domingo, 15 de junho de 2014

Hinos de guerra no futebol

Se já há um saldo positivo desta Copa, além do gol do Van Persie e da subsequente goleada holandesa sobre a Espanha, é a invasão do Brasil por nossos amigos sul-americanos e a sua mais bonita, emocionante e arrasadora consequência: a moda de cantar os hinos de seus respectivos países a cappella. Começou com o Brasil, passou pelo Chile e chegou à Colômbia. Coincidência ou não, o único sul-americano que não usou desse subterfúgio [ou eu nem percebi], o Uruguai, perdeu.



Esse ato aparentemente simplório tem uma série de efeitos. Primeiro, os óbvios. O hino nacional se transforma num grito de guerra. É o momento que os jogadores se irmanam e percebem que fazem parte de um mesmo grupo, de uma mesma equipe, de um mesmo país. Eles têm características diferentes, mas objetivos comuns e vão lutar, juntos, para atingi-los.

Não precisa nem ter em suas letras refrões como "Aux armes, citoyens / Formez vos bataillons / Marchez, marchez! / Qu'un sang impur / Abreuve nos sillons!"; ou versos como "O Lord our God arise / Scatter her enemies, / And make them fall: / Confound their politics, / Frustrate their knavish tricks"; ou ser explícito como: "Son giunchi che piegano / Le spade vendute: / Già l'Aquila d'Austria / Le penne ha perdute. / Il sangue d'Italia / E il sangue Polacco / Bevé col Cosacco, / Ma il cor le bruciò" [aqui uma explicação da passagem], ou precisar saber muito de línguas estranhas para entender logo de cara quem é o maioral: "Deutschland, Deutschland über alles, / Über alles in der Welt". O hino é para dizer quem é amigo e quem é alemão.



Mesmo o brasileiro, que foca mais no tamanho ["Gigante pela própria natureza"] e das belezas do país ["Deitado eternamente em berço esplêndido / ao som do mar e à luz do céu profundo"], tenta elencar, logo de cara, muito sutilmente, quem é o nosso adversário: a ex-metrópole. O "brado retumbante" do "povo heroico" foi ouvido "às margens plácidas" do Ipiranga. Não há negociação, nem empate. É "independência ou morte", é vitória ou, em caso de qualquer outro resultado, derrota.

Salvo os exageros nas aproximações [tenho o defeito de enxergar mais as semelhanças que as diferenças], me lembrou a haka dos jogadores de rúgbi neozelandeses. Mas se não quisermos ir tão longe, me lembrou também a ladainha, o canto que antecede o jogo propriamente dito da capoeira, em que um solista faz uma lembrança dos seus antepassados, das suas origens, da sua história, portanto. Ou ainda aquela reunião que a galera de teatro faz logo antes das cortinas abrirem. Em todos os casos, é o momento em que todos presentes se juntam, como um só corpo, esquecem o mundo lá fora, e focam, juntos, no mesmo ponto.



Não é acaso que os times que cantaram o hino a cappella jogaram com uma vontade muito maior que a do adversário. Nem sei se o Brasil foi melhor que a Croácia - acho que não - mas entrou em campo querendo comer a bola. O mesmo pode ser dito para o Chile, que ainda deu uma bobeada contra a fraca Austrália, ou a Colômbia que, apesar da falta de Falcao García, não tomou conhecimento da Grécia, mesmo com Sócrates em campo.

Mas se todos esses argumentos não forem suficientes, basta lembrar que é uma maneira muito delicada de quebrar um protocolo da Fifa. A toda poderosa do futebol que não gosta de fazer nada fora das regras [com a exceção de algumas negociações envolvendo dinheiro] não tem poder para impedir que os jogadores simplesmente parem de cantar seus hinos. Claro que, para a Fifa, é o tipo de quebra de protocolo que é até bem vinda, já que não atrapalha seus interesses comerciais, ao contrário, mas enxergo esses atos como pequenos protestos muito barulhentos. Como se dissesse que a Fifa não manda em tudo.

Nenhum comentário: