sábado, 22 de janeiro de 2011

Cisnes em preto-e-branco

Darren Aronofsky "apareceu" no Brasil - para mim, pelo menos - em "Réquiem para um sonho", durante um Festival do Rio. A história dos quatro viciados que faziam tudo para conseguir mais uma dose impactou pelas sacadas visuais, como a da pupila se dilatando quando eles se picavam - vide o vídeo abaixo - e por todo um aparato de diretor criativo iniciante, que quer mostrar serviço, como uma edição frenética, com aquele fim impressionante, com as atuações incríveis e com a música tão impactante que até hoje eu lembro em detalhes.



Mas o filme não se destacava pelo seu roteiro, que era simplesmente a história de três jovens junkies. Igual a essa trama já há outras dezenas. O único lampejo de diferença era a história da mãe de um deles, que tinha  ficado viciada em bolinhas para emagrecer. O filme mostra todo um processo de valorização dela quando fica com manequim menor, no meio das amigas, denunciando uma espécie de ditadura da beleza estranha e fora dos padrões a que estamos acostumados, por se tratar de mulheres mais velhas, e como ela fica viciada não exatamente nas bolinhas, ou não simplesmente, mas pela fama, pelo glamour, pela importância que a magreza lhe proporcionou. Com a aparência melhor, ela se destacou e ganhou relevância. Quando era mais rechonchuda, simplesmente desaparecia entre todas as outras coroas, se tornava insignificante, que é um dos pecados-mor de uma época de celebrização extrema.

Depois de "Réquiem...", fiquei tão empolgado que procurei pela obra de Aronofsky e descobri que ele era quase um neófito. Tinha feito apenas um outro filme anterior: "Pi" [na verdade, a internet me corrige e diz que ele rodou outros dois, ainda na faculdade, mas que nunca foram distribuídos]. "Pi" parecia um longa de um calouro, com pouco dinheiro e ótimas ideias. Já se percebia ali um diretor preocupado em inovar quando se trata da imagem. Filmado em preto-e-branco, a produção conta a história de um gênio da matemática que, sob pressão, acaba enlouquecendo. Novamente, o mesmo pecado: Aronofsky parecia ser um grande diretor e um péssimo roteirista.

O filme seguinte foi a bola fora da curva: "The fountain" chega a ser vergonhoso. Só para começo de conversa, há um astronauta no século XXVI. Não se pode falar de um período assim impunemente.

Entretanto, sua volta foi o retorno de outro nome que andava apagado: "The wrestler" parece - e, de certa forma, é - a história de Mickey Rourke, que interpreta o personagem principal. Não que suas biografias batam, pelo contrário, provavelmente com algumas exceções grosseiras, Rourke e Randy Robinson não têm nada em comum. Mas, no filme, eles são a mesma pessoa: um sujeito que vive para o que faz, independentemente das consequências de seus atos.

Mas, na minha humilíssima opinião, e o motivo de todo esse texto, Aronofsky chegou ao lugar mais alto de sua carreira - até agora - com "Black swan" [Não por acaso o roteiro não é seu]. Generalizando, o longa estrelado por Natalie Portman, com Vicent Cassel e uma participação especialíssima de Winona Ryder, pode ser descrito como um retrato hiperrealista do mundo e do submundo do balé. Mas, essa é apenas a primeira casca da cebola. Claro que o diretor mostra detalhes que, para mim, pareceram inéditos e consegue, dessa forma, retratar como as bailarinas vivem e se sentem com a rotina de treinamentos diários, pressão ininterrupta, corredores de ganância e inveja irrestrita, busca por uma perfeição que, como acontece após a retirada de todas as cascas da cebola, quando se encontra, se apresenta vazia.






Mesmo a interpretação do balé já remete a outras, como visto no parágrafo anterior. Nina, personagem de Portman, é escalada para substituir Beth [Ryder] no papel principal de "O lago dos cisnes". O personagem é duplo, antagônico, complementar: Ela tem que ser tanto o cisne branco, quanto o negro, que por sua coloração já demonstra a variação de humor. Nina seria perfeita para o lado branco da força, mas não se encaixa no outro. Ela tem 28 anos e mora sob o jugo da mãe, uma ex-bailarina que desistiu da carreira para ter a filha e, até hoje, chora o passado, pintando quadros sempre com a mesma personagem triste, desesperada. Na companhia, ela é subjugada pelo diretor [Cassel], que quer descobrir o fulgor, a imprevisibilidade, o vigor sexual, sensual de dentro dela, vital para a personagem do cisne negro. Além disso, chega na companhia Lili, uma menina não tão técnica, mas que é um vulcão em forma de pessoa, sedutora até com o garçom que lhe serve comida: perfeita para o papel do cisne negro, portanto.

Não é de hoje que se pensa nos dois extremos da vida, como revela qualquer citação ao ying-yang, ou a Buda, ou a estóicos e epicuristas. Mais recentemente, Nietzsche fez em seu primeiro livro uma referência a essa ambivalência em seu "Nascimento da tragédia" e a discussão entre o apolíneo e o dionisíaco. Apolo é o deus da beleza, Dionísio, da impulsividade. Para o filósofo alemão, era impossível chegar ao máximo [a perfeição?] via Apolo, porque a arte não está no âmbito do racional, mas apenas pelo que não se pode reproduzir, daquilo que, de tempos em tempos, aparece e nos deixa sem ação, sem fala, sem pensamento, que nos impacta, que nos preenche, que, mesmo que não consigamos colocar em palavras, que não consigamos transformar o que presenciamos em algum tipo de discurso, percebemos que era algo novoverdadeiro, algo que ainda não tem nome, mas que todos sabem o que é: arte.

Thomas [o diretor do balé] diz algo parecido a isso para Nina, quando aponta Lili e afirma que, mesmo que ela não seja tecnicamente perfeita, pode envolver a plateia de uma maneira que Nina não conseguia. Lili [seria uma citação a Lilith, a "primeira" mulher de Adão, que tanto se tenta esconder, por ter sido criada, não de sua costela, mas do mesmo pó, e, diferente de Eva, que era doce, até se rebelar, era voluntariosa e intempestiva?] usa da força do sexo, a força primordial, de onde sai todas as outras, para diversos mitos antigos, e até mesmo, numa interpretação livre, para Freud.

Nina é frágil, covarde e a melhor bailarina que existe. Novamente com Freud,ela  tenta esconder suas emoções, seu lado obscuro, do imprevisível, do desconhecido, porque tem medo de que aí sobreviva um monstro que vá controlá-la e vá fazer com que ela se torne uma destruidora. Para interpretar o cisne Negro, porém, ela terá que se libertar, mas essa liberdade sem qualquer tipo de preparação, claro, cobra um preço.

A bailarina começa a se sentir perseguida, se envolve com Lili, sua oposta, sua complementar, tem alucinações, como se outra mulher estivesse nascendo dentro de si, visita Beth - que a essa altura está hospitalizada após um acidente -, para ver como é o seu futuro - briga com a mãe, destrói suas pinturas, e se perde.

Aronofsky mostra a maturidade de seu trabalho, inserindo formatos narrativos, como o terror ou o dramalhão, com sutileza e sem se mostrar como um virtuose. Suas intervenções, ainda extremamente criativas, como o uso do preto e do branco, com a direção de atores, com o uso da música, com a escolha dos ângulos, a prioridade de espelhos, são em prol da narrativa. A sequência da véspera da apresentação, começando com ela dançando sozinha, o blecaute, o flagra do diretor com Lili, a alucinação do personagem do Cisne, da cena de flagelo de Beth, da violência contra a mãe, da imaginação da transformação dela, é das mais angustiantes da História do cinema [Lembrei-me da sequência pré-final, também, de "Advogado do diabo", mas essa ainda é melhor].

Ao fim, a queda, a falha que leva ao ápice, a catarse, a autodestruição, a aceitação, e a certeza de que a perfeição é um estado que, se existe, só aparece quando não há mais intervenção humana. "Cisne negro" é um filme para ficar para história.


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