos os espaços vazios; 2) magricelo de camisa flanelada quase grunge, cabelos despenteados e suados, na guitarra distorcida, barulheira e com pouquíssimo suingue; 3) um careca com as veias da cabeça altas por esmurrar a bateria; 4) PJ e nada além ou aquém.

Durante o show, entretanto, eles cambiaram suas posições demonstrando que, para tocar com a moçoila, devem saber cruzar e ainda correr para cabecear: o careca assume um teclado para dar os climas; o guitarrista vai para a bateria aumentar o tribalismo, há momentos de duas batucadas diferenciadas e ao mesmo tempo; o baixista pega a placa de substituição para ser o tecladista. Polly Jean empunha sua guitarra formato violão vermelha para combinar (parecida com as utilizadas por B.B. King) e constrói todas as bases.

Foram momentos sublimes. Músicas mais “batom borrado” que as originais sem, para isso, parecer que estávamos num show de heavy metal (que, aliás, foi a impressão que tive durante alguns momentos dos shows do Primal Scream). Era uma apresentação intimista, pequena. Ela parecia cantar para cada um de nós, independentemente do poderio de todos os instrumentos. Poderíamos assisti-la sentados, num lugar menor. Como afirmou Tamba, deu vontade de chorar. Como disse Marco, “dormiremos felizes”.

sexta-feira, 5 de novembro de 2004

Vilã boa é vilã que apanha

Há umas semanas, Maria Do Carmo descontou toda a sua raiva de mãe que teve a filha raptada espancando a própria seqüestradora. Se a linha anterior pareceu indecifrável, principalmente porque as personagens eram de todo desconhecidas, melhor para você. Os ossos do ofício me fazem saber quem são elas, quando tal fato aconteceu e ter a noção de que o público em geral adorou e delira quando a mocinha consegue se vingar literalmente com as próprias mãos.

Explicando: Na novela das 9h, ‘Senhora do Destino’, a primeira filha de Do Carmo (Susana Vieira), Lindalva (Carolina Dieckmann), havia sido seqüestrada por Nazaré (Renata Sorrah) ainda na maternidade. História obviamente inspirada no caso do Pedrinho, aquele moleque de Goiás que só conheceu a verdadeira mãe com quinze anos, já que a mulher que o criou era uma ladra de bebês, inclusive estando nesse momento na cadeia.

OK, mas para que isso tudo?, é necessário perguntar num terceiro parágrafo. Este é o mote. Há várias novelas esse expediente (espancamento de uma personagem má por uma boa) tem se repetido e, sem nenhuma exceção, os resultados de audiências são absurdamente altos. Os noveleiros já fizeram um apanhado pela cabeça, mas ajudo aos outros mais atarefados com dois exemplos mais recentes: Maria Clara (Malu Mader) e Laura (Cláudia Abreu) em ‘Celebridade’; e Doris (Regina Alves) de ‘Mulheres apaixonadas’ que detestava os avôs e apanhou do próprio pai.

Numa conversa de botequim, uma amiga argumentou que as agressões eram, ao menos, para demonstrar que as mocinhas agora fazem coisas impensáveis na teledramaturgia de cinco, dez anos atrás. Entretanto, não foi ressaltado que, independente dessa ‘evolução’ no conceito da ação, estamos ainda dentro do mesmo esquema maniqueísta, boazinha sofre nas mãos do mal, boazinha vence o mal num golpe. O que mudou, apenas, foi que o ‘golpe’ agora não é mais força de expressão.

E o povo adorou. Todos os picos de audiência da novela sempre estiveram nos capítulos desenlaces. Essas cenas de violência quase explícita (sempre muito mal feitas, pessimamente produzidas, por sinal) funcionam como um ‘plot point’ perfeito. A partir daquele momento, as mocinhas já não serão mais tão submissas aos maltratos da malvada.

O que difere é apenas a incitação à violência. A mocinha não mais se contenta com uma vingança moral, mas tem que extravasar toda a raiva que foi acumulando em sua personagem desde o início da novela. Não é de assustar que a mãe de Pedrinho – a espectadora padrão, para quem a novela atual foi ‘feita’ – disse que a surra de Do Carmo funcionava como se fosse ela a bater na mãe meliante. O público vai ao delírio junto.

O péssimo é que os valores que estão sendo passados – além da tradicional fantasia de que as coisas tendem a se resolver independente da vontade das pessoas – é que para se sentir bem, tranqüilo consigo mesmo, você deve bater em seu inimigo. Quase como nas cavernas. A civilização do diálogo é passado, ou pior, ultrapassado.