quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Masturbar

E então Ramon disse: "Let's play rock and roll", assim mesmo, em inglês, porque era a língua de Kurt Cobain e Tom Yorke, seus ídolos, e contou "one-two-three-four", como se fosse um dos Ramones, porque éramos dessa geração e começamos a tocar. Como sempre, o bar estava meio-cheio, meio-vazio, dependendo de quem o enxergasse. Não somos um sucesso, mas também temos amigos. Sempre há quem pague o couvert. Claro que não dá nem para a conta de luz, mas ninguém aqui tem essa como a principal fonte de renda – infelizmente.

Eu sou o baterista da banda. Nos apresentamos todas as quintas, um dia que seria de médio movimento mesmo. No fim de semana, temos que ganhar algum dinheiro com o estabelecimento. O bar é uma parceria entre alguns amigos de faculdade – eu incluído – para termos um lugar para escutar a música que gostamos, comer bem e encontrar conhecidos sem precisar enfrentar nenhuma fila ou esquentar a cabeça. Jonas sempre brincava, durante a faculdade, sobre o seu "Masturbar". Um dia, ele se emputeceu com o trabalho, resolveu pedir demissão e, com o dinheiro do fundo de garantia e ajuda financeira de todo mundo, montou-o. Temos um amigo que gosta de fazer drinques e o chamamos para ser o barman. Outro gosta de cozinhar e ficou responsável pelo menu, mais um é DJ e assumiu as carrapetas; a decoração ficou a cargo do Negão, que desenha, junto com a mulher do Jonas, que comprou os móveis do salão e todos os apetrechos femininos (luminárias, tapetes, copos etc.). Aline estava desempregada na época da inauguração e virou a hostess. Enfim: todos têm empregos fixos nas suas respectivas áreas e ganham um extra pelo bico. A verdade é que todo mundo trabalha no Masturbar porque gosta. A grana que levantamos não é nada demais. Às vezes dá até prejuízo. Mas o lugar se transformou na nossa casa em comum. Uma espécie de república, literalmente pública. Jonas é quem organiza tudo. É uma espécie de gerente-administrativo. Ao fim do mês, presta contas a todos e mostra balancetes, planilhas e gráficos. Todos recebem um dinheiro fixo da casa e o que sobra da grana – se sobra – ou é reinvestido no bar ou é dividido pelos sócios. A organização é uma espécie de condomínio, como os Diários Associados. Ou uma cooperativa. Ou seja lá como isso é denominado.

Participo da empreitada desde o início – sou uma espécie de sócio-fundador – pelos motivos acima, mas, principalmente, porque tocar bateria é a atividade que mais me dá prazer no mundo. Posso passar horas no banquinho com a baqueta na mão, atrás de bumbo, pratos, tons, que não percebo o tempo passar. Na noite de quinta-feira, não há Papa que morra que me faça ficar na redação. A propósito, meu ganha-pão é o jornalismo. Sou editor de um telejornal nacional. Se não coloco o nome do dito-cujo aqui é porque não o considero importante, apesar da audiência. O salário não é ruim, não posso reclamar. A montoeira de prêmios que já recebi parecem me dizer que a grana ao fim do mês é justa. O problema é que não tenho nenhum tesão por isso. Faço tudo no automático. Tento trabalhar bem, de maneira correta, e não deixar passar furo, mas nada é empolgante. Já virei noite dentro daquela sala imensa e fechada, sem nenhuma ventilação além do ar-condicionado, já entrevistei ministro, governador, bandido, já consegui matérias exclusivas, já acabei com a carreira de militares com informações privilegiadas, já sustentei programas de assistência, mas nada disso é importante. Se me levanto diariamente e vou ao trabalho é para manter o luxo de poder sentar às quintas-feiras à bateria d'Os Escroques.

A verdade é que não sou um bom baterista. Dos músicos (Ramon na guitarra e voz, Alexandra no baixo e backing, Índio na outra guitarra e eu), sou, sem sombra de dúvida, o pior. Todos sabem disso, ninguém faz questão de esconder e essa sinceridade não me magoa. Já o fato em si, ou seja, eu ser ruim nas baquetas, ah, isso sim me incomoda. Porque por mais que eu pratique – e todo o meu tempo livre eu fico em casa a batucar: cheguei a reformar um quarto colocando proteção acústica, para poder treinar mais – por mais que eu me esforce, parece que não é o suficiente. Já melhorei muito, mas nunca serei igual aos outros escroques. Nem me comparo aos grandes bateristas da História do rock (Neil Peart encabeçando a lista), mas queria me equiparar aos meus amigos.

Já pelo outro lado, na minha versão Jeckill, sou considerado bom. Ou seja, não faço um esforço absurdo para tal e tenho recompensa. Claro que já saí exausto da redação, é até comum que isso aconteça. Mas imagino que este é o resultado normal de todos os trabalhos do mundo em que a tensão é alta o dia inteiro. A questão é: eu não me dou por completo para o jornalismo. Sou, na minha avaliação interna, burocrático, mediano, medíocre até. Faço o mínimo para que não me mandem embora. E esse mínimo é visto como algo acima da média.

Não pensem que eu quero legislar em causa própria, não, por favor. A causa é outra. Estou mais reclamando do mundo e questionando o sucesso que me elogiando. Também não é uma questão de baixa qualidade dos coleguinhas. Há sujeitos sensacionais sentados ao meu redor naquela redação. Gente com doutorado em História, arte, sociologia, que sabe falar cinco, seis línguas. A média cultural é elevadíssima. A grande maioria tem a mesma quantidade de prêmios que eu, se não mais. Ou seja, não é uma questão de dizer que os meus pares são ruins, mas que, talvez, sem querer, eu tenha talento para o jornalismo. Mesmo contra a minha vontade. E, por outro lado, na música, que é a minha paixão, estou qualificado na vergonhosa casta dos "esforçados".

Imagino se tal situação não ocorre exatamente por isso. Por estar aficionado com a banda, eu fico tão tenso que não absorvo a essência da música. Para mim, tocar seria algo cerebral, nunca entranhado na minha carne. Talvez se não me importasse tanto, se deixasse para lá, talvez conseguisse ser contaminado com essa espécie de radiação. O pensamento, a preocupação seria uma barreira entre mim e a música. Com o jornalismo, como eu não dou a mínima para ele, seria exatamente o oposto. Ele viria atrás de mim. Eu faria tudo no piloto automático, teria o faro para a notícia marcado no meu DNA, o texto jornalístico tatuado no meu cerne.

Talvez eu devesse apenas relaxar com relação à música. Exatamente como acontece naquela fábula oriental em que a monja estuda diariamente para alcançar o nirvana e só consegue quando um dia, em uma caminhada de volta do riacho com um pote de água, tropeça e deixa o pote cair. Ao se assustar com a água desperdiçada, ao se desligar de sua procura constante pela iluminação, ela a encontra. Talvez não consigamos encontrar nada que procuremos. O ruim é que, infelizmente, não acredito nisso.

Para mim, o problema é a simples falta de talento. Para a música, apesar dos meus esforços, tudo é em vão. Não nasci talhado para isso. A minha compleição física não é a de bateristas. Tenho braços curtos, sou baixo e a minha coordenação motora é risível. Já para o jornalismo, parece que meu caráter foi escolhido a dedo: sou extremamente curioso, gosto de ler, abomino injustiças, e não me saio mal escrevendo. Ou seja, dois pesos e duas medidas.

Entretanto, ultimamente, estou ficando cansado de procurar um sentido no mundo. O que faço, agora, é estudar, mais e mais, para tentar, com esforço, melhorar a minha técnica. Sei que os meus companheiros de banda não vão me mandar embora. Todos nós não temos intenções comerciais além do Masturbar. Sabemos das nossas limitações e do nosso pouco tempo livre para tocar o projeto. Temos até algumas músicas gravadas e colocadas na internet. Quem sabe, assim, sem pretensão, conseguimos alguma coisa?

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

O novo Jeff Buckley

escrevi sobre ele. Já escrevi esse mesmo título num e-mail para um amiga. O último álbum que ele lançou foi em 2005. Mas não importa: a minha descoberta do ano foi Sufjan Stevens. Por isso, inclusive, o título deste post. Tudo porque, 11 anos atrasado, descobrira o Buckley filho ano passado. E, principalmente, porque, com os dois, fiquei vidrado em apenas um álbum. "Grace", do filho do Tim, "Illinoise", de Stevens. Será que terei uma grande surpresa positiva na música por ano? (Qual será a do ano que vem?)

Mas, estava pensando nesse título quando li no wikipedia: "He has contributed covers of Tim and Jeff Buckley and The Beatles to various tribute albums." Será que eu, agora, gosto de folk? Será que eu estou ficando velho?

Tudo isso porque eu ouvi, hoje, e só hoje, o segundo (na minha cronologia e na dele também, mas por vias tortas) álbum: "Michigan".

Apesar de ter algumas idéias melódicas que se repetem em "Illinoise", o álbum sobre o estado natal é simplesmente excelente. De chorar de bom.

sábado, 11 de novembro de 2006

Ainda o seqüestro

Dia seguinte ao seqüestro de Francisco Cuoco, mais uma situação esbarrou na semântica. Para quem estava na Austrália, uma leve explicação: um homem, chateado com a separação da mulher, resolveu, para, sei lá, impressioná-la, seqüestrar um ônibus, com ela dentro. A situação tinha tudo para ser trágica, mas, ao fim, foi quase tragicômica.

O problema ficou a cargo da seguinte situação: o homem não obrigava ninguém a fica dentro do ônibus - além da própria ex-mulher, claro. Os últimos passageiros ficaram no intuito de persuadi-lo da tentativa de matá-la e, em seguida, cometer o suicídio. Resultado: o promotor não quer apresentar denúncia pro seqüestro. Já o delegado, que é que conduz o inquérito, discorda.

Ou seja, semanticamente, ele seqüestro, raptou e qualquer outra palavra que queria sintetizar o ato de violência que impede uma pessoa de usufruir da própria liberdade. Seria, então, correto chamar o sujeito de seqüestrador? Eu acho que sim.

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Semântica e ética

Ontem, o ator Francisco Cuoco foi seqüestrado por cerca de 20 minutos no Rio. Sete homens armados e em dois carros (três, dependendo da versão) abordaram o veículo de Cuoco - que ia para o teatro Miguel Falabella, em Del Castilho - para assaltá-lo, mas decidiram levar o ator para sacar dinheiro em bancos. Ao reconhecerem-no, desistiram da ação e o largaram perto da Barreira do Vasco.

Por mais que ele tenha ficado em poder dos bandidos por quase meia-hora, os jornais insistem em dizer que ele foi "levado por" ou que "ficou em poder dos". O argumento é: a palavra "seqüestro" tem uma conotação muito negativa, denotando ação com planejamento, escolha da vítima, pedido de resgate. Nem a sua modalidade fast-food, o seqüestro-relâmpago, foi citada - mesmo que o caso seja CLARAMENTE esse: bandidos pararam um carro para levar um dos ocupantes e tentar fazer saques em dinheiro em bancos. Quando perceberam que ele era uma pessoa conhecida, raciocinaram que teriam problemas e desistiram, não antes de ganhar algum (roubaram dinheiro, cartões, documentos, senhas de banco e o próprio carro de Cuoco).

Segundo o wikipédia, seqüestro, "quando se refere a uma pessoa, trata-se do ato de privar ilicitamente uma pessoa de sua liberdade, mantendo-a em local do qual ela não possa livremente sair". Mais a frente, mais explicações: "Em geral, o seqüestro de pessoas é feito com o intuito de extorsão, ou seja, de coação do próprio seqüestrado ou de outras pessoas por meio de violência ou ameaça, e com o intuito de obter qualquer tipo de vantagem, seja dinheiro, bens materiais, ou mesmo utilizar o seqüestrado como "moeda de troca" a fim de obter a libertação de um ou mais indivíduos presos, etc." O Houaiss concorda: "ato pelo qual, ilicitamente, se priva uma pessoa de sua liberdade, mantendo-a em local de onde não possa sair livremente ".

Estávamos diante de um caso em que usar a palavra ajustada (seqüestro e seus derivantes) estaria semanticamente correto, mas eticamente incorreto. Poderia criar um pânico na população ainda maior do que será criado naturalmente com o evento. É função da imprensa informar sobre acontecimentos que importam ao cidadão, e isso quer dizer um seqüestro a uma figura pública, mas não assustar um povo que anda, de maneira coletiva, com síndrome do pânico.

O mais curioso é que a imprensa em geral não quis usar nem o seu irmão-eufêmico: rapto.

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Opinião popular

"Este será um post rápido e direto ao ponto. A forma correta de se referir a uma pessoa portadora de deficiência física é dizendo "pessoa portadora de deficiência física", e não deficiente ou outro termo pejorativo. Então eu pergunto, camaradas, porque motivo nosso maior artista barroco é chamado de Aleijadinho? Essa é outra mudança de extrema importância cultural que eu digo que deve ser feita: seu apelido deve ser trocado para Portadorzinho de Deficiênciazinha Físicazinha. É inadmissível que até hoje o governo não tenha se dado conta de tal absurdo e feito nada a respeito.

Esse é apenas um alerta para que todos nós, camaradas, atentemos às artimanhas do preconceito em nossa sociedade. Ele está tão encrustado na mente desse povo alienado e doutrinado pela mídia que o domina como um cachorrinho, que poucos percebem toda vez que nos referimos a esse grande artista nacional, damos valor apenas à sua deficiência física. Acredito que a única solução, pelo menos a curto prazo, é adaptar seu apelido à sua versão politicamente correta"

Escrito por Rapper feminista.

Dica do Träsel que, por sua vez, seguiu o Pilger. Ri por um bom tempo.

Velharias: servição

Gosto de coisas antigas, daquelas sem muita utilidade. E, se tiver algum uso, gosto ainda mais. Um dos meus programas favoritos é andar na feirinha do Rio Antigo, na Rua do Lavradio, na Lapa e observar aqueles cacarecos do século xx.

Há duas semanas, fui à feirinha que acontece todo sábado na Praça xv. É uma aula sobre História recente. Próximo do fim do Aterro, os mendigos colocam para vender tudo o que recolheram durante a semana. Você encontra um pé de sapato (um pé só), espelhos quebrados, canetas usadas (comprei um Mont Blanc sem carga por R$ 1. Depois, percebi que estava gravado o nome do ex-dono), revistas pornográficas com páginas coladas, fotos de gente que você nunca viu, filmes super-8 já queimados, maçanetas de portas, fios velhos...

A melhor coisa encontrada foi uma coleção de Machado de Assis com inúmeros tomos, sendo que o vendedor queria R$ 1 por cada livro. Como ele não tinha sacola e eu não tinha braços para carregar todos os muitos livros, fiquei com uma dor no coração, e vim embora.

Mais a frente, próximo da estação das barcas, a feira vira classe A. Os antiquários do Rio expõem algumas das suas mercadorias para vender ali. É possível encontrar santos barrocos, pinturas, luminárias, milhares de barraquinhas de fotos com câmeras, lentes, tudo analógico, enfeites de madeira, discos de vinil, filmes antigos, projetores de cinema e uma infinidade de produtos completamente desnecessários, mas que fariam a vida de qualquer pessoa mais feliz. Comprei dois DVDs ali, um do Fellini ("8 1/2") e outro do Woody Allen ("A rosa púrpura do Cairo").

Mas se eu fiquei triste por não comprar os Machados, anteontem passava pela Praia de Botafogo quando um sujeito que faz ponto entre a São Clemente e a Voluntários estava com uma coleção de livros que me chamou atenção. Eram 11 exemplares de uma coleção editada em 1962 dividida - não entendi muito bem o critério - em contos italianos, alemães, de terror, fantásticos, mundiais, novelas brasileiras e outras denominações que não se fecham a uma norma. Curioso, perguntei quanto custavam os livros. Ele me respondeu que só vendia a coleção completa. Perguntei quanto era, então, a coleção. Ele disse: R$ 30. Eu: Tem sacola? Ele: sim. Trouxe para casa e só me surpreendo positivamente com os autores do tomo "contos fantásticos". O mais conhecido até agora é Guy de Maupassant. O restante, nunca tinha ouvido falar.

Outro promoção de "antiguidade" acontece no Vídeo Estação, no Estação Botafogo, na Voluntários da Pátria. O povo da locadora quer investir em DVDs, mas não tem espaço físico. Por isso, eles estão fazendo uma liquidação de VHSs por R$ 4. Comprei 14. De "Felicidade", do Todd Sollontz, até "Seven", do Fincher, passando por "Touro indomável", do Scorsese, e "Era uma vez no Oeste", do Sérgio Leone. Vale muito a pena dar uma passadinha lá.

segunda-feira, 6 de novembro de 2006

Liberdade de criação

Para quem ainda não sabe o que é Creative Commons, aqui está um artigo feito pelos dois "pais" do projeto brasileiro.

Um trechinho? Está bom:

"Há muita gente hoje querendo, com a melhor das intenções (tentando proteger essas culturas), estender para todas suas manifestações (músicas, rituais, artes visuais corporais, conhecimentos sobre a natureza etc. etc.) a propriedade intelectual tal como foi concebida pela indústria cultural ocidental (e que tem sua rigidez hoje questionada por projetos como o Creative Commons, ou o próprio movimento do software livre).

Imagine que essa "proteção" vire lei. Por exemplo: quem quisesse fazer sua música baseada no ritmo do maracatu deveria pedir permissão ou fazer pagamentos tipo royalties para os grupos culturais considerados pela lei detentores da propriedade intelectual do maracatu. Imagine que o Chico Science e a Nação Zumbi, na hora de inventar seu mangue beat, tivessem pedido autorização e a resposta tivesse sido negativa (por inúmeros motivos, que poderiam ser até ideológicos - os detentores teriam decidido que misturar maracatu com hip hop seria uma traição à tradição - ou comerciais - a banda iniciante não teria verba para pagar os direitos). Essa situação teria sido absolutamente contraprodutiva para os próprios grupos tradicionais do maracatu, que hoje conseguiram muito mais visibilidade e vitalidade (e consequentemente: auto-estima) justamente porque o mangue beat fez milhares de jovens, no mundo inteiro, descobrirem aquilo que estava se transformando em quase um segredo pernambucano. O uso não-ortodoxo, sem pagamento de direitos, fortaleceu (até gerando mais dinheiro para todos) mesmo a tradição mais ortodoxa."