terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Cerveja e suas metáforas

Quando os modernistas disseram que a poesia estava no cotidiano, não poderiam imaginar que problema estavam criando. Além de descobrir a pedra no meio do caminho, os nossos avôs possibilitaram com essa constatação que era possível fazer paralelos entre assuntos ditos sérios e as coisas mais simples [no sentido de comuns, nunca de simplórias] da vida, como uma cerveja. Ou seja, esculhambamos a herança herdada, como qualquer neto de magnata.

Antes de continuar, quero deixar claro que estamos falando de cerveja. Não de bebida gaseificada com álcool, que se vende com rótulos de Brahma, Skol, Antarctica e Bohemia [só para ficar na ABInbev]. Cerveja tem que ter malte - mas não necessariamente apenas malte, como sabe qualquer belga. E não pode ter frescura. Cerveja, apesar da tradição e da sua antiguidade, é a bebida mais comum do mundo. Bebe-se entre os ricos e os pobres. Bebe-se na grande maioria do mundo. Bebe-se e não se olha a quem.

Quando um simples bebedor dessas bebidas gaseificadas percebe o engano a que ele é submetido, goela abaixo, ele tende a - se ainda lhe restar papilas gustativas - largar de mão as trapaças para ir em direção à verdade, ou às verdadeiras cervejas. E é um caminho sem volta. E com um bilhete bem caro, para quem ganha em real e paga em euro.

O primeiro passo - já presenciei em vários camaradas - é a cerveja de trigo, weiss ou hefeweizen, para os íntimos, no caso, os alemães. Fácil de beber, docinha, gosto de fruta fácil de identificar [as pessoas adoram falar da banana e da ameixa], encorpada: é difícil alguém desgostar delas de primeira. Só se for ruim da cabeça ou doente da língua.

A partir de então, as veredas se polifurcam. Há a possibilidade de seguir as linhas da weiss, ou se aprofundar na escola alemã de cervejas com gosto de biscoito e pão; querendo algo mais... amargo, atravessam o Canal da Mancha, atrás das [por favor, sotaque de Oxford] ales, das ilhas britânicas; ou, ficar no doce deleite do fermento belga e suas praticamente infinitas variações. Hoje, há ainda quem preze pelas inovações sem parâmetros dos americanos; quem quer a original pilzen tcheca ou quem acha que cerveja deve ser feita como o vinho, como os italianos. E todos, por uma questão de pobreza, sempre valorizamos o produto nacional, que está cada vez melhor.

O normal é que, como todo neófito, no início, o renascido fora da matrix cervejística se sinta perdido, não consiga se decidir. Fica zanzando de um escola para outra, ora com uma ora com duas, sem parar em um bar específico.

Acredito, porém, que chega um momento na vida do homem - e da mulher também - que você tem que se decidir, entender seus limites, enxergar os seus [muitos] defeitos e suas [poucas] qualidades. Chega uma hora que você percebe que há uma natureza dentro de você e não há nada que você possa fazer contra ela: ela vai ganhar de você. Postergar essa derrota é aumentar o sofrimento. Você tem que se admitir qual cerveja é o seu objetivo.

Eu descobri que não vou tomar todas as cervejas do mundo. Nem todas as cervejas que quero tomar no mundo. Há um limite e ele é o tamanho da minha barriga [razoavelmente grande] e da minha conta bancária [visivelmente pequena].

A vantagem é que escolher uma cerveja para ser sua é uma decisão forte mas, felizmente, mutável. Se você, por acaso, sem querer, esbarrar e descobrir outra melhor, nada impede de você trocar de preferida.

domingo, 23 de janeiro de 2011

'Tudo é música'

Uma amiga minha acaba de terminar sua dissertação de mestrado sobre mapeamentos musicais no Brasil e, em comemoração ao ponto final, me mandou [e a outro camarada] a citação final. É simplesmente incrível. Sem querer acabar com qualquer surpresa, copio a explicação dela e a frase em si:

Aí vai com exclusividade (o livro de onde tirei acabou de ser lançado, meu pai ganhou de aniversário e eu surrupiei) a citação com que acabo este trambolho: de Vinicius, numa carta aberta para Lucio Rangel, que criticou ele e Tom Jobim por terem descido “de sua posição ‘semi-erudita’ para tentar alcançar as camadas nitidamente populares”.

Tudo é música. É música de uma época, obediente a leis fatais de um meio e de um tipo de civilização. Depois virão outras épocas, outros tipos de civilização, outras músicas. O que for bom, ficará; o resto se dissolverá na infinita galáxia dos sons de aspiração medíocre. O importante é que o diabo fique sobraçando a sua cornucópia e que de seu âmago saiam sempre coisas que façam sofrer e alegrar os homens em sua marcha para o desconhecido. 

sábado, 22 de janeiro de 2011

Cisnes em preto-e-branco

Darren Aronofsky "apareceu" no Brasil - para mim, pelo menos - em "Réquiem para um sonho", durante um Festival do Rio. A história dos quatro viciados que faziam tudo para conseguir mais uma dose impactou pelas sacadas visuais, como a da pupila se dilatando quando eles se picavam - vide o vídeo abaixo - e por todo um aparato de diretor criativo iniciante, que quer mostrar serviço, como uma edição frenética, com aquele fim impressionante, com as atuações incríveis e com a música tão impactante que até hoje eu lembro em detalhes.



Mas o filme não se destacava pelo seu roteiro, que era simplesmente a história de três jovens junkies. Igual a essa trama já há outras dezenas. O único lampejo de diferença era a história da mãe de um deles, que tinha  ficado viciada em bolinhas para emagrecer. O filme mostra todo um processo de valorização dela quando fica com manequim menor, no meio das amigas, denunciando uma espécie de ditadura da beleza estranha e fora dos padrões a que estamos acostumados, por se tratar de mulheres mais velhas, e como ela fica viciada não exatamente nas bolinhas, ou não simplesmente, mas pela fama, pelo glamour, pela importância que a magreza lhe proporcionou. Com a aparência melhor, ela se destacou e ganhou relevância. Quando era mais rechonchuda, simplesmente desaparecia entre todas as outras coroas, se tornava insignificante, que é um dos pecados-mor de uma época de celebrização extrema.

Depois de "Réquiem...", fiquei tão empolgado que procurei pela obra de Aronofsky e descobri que ele era quase um neófito. Tinha feito apenas um outro filme anterior: "Pi" [na verdade, a internet me corrige e diz que ele rodou outros dois, ainda na faculdade, mas que nunca foram distribuídos]. "Pi" parecia um longa de um calouro, com pouco dinheiro e ótimas ideias. Já se percebia ali um diretor preocupado em inovar quando se trata da imagem. Filmado em preto-e-branco, a produção conta a história de um gênio da matemática que, sob pressão, acaba enlouquecendo. Novamente, o mesmo pecado: Aronofsky parecia ser um grande diretor e um péssimo roteirista.

O filme seguinte foi a bola fora da curva: "The fountain" chega a ser vergonhoso. Só para começo de conversa, há um astronauta no século XXVI. Não se pode falar de um período assim impunemente.

Entretanto, sua volta foi o retorno de outro nome que andava apagado: "The wrestler" parece - e, de certa forma, é - a história de Mickey Rourke, que interpreta o personagem principal. Não que suas biografias batam, pelo contrário, provavelmente com algumas exceções grosseiras, Rourke e Randy Robinson não têm nada em comum. Mas, no filme, eles são a mesma pessoa: um sujeito que vive para o que faz, independentemente das consequências de seus atos.

Mas, na minha humilíssima opinião, e o motivo de todo esse texto, Aronofsky chegou ao lugar mais alto de sua carreira - até agora - com "Black swan" [Não por acaso o roteiro não é seu]. Generalizando, o longa estrelado por Natalie Portman, com Vicent Cassel e uma participação especialíssima de Winona Ryder, pode ser descrito como um retrato hiperrealista do mundo e do submundo do balé. Mas, essa é apenas a primeira casca da cebola. Claro que o diretor mostra detalhes que, para mim, pareceram inéditos e consegue, dessa forma, retratar como as bailarinas vivem e se sentem com a rotina de treinamentos diários, pressão ininterrupta, corredores de ganância e inveja irrestrita, busca por uma perfeição que, como acontece após a retirada de todas as cascas da cebola, quando se encontra, se apresenta vazia.






Mesmo a interpretação do balé já remete a outras, como visto no parágrafo anterior. Nina, personagem de Portman, é escalada para substituir Beth [Ryder] no papel principal de "O lago dos cisnes". O personagem é duplo, antagônico, complementar: Ela tem que ser tanto o cisne branco, quanto o negro, que por sua coloração já demonstra a variação de humor. Nina seria perfeita para o lado branco da força, mas não se encaixa no outro. Ela tem 28 anos e mora sob o jugo da mãe, uma ex-bailarina que desistiu da carreira para ter a filha e, até hoje, chora o passado, pintando quadros sempre com a mesma personagem triste, desesperada. Na companhia, ela é subjugada pelo diretor [Cassel], que quer descobrir o fulgor, a imprevisibilidade, o vigor sexual, sensual de dentro dela, vital para a personagem do cisne negro. Além disso, chega na companhia Lili, uma menina não tão técnica, mas que é um vulcão em forma de pessoa, sedutora até com o garçom que lhe serve comida: perfeita para o papel do cisne negro, portanto.

Não é de hoje que se pensa nos dois extremos da vida, como revela qualquer citação ao ying-yang, ou a Buda, ou a estóicos e epicuristas. Mais recentemente, Nietzsche fez em seu primeiro livro uma referência a essa ambivalência em seu "Nascimento da tragédia" e a discussão entre o apolíneo e o dionisíaco. Apolo é o deus da beleza, Dionísio, da impulsividade. Para o filósofo alemão, era impossível chegar ao máximo [a perfeição?] via Apolo, porque a arte não está no âmbito do racional, mas apenas pelo que não se pode reproduzir, daquilo que, de tempos em tempos, aparece e nos deixa sem ação, sem fala, sem pensamento, que nos impacta, que nos preenche, que, mesmo que não consigamos colocar em palavras, que não consigamos transformar o que presenciamos em algum tipo de discurso, percebemos que era algo novoverdadeiro, algo que ainda não tem nome, mas que todos sabem o que é: arte.

Thomas [o diretor do balé] diz algo parecido a isso para Nina, quando aponta Lili e afirma que, mesmo que ela não seja tecnicamente perfeita, pode envolver a plateia de uma maneira que Nina não conseguia. Lili [seria uma citação a Lilith, a "primeira" mulher de Adão, que tanto se tenta esconder, por ter sido criada, não de sua costela, mas do mesmo pó, e, diferente de Eva, que era doce, até se rebelar, era voluntariosa e intempestiva?] usa da força do sexo, a força primordial, de onde sai todas as outras, para diversos mitos antigos, e até mesmo, numa interpretação livre, para Freud.

Nina é frágil, covarde e a melhor bailarina que existe. Novamente com Freud,ela  tenta esconder suas emoções, seu lado obscuro, do imprevisível, do desconhecido, porque tem medo de que aí sobreviva um monstro que vá controlá-la e vá fazer com que ela se torne uma destruidora. Para interpretar o cisne Negro, porém, ela terá que se libertar, mas essa liberdade sem qualquer tipo de preparação, claro, cobra um preço.

A bailarina começa a se sentir perseguida, se envolve com Lili, sua oposta, sua complementar, tem alucinações, como se outra mulher estivesse nascendo dentro de si, visita Beth - que a essa altura está hospitalizada após um acidente -, para ver como é o seu futuro - briga com a mãe, destrói suas pinturas, e se perde.

Aronofsky mostra a maturidade de seu trabalho, inserindo formatos narrativos, como o terror ou o dramalhão, com sutileza e sem se mostrar como um virtuose. Suas intervenções, ainda extremamente criativas, como o uso do preto e do branco, com a direção de atores, com o uso da música, com a escolha dos ângulos, a prioridade de espelhos, são em prol da narrativa. A sequência da véspera da apresentação, começando com ela dançando sozinha, o blecaute, o flagra do diretor com Lili, a alucinação do personagem do Cisne, da cena de flagelo de Beth, da violência contra a mãe, da imaginação da transformação dela, é das mais angustiantes da História do cinema [Lembrei-me da sequência pré-final, também, de "Advogado do diabo", mas essa ainda é melhor].

Ao fim, a queda, a falha que leva ao ápice, a catarse, a autodestruição, a aceitação, e a certeza de que a perfeição é um estado que, se existe, só aparece quando não há mais intervenção humana. "Cisne negro" é um filme para ficar para história.


terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Tromba trem

Continuo a propaganda do desenho desenvolvido por um amigo em seu estúdio, o "Tromba trem". Em março, os episódios começam a ser veiculados na TV Brasil. Vai rolar também em outro canal, mas ele falou que não podemos divulgar ainda...

domingo, 16 de janeiro de 2011

Filosofia [e Brasil] à Machado

Nos últimos dois anos [2009 e 2010], fiz uma pós em filosofia e arte, na PUC-Rio que eu considero a minha primeira faculdade / graduação, mesmo tendo duas nas costas [que juntas não valem nada - RP e Jornalismo].

Pela primeira vez, estudei, li, participei das aulas, discuti, me interessei, pela primeira voltava para casa com os assuntos das aulas na cabeça, ficava com dificuldade para dormir, me sentia mal quando faltava à aula, queria mais do que simplesmente me era oferecido.

Aprendi alguma coisa e descobri que não sei absolutamente nada de nada. Mas, como, para colar o grau de pós-graduando, deveria escrever uma monografia [a quarta da minha vida], cometi essa aí embaixo. Espero que alguém se divirta lendo - tanto quanto eu fazendo, que continuei aprendendo diversas coisas sobre Machado, sobre a filosofia e sobre o Brasil.


terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Direita aparente

"Os militares só conseguem manter a hierarquia e a disciplina porque a verdade está para eles como a fé está para os cristãos". Assim começa o artigo de Jair Bolsonaro na "Folha" de hoje, intitulado "Comissão da inverdade", que trata, como pode se imaginar, da Comissão da verdade, a ser instituída pela presidenta e que tem como função avaliar a ditadura de 1964-1985 e escrever a versão oficial do período [se eu entendi bem a história, o que eu duvido].

Ele chama os "companheiros em armas" de terroristas e enumera alguns crimes cometidos pelos militantes durante a ditadura, afirmando que os militares, por sua vez, representavam a sociedade, ao tomar o poder. Para comprovar, cita: "É notório que a esquerda quer passar para a história como a grande vítima que lutou pelo Estado democrático atual, invertendo completamente o papel dos militares que, em 1964, por exigência da imprensa, da Igreja Católica, de empresários, de agricultores e de mulheres nas ruas intervieram para que nosso país não se transformasse, à época, em mais um satélite da União Soviética". [Grifos são meus.]

Ontem, o mesmo Bolsonaro escreveu um artigo ["Equívoco em campanha"] para "O Globo" em que critica a postura da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados que quer distribuir um panfleto nas escolas para combater a homofobia. Ele repele o panfleto dizendo [duas vezes] que é um incentivo ao homossexualismo, e que mostra que ser gay, "além de legal, é motivo de orgulho para a família". [Acrescente aqui a sua ironia preferida, por favor.]

Não estou aqui para defender suas posições - por favor, não. Mas tirando o fato de dois jornais darem espaço a ele em sequência - que pode ser apenas uma coincidência, claro - eu acho até saudável que os homens da direita coerente se apresentem assim. É mais fácil desarmar os argumentos clássicos - da tradição-família-propriedade, ou da Igreja, ou da moral e dos bons costumes, ou dos integralistas - que escutar um falso-progressista que, ao se pronunciar, sempre tende a ficar em cima do muro, mas, na verdade, quer apenas defender todas essas questões aí em cima citadas.