terça-feira, 28 de novembro de 2017

Pastorzinho ora prefeitinho

 Vocês não têm a impressão que o Crivella fala no diminutivo com as pessoas ao seu redor? Essa história de “cuidar das pessoas”, sei não... ele deve se achar mesmo um descendente diretos dos patriarcas da Bíblia. Tão superior ao populacho. Tão nobre, tão líder, tão... pastorzinho. 

Ao menos, concordemos todos, da Igreja Universal ele é herdeiro. E agora que o tio deixou crescer aquela barba profética e se aproximou de um discurso mais ligado ao judaísmo - como se isso desse um verniz de “originalidade” - faz sentido, vai. 

O pastorizinho ora prefeitinho deve se achar o máximo, com razão. Por isso trata todo mundo como garotinho.

Também, pudera: entregamos a chave da segunda cidade do país para ele. A cidade que no imaginário do mundo é o resumo do restante da nação. E cujos códigos simbólicos são necessariamente antagônicos aos dele. Carnaval? Samba? Ele deve adorar um retirozinho. Ou você consegue imaginar o pastorzinho de sunguinha na praia? (Não, melhor não imaginar.)

Eu vou além. Um pouquinho além. Acho que o ora prefeitinho está azeitadinho no cargo. Tudo faz sentido para ele. Parece um bonequinho.

Espero apenas o dia em que, por uma falha da manutenção, o rosto dele, aquele rosto de velhinho simpático, que leva os netinhos para a pracinha, aquele rosto branquinho como algodão, como cera in natura, aquele rosto plastificado começar a se desprender do restante da cabeça e cair no chão, tipo uma lata-velha se desfazendo em pedaços pelas ruas, antes do conserto de apresentadores de televisão.

Imagino que ele vai estar, nesse momento, pronunciando seus discursos diminutivos sobre qualquer assunto relevante, “cuidando” das nossas preocupações, como um bondoso pastorzinho. Neste momento, neste momentinho, o maxilar vai despencar. Plaft. As pessoas constrangidas, sem conseguir dizer nada, tentando apontar: pastorzinho, pastorzinho, o seu, o seu queixo, ele...

O pastorzinho, suspeito, sempre suspeito, nem vai perceber e vai continuar falando pequenininho, bonitinho, calminho. Seguro de si, cuidando das pessoas. Como sempre. Do lado de dentro, vamos poder ver expostos como entranhas os mecanismos do ventríloquo. E, suspeito, a mãozinha do seu tiozinho.

Ora, prefeitinho, ora que piora.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

O que você levaria consigo em caso de incêndio?

Essa é daquelas perguntas cuja resposta mostra a ~~envergadura de um caráter~~. Como eu acabei de passar pela segunda experiência de fogo no meu prédio em menos de quatro anos, já dá para dizer: certamente meu computador.

(Isso deve explicar, inclusive, esse texto de desabafo - embora escrito no celular.)

Dessa segunda vez, ainda peguei o e-reader, lembrei das chaves de casa e malandramente catei um guarda-chuva - vai que o aguaceiro aperta, cheguei a pensar.

Tinha ficado até orgulhoso de mim, da minha organização, considerando que o fogo desta vez foi bem mais perto (no 203 e eu moro no 301, o que faz com que a casa esteja mais enfumaçada que filme do Cheech & Chong, sem qualquer vantagem por isso), de madrugada, e eu tinha tomado uns vinhos para dormir. Aí, já de volta à casa, percebi que tinha me esquecido da carteira. Para que levá-la, né?, me perguntei. Só vive vazia.

Enquanto estava lá embaixo, foi bom ver quem são os meus vizinhos (nesse mundo cada vez menos comunitário) e conferir o que eles levavam: animais de estimação, garrafas d’água, telefones celulares... o de sempre. Ou quase.

Sempre me lembro do primeiro incêndio, lá no 502, no meio da copa de 2014, num dia após um jogo do Brasil e de uma festa bem animada que eu tinha participado. Aquilo sim foi incêndio de verdade. Incêndio moleque. Incêndio de várzea.

Era, pelo menos, de manhã cedo e pude ver o pessoal com mais cuidado - hoje não deu para ver direito os pijamas da coleção 2017 - e o que eles carregavam. Havia documentos, mais gente carregando computadores, animais de estimação, celulares... e uma senhora que sempre me encafifou: ela levava uma pipoqueira.

Pois é.

Não me perguntem se estava cheia ou vazia. Se ela foi pega no meio do processo de fazer pipoca. Se ela é da umbanda. Ou se ela se empolgou com o fogo e resolveu... não, não, isso não.

Fiquei tão chocado que não consegui qualquer aproximação (mentira: até parece que, introvertido como eu sou, eu teria falado algo com ela em qualquer oportunidade).

Dessa vez, infelizmente, não houve nenhum folclore. Melancólicos os nossos tempos. Ou, como disse lá o barbudo, e eu dou fé: a história se repete como farsa.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

As dobras do tempo 'No instante agora'

Talvez a cena mais didática de “No instante agora” (finalmente vi!) para nós, órfãos de esquerda, seja a da grande manifestação pró-De Gaulle, logo em junho (acho que foi logo em junho).

O velho general tinha se manifestado durante o maio, pela televisão, e tinha sido engolido pela força dos acontecimentos do momento. Em junho (?), quando as ruas tinham se acalmado um pouco, ele decidiu falar apenas pelo rádio, veículo que ele conhecia muito bem, desde os seus discursos (desde Londres) na segunda guerra, que ajudaram a manter o moral dos franceses invadidos pelos nazistas. Ele exige a volta da ordem no país. Ameaça usar (ainda mais) da violência contra o caos, para manter o país unido, para seguir a constituição, para fazer da França a França, novamente.

No dia seguinte, uma multidão - maior em número que os próprios protestos dos eventos de maio - vestindo roupas nitidamente mais caras, enrolados em bandeiras tricolores, invade as mais famosas ruas da capital francesa para apoiar o discurso do presidente, e não recebe qualquer impedimento das forças de segurança - mesmo atrapalhando o trânsito, entrando em monumentos públicos.

O paralelo é óbvio demais para nós para não me abalar. Sempre ouvimos que a direita ganha as eleições depois de 1968, mas ver as imagens tão nítidas de um movimento conservador em marcha, após tamanha explosão de possibilidades potentes, é bastante pedagógico. Ainda mais para nós, que parecemos em geral perdidos dentro de um ethos melancólico. É confortante encontrar companhia histórica (de vez em quando).

Após o filme, fica a pergunta óbvia: a “direita” então venceu a disputa de maio de 1968? Se pensarmos no curto prazo, certamente. Eles eram maioria, ganharam as eleições, apoiaram a reação. Se pensarmos pelo viés dos próprios soixante-huitards na época, também: eles queriam uma revolução, uma mudança completa da forma de vida, manter o ritmo de transformações para sempre, numa agenda de desejos polifônicos sem mira certeira. Não era possível acertar em tudo, por supuesto. A derrota é, portanto, pelo tamanho da expectativa. Mas alguma coisa ali, sem sombra de dúvida, havia mudado profundamente. Se transformado tanto e de tal modo que não tinha como nem De Gaulle nem manifestações patrióticas segurarem sua força. O tempo já era outro, para todos.

Ps. Isso não quer dizer que devemos deitar em berço esplêndido - ao contrário. Temos que pensar que a luta é constante e sem interrupção. Temos que diversificar nossas estratégias. Como? Não tenho a mais ligeira ideia. Temos que também nos tranquilizar com os momentos de potência, para depois colocar em ação.
Ps2. Curiosamente, dois dos marcos mais famosos da esquerda no século XX distam cerca de 50 anos um do outro: 1917, 1968. Curiosamente, 2, estamos completando 50 anos do último.
Ps3. Talvez 2013 tenha sido a nossa dobra na História. Certo é que já mudamos de percepções. É o momento de nos adaptar aos novos tempos.
Outro detalhe curioso: João Moreira Salles, diretor, roteirista e narrador do filme, lembra que a cena da manifestação da direita quase não aparece nos filmes sobre o período. Nós escolhemos o que vamos contar do nosso passado.
Ainda: Sobre melancolia e esquerda: http://criseecritica.org/.../11/Uma-ou-duas-melancolias.pdf

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

INSONE MUNDO, por Adriano Lia

[Exercício: escrita sobre um labirinto]

Mas eu deveria voltar a dormir. Parar de pensar nas minhas preocupações. Nas minhas obrigações. No que eu deveria estar fazendo. Mas como parar de pensar naquilo que se pensa? Não pensar, não pensar, não pensar. Pronto, pensei. São 3 e 40 da manhã. Posso dormir até as 9h. Dormi à meia-noite. Daria as oito horas diárias obrigatórias, e ainda sobrava. O dia vai ser longo. Já estou cansado. Tenho trabalho, depois aula, depois jantar, depois... Mas tenho que fazer a barba antes. Cozinhar alguma coisa. Comprar algum legume, fruta, sem agrotóxicos, ecologicamente responsável. Mas está tudo tão caro, estou tão sem dinheiro. Mas eu sou um privilegiado, o topo da pirâmide. Imagine o mundo real, lá fora. Gastei demais nos últimos dias. Bebi para entreter, mas só passei o tempo. Quem marcou esse jantar? Posso cancelar? Já cancelei outras vezes. Posso ou não posso? Estico a linha com obrigações à minha frente sem que ninguém esteja do outro lado. O que devo fazer? Penso em respostas compridas que nunca serão cumpridas, por incapacidade ou fadiga do material. O mudo mundo, como sói fazer, me ignora, como se fosse também surdo. O cansaço já não é só promessa. A verdade é neurótica. A paranoia, a única minha companheira.

Por que apenas eu não aceito? Está tudo resolvido. O bloquinho e a sua caneta preferida estão aqui para você. Há um mundo inteiro de possibilidades além das obrigações. Parece a cabra que expia. Reproduz os movimentos. Depois, fica um sentimento de alívio. Assim espera-se, na fantasiosa e quase inexistente das hipóteses. Frases curtas cortam o papel porque a urgência pisca. O que fazer quando o plano naufraga? Admitir a derrota – lentamente, com parcimônia, tentando respirar entre os soluços. Seguir adiante, até onde der. Depois, desabar. Sou apenas um homem. Mas não consigo admitir. Mas sou sim, só isso. Em todas as suas acepções. Desses que a ferrugem engessa os membros. O corpo se mostra finito. Mas eu posso sair do script, querer outros quereres. Mas eu quero?

As grandes narrativas não fazem (mais) sentido. Agora, a decisão tem que ser minha. Não posso colocar sobre outrem a bússola. Não há outrem. Não posso seguir mais a maré, mesmo que a maré me fosse favorável. Não há mais maré. Só há “eu”, um magro, fraco e circunstancial “eu” – o que sobrou depois de tantos anos tentando se esconder. O passo, qualquer passo, é responsabilidade. Não há mais culpados. Não sou mais vítima.

O mundo sem mapa. Era mais fácil quando eu me enganava. Mas é ainda possível? Em algum momento, você nasce e o mundo anterior se torna automaticamente estranho, pequeno, inabitável. Mas você não tem qualquer outro mundo. “Ainda” – no débil otimismo. No limbo, ter paciência. Não é a primeira vez – anotar. Escrever é: migalhas de pão despejadas no caminho. Se confortavelmente se perde, se surpreende ao se achar. Estados de espíritos.

Estou cansado, o dia vai ser longo, e eu não tenho tempo. Mas eu deveria voltar a dormir.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Os limites de "Vazante"

Escrevo esse texto para tentar entender. Para pedir ajuda a minhas/meus colegas para me fazer ver. Do alto de todos os meus privilégios [branco, hétero, zona sul carioca, cis...] é quase sempre difícil enxergar a[o/s] outra[o/s]. Escrevo para sair do meu lugar, desse lugar, e escutá-la[o/s].

Vi ontem "Vazante", o novo e polêmico filme de Daniela Thomas. Uma pequena-grande crônica extremamente cuidadosa na recriação de época de uma família rica das Minas Gerais, na região dos diamantes, em 1821.

O filme é violento do início ao fim. Mostra-se diversas formas de submissão que são os fundamentos da sociedade brasileira: homens contra mulheres, ricos contra pobres, mas principalmente, sem nenhuma dúvida, brancos contra negros.

O dono da fazenda, tropeiro, querendo começar uma plantação nas suas terras, mantém um grande número de negros sob o seu jugo. Entre trabalhadores da lavoura, africanos recém-chegados, gente que trabalhava em sua casa, mulheres que vendiam doces nas praças da cidade, capatazes, negros forros que se tornam capitães do mato, todos, de uma maneira ou outra, estão debaixo de sua jurisdição - "pertencem" a ele.

É tão violenta a forma como as relações são mostradas que não há maneira de não ficar extremamente incomodado com a escravidão. Ela é tratada de maneira tão crua, tão direta, e também tão cheia de nuances, que não minoram em nada o problema, ao contrário, a acentuam: para uma vida um pouquinho melhor, o negro tinha que se "embranquecer". Ou eu, do alto dos meus privilégios, achei que não poderia ser mais incisivo.

O filme vem sofrendo, desde a sua primeira exibição pública, no festival de Brasília, uma enxurrada de críticas de representantes do movimento negro, por dessubjetivar os negros retratados na película, os relegando a um papel coadjuvante no processo todo. Por, enfim, ter contado o filme a partir da perspectiva da sinhazinha que, muito jovem, é obrigada a casar com o português dono das terras. [Alguns links nos comentários.]

É possível enxergar as alegações e responder: todas são verdade. Mas uma outra porta de pensamento se abriu para mim durante o filme: como Daniela Thomas, branca, rica, uma das pessoas que organizaram a festa de abertura da Olimpíada no Brasil, poderia fazer outro filme? Ela poderia ter colocado a câmera em outro lugar? Em outras palavras: podemos criticar o filme pelo que ele NÃO tem?

Por mais que as discussões sobre um "autor" individual, gênio que escuta as musas, já tenham mais de cem anos, e tenham retirado completamente a força dessa "inspiração divina", a grande maioria das obras que chegam ao >mercado< são fruto de escolhas de um sujeito. Ainda hoje, filmes, livros, músicas etc. são expressões de subjetividades particulares. Essas pessoas são influenciadas pelo mundo que habita, são moldadas pelos encontros, são afetadas pela/os outra/os, mas, ainda assim, foi Daniela Thomas quem escolheu o ponto de vista do filme. Ela quem disse "ação" e "corta".

Como ela falaria de algo que não é "ela"? O limite de sua atuação não é exatamente os seus próprios limites? Não estaria ela fazendo um movimento quase antropológico de "tradução" ou de "diplomacia" entre mundos que se chocam?

Reparem, não é uma defesa da elite, uma defesa corporativista, que daria carta branca para os "bem intencionados" a fazer qualquer coisa - ou ao menos, não é minha intenção consciente. Eu quero entender. Eu quero escutar, de verdade, sem qualquer ironia.

Eu sei que a obra de arte não pertence ao seu autor, mas a quem tem contato com ela. Eu sei que há diversas chaves de interpretação das obras de arte, que vão além da estética. Eu sei que a obra de arte está inserida em um determinado contexto histórico, social, cultural. Eu sei que é impossível agradar a todos [o que bate diretamente com a minha neurose]. Eu sei que, diferentemente do que diz Brás Cubas, a obra em si mesma NÃO é tudo - é necessário enxergá-la sob perspectivas. Eu só não sei o que ela poderia ter feito de diferente. Gostaria verdadeiramente saber.