Escrevo esse texto para tentar entender. Para pedir ajuda a minhas/meus colegas para me fazer ver. Do alto de todos os meus privilégios [branco, hétero, zona sul carioca, cis...] é quase sempre difícil enxergar a[o/s] outra[o/s]. Escrevo para sair do meu lugar, desse lugar, e escutá-la[o/s].
Vi ontem "Vazante", o novo e polêmico filme de Daniela Thomas. Uma pequena-grande crônica extremamente cuidadosa na recriação de época de uma família rica das Minas Gerais, na região dos diamantes, em 1821.
O filme é violento do início ao fim. Mostra-se diversas formas de submissão que são os fundamentos da sociedade brasileira: homens contra mulheres, ricos contra pobres, mas principalmente, sem nenhuma dúvida, brancos contra negros.
O dono da fazenda, tropeiro, querendo começar uma plantação nas suas terras, mantém um grande número de negros sob o seu jugo. Entre trabalhadores da lavoura, africanos recém-chegados, gente que trabalhava em sua casa, mulheres que vendiam doces nas praças da cidade, capatazes, negros forros que se tornam capitães do mato, todos, de uma maneira ou outra, estão debaixo de sua jurisdição - "pertencem" a ele.
É tão violenta a forma como as relações são mostradas que não há maneira de não ficar extremamente incomodado com a escravidão. Ela é tratada de maneira tão crua, tão direta, e também tão cheia de nuances, que não minoram em nada o problema, ao contrário, a acentuam: para uma vida um pouquinho melhor, o negro tinha que se "embranquecer". Ou eu, do alto dos meus privilégios, achei que não poderia ser mais incisivo.
O filme vem sofrendo, desde a sua primeira exibição pública, no festival de Brasília, uma enxurrada de críticas de representantes do movimento negro, por dessubjetivar os negros retratados na película, os relegando a um papel coadjuvante no processo todo. Por, enfim, ter contado o filme a partir da perspectiva da sinhazinha que, muito jovem, é obrigada a casar com o português dono das terras. [Alguns links nos comentários.]
É possível enxergar as alegações e responder: todas são verdade. Mas uma outra porta de pensamento se abriu para mim durante o filme: como Daniela Thomas, branca, rica, uma das pessoas que organizaram a festa de abertura da Olimpíada no Brasil, poderia fazer outro filme? Ela poderia ter colocado a câmera em outro lugar? Em outras palavras: podemos criticar o filme pelo que ele NÃO tem?
Por mais que as discussões sobre um "autor" individual, gênio que escuta as musas, já tenham mais de cem anos, e tenham retirado completamente a força dessa "inspiração divina", a grande maioria das obras que chegam ao >mercado< são fruto de escolhas de um sujeito. Ainda hoje, filmes, livros, músicas etc. são expressões de subjetividades particulares. Essas pessoas são influenciadas pelo mundo que habita, são moldadas pelos encontros, são afetadas pela/os outra/os, mas, ainda assim, foi Daniela Thomas quem escolheu o ponto de vista do filme. Ela quem disse "ação" e "corta".
Como ela falaria de algo que não é "ela"? O limite de sua atuação não é exatamente os seus próprios limites? Não estaria ela fazendo um movimento quase antropológico de "tradução" ou de "diplomacia" entre mundos que se chocam?
Reparem, não é uma defesa da elite, uma defesa corporativista, que daria carta branca para os "bem intencionados" a fazer qualquer coisa - ou ao menos, não é minha intenção consciente. Eu quero entender. Eu quero escutar, de verdade, sem qualquer ironia.
Eu sei que a obra de arte não pertence ao seu autor, mas a quem tem contato com ela. Eu sei que há diversas chaves de interpretação das obras de arte, que vão além da estética. Eu sei que a obra de arte está inserida em um determinado contexto histórico, social, cultural. Eu sei que é impossível agradar a todos [o que bate diretamente com a minha neurose]. Eu sei que, diferentemente do que diz Brás Cubas, a obra em si mesma NÃO é tudo - é necessário enxergá-la sob perspectivas. Eu só não sei o que ela poderia ter feito de diferente. Gostaria verdadeiramente saber.
Vi ontem "Vazante", o novo e polêmico filme de Daniela Thomas. Uma pequena-grande crônica extremamente cuidadosa na recriação de época de uma família rica das Minas Gerais, na região dos diamantes, em 1821.
O filme é violento do início ao fim. Mostra-se diversas formas de submissão que são os fundamentos da sociedade brasileira: homens contra mulheres, ricos contra pobres, mas principalmente, sem nenhuma dúvida, brancos contra negros.
O dono da fazenda, tropeiro, querendo começar uma plantação nas suas terras, mantém um grande número de negros sob o seu jugo. Entre trabalhadores da lavoura, africanos recém-chegados, gente que trabalhava em sua casa, mulheres que vendiam doces nas praças da cidade, capatazes, negros forros que se tornam capitães do mato, todos, de uma maneira ou outra, estão debaixo de sua jurisdição - "pertencem" a ele.
É tão violenta a forma como as relações são mostradas que não há maneira de não ficar extremamente incomodado com a escravidão. Ela é tratada de maneira tão crua, tão direta, e também tão cheia de nuances, que não minoram em nada o problema, ao contrário, a acentuam: para uma vida um pouquinho melhor, o negro tinha que se "embranquecer". Ou eu, do alto dos meus privilégios, achei que não poderia ser mais incisivo.
O filme vem sofrendo, desde a sua primeira exibição pública, no festival de Brasília, uma enxurrada de críticas de representantes do movimento negro, por dessubjetivar os negros retratados na película, os relegando a um papel coadjuvante no processo todo. Por, enfim, ter contado o filme a partir da perspectiva da sinhazinha que, muito jovem, é obrigada a casar com o português dono das terras. [Alguns links nos comentários.]
É possível enxergar as alegações e responder: todas são verdade. Mas uma outra porta de pensamento se abriu para mim durante o filme: como Daniela Thomas, branca, rica, uma das pessoas que organizaram a festa de abertura da Olimpíada no Brasil, poderia fazer outro filme? Ela poderia ter colocado a câmera em outro lugar? Em outras palavras: podemos criticar o filme pelo que ele NÃO tem?
Por mais que as discussões sobre um "autor" individual, gênio que escuta as musas, já tenham mais de cem anos, e tenham retirado completamente a força dessa "inspiração divina", a grande maioria das obras que chegam ao >mercado< são fruto de escolhas de um sujeito. Ainda hoje, filmes, livros, músicas etc. são expressões de subjetividades particulares. Essas pessoas são influenciadas pelo mundo que habita, são moldadas pelos encontros, são afetadas pela/os outra/os, mas, ainda assim, foi Daniela Thomas quem escolheu o ponto de vista do filme. Ela quem disse "ação" e "corta".
Como ela falaria de algo que não é "ela"? O limite de sua atuação não é exatamente os seus próprios limites? Não estaria ela fazendo um movimento quase antropológico de "tradução" ou de "diplomacia" entre mundos que se chocam?
Reparem, não é uma defesa da elite, uma defesa corporativista, que daria carta branca para os "bem intencionados" a fazer qualquer coisa - ou ao menos, não é minha intenção consciente. Eu quero entender. Eu quero escutar, de verdade, sem qualquer ironia.
Eu sei que a obra de arte não pertence ao seu autor, mas a quem tem contato com ela. Eu sei que há diversas chaves de interpretação das obras de arte, que vão além da estética. Eu sei que a obra de arte está inserida em um determinado contexto histórico, social, cultural. Eu sei que é impossível agradar a todos [o que bate diretamente com a minha neurose]. Eu sei que, diferentemente do que diz Brás Cubas, a obra em si mesma NÃO é tudo - é necessário enxergá-la sob perspectivas. Eu só não sei o que ela poderia ter feito de diferente. Gostaria verdadeiramente saber.
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