Ontem, fui à Barra, esse bairro nascido à força que rasgou a história geomorfológica carioca para receber os filhos de uma então nova classe do capitalismo-tardio-periférico-feudal brasileiro. Sempre me surpreendo com um bairro criado para os carros, eu que nem sei dirigir, e ter passado muito tempo sem voltar lá nessa ilha da fantasia wannabe (me lembra a San Angeles, de "O demolidor" - aquele com Stallone e Wesley Snipes, sabe?) não ajudou em nada minha estranheza. Para piorar, uma cena parecida saída de uma distopia (essa palavra na moda) invadiu ainda mais a minha percepção.
Numa das áreas mais ricas do riquíssimo bairro, havia uma multidão de crianças - algo como uns 100, 200, sem exagero - todos muito pobres, nas margens da Avenida das Américas, tentando se entreter subindo nas árvores, brincando de pique, agindo, enfim, como crianças ~analógicas~, enquanto suas mães se sentavam em cadeiras de praia tentando também matar a espera. Mas espera de quê?
Como os sinais da Barra sempre foram lotados de crianças fazendo malabarismos ou pedindo dinheiro, minha primeira reação foi achar que o enorme grupo era efeito dos momentos atuais, de crise de perspectivas e de horizontes cada vez mais curtos. Estava certo e errado ao mesmo tempo. Era possível tanta gente viver das migalhas dos mais ricos? Depois, me explicaram: isso só acontece no dia de Cosme e Damião e no dia das crianças - ontem.
Mulheres moradoras de áreas periféricas levam suas crianças para a Barra nessas datas para receber doces (no dia 27 de setembro) e brinquedos (no dia 12 de outubro). Alguma coisa ali nessa cena me incomodava e me incomodou muito.
Talvez, primeiro, mostrar à força o contraste entre estratos sociais tão distantes. Eles não "pertenciam" àquela área, destoavam como se fosse um "erro" na programação de um bairro planejado para evitar pobres - ou, ao menos, pobres à vista. Uma infiltração, que não se conseguiu prever.
Eles me forçavam encarar de frente a verdade de que enquanto há um mar de mansões e apartamentos de frente para a praia, há um oceano de crianças carentes até do mais simples. Enquanto há meninos de classe-média que ganham tantos brinquedos que nem conseguem abrir todos os pacotes, há garotos que se sujeitam - ou são sujeitados - a mendigar por migalhas.
Mas não foi só esse componente moralista-social (que, claro, importa) que atravessou minha garganta. Havia alguma coisa além que me incomodava ainda mais profundamente. O que era, fiquei me perguntando, o que era?
Sempre fui uma criança estranha (fui?). Entre tantas estranhezas, nunca gostei de doces - portanto o Corme&Damião nunca foi um dia especialmente importante. Jamais corri atrás dos saquinhos e quando os ganhava, eles ficavam literalmente meses na minha casa sem serem tocados - até que eram provavelmente jogados fora.
Há, contudo, um elemento na busca pelos saquinhos que cada vez mais me interessa, por misturar um processo ativo a uma atitude lúdica. Meninas e meninos saem pelas ruas da cidade numa busca pelo(s) tesouro(s), sem usar qualquer tipo de mapa pré-determinado. As suas caminhadas são a própria forma de criar trajetórias, quase como arcos narrativos, da própria cidade - dessa geografia afetiva que nasce a partir das corridas. É um descobrir e se apropriar dos lugares, sem se tornar dono ou proprietário. Aquele por-do-sol é seu, mas é também de quem mais olhar. É uma espécie de atualização da proposta do flâneur, mas com pitadas de ginga e uma alegria que não constavam no original. É um se deixar afetar, mas ativamente. É um estar aberto para o que acontece, à medida que se caminha, sem ficar parado.
Exatamente o inverso da proposta daqueles pobres meninos e meninas pobres que coloriam as margens da Avenida das Américas, ontem. Os meninos e as meninas na Barra estavam sendo usados por madames para expiar suas culpas. Não pode ser coincidência o dia de ontem também ser o da padroeira desse que é o maior país católico do mundo. Os meninos e as meninas eram meros bonecos despersonalizados, sujeitados pela vontade dos outros. Mesmo que eles possam aproveitar os brinquedos, mesmo que seja melhor que eles tenham algo para brincar, mesmo que seja melhor que as madames doem os brinquedos extras de seus filhos a deixá-los estragando dentro de casa, esse encontro só reforça o desencontro. Os meninos são objetos de decoração que apenas reforçam a dignidade "altruísta", "caridosa" e "filantrópica" da nossa elite de casa grande. Não preciso dizer a cor da pele de todas- TODAS - as crianças nas margens da grande avenida, né?
Lembro de uma história de madames de Ipanema que pediram para deixar os mendigos na porta da igreja de Nossa Senhora da Paz para que elas pudessem lhes dar esmolas ao sair das missas aos domingos - e foram atendidas. Os meninos e as meninas estão sendo treinadas para serem os próximos pedintes.
Numa das áreas mais ricas do riquíssimo bairro, havia uma multidão de crianças - algo como uns 100, 200, sem exagero - todos muito pobres, nas margens da Avenida das Américas, tentando se entreter subindo nas árvores, brincando de pique, agindo, enfim, como crianças ~analógicas~, enquanto suas mães se sentavam em cadeiras de praia tentando também matar a espera. Mas espera de quê?
Como os sinais da Barra sempre foram lotados de crianças fazendo malabarismos ou pedindo dinheiro, minha primeira reação foi achar que o enorme grupo era efeito dos momentos atuais, de crise de perspectivas e de horizontes cada vez mais curtos. Estava certo e errado ao mesmo tempo. Era possível tanta gente viver das migalhas dos mais ricos? Depois, me explicaram: isso só acontece no dia de Cosme e Damião e no dia das crianças - ontem.
Mulheres moradoras de áreas periféricas levam suas crianças para a Barra nessas datas para receber doces (no dia 27 de setembro) e brinquedos (no dia 12 de outubro). Alguma coisa ali nessa cena me incomodava e me incomodou muito.
Talvez, primeiro, mostrar à força o contraste entre estratos sociais tão distantes. Eles não "pertenciam" àquela área, destoavam como se fosse um "erro" na programação de um bairro planejado para evitar pobres - ou, ao menos, pobres à vista. Uma infiltração, que não se conseguiu prever.
Eles me forçavam encarar de frente a verdade de que enquanto há um mar de mansões e apartamentos de frente para a praia, há um oceano de crianças carentes até do mais simples. Enquanto há meninos de classe-média que ganham tantos brinquedos que nem conseguem abrir todos os pacotes, há garotos que se sujeitam - ou são sujeitados - a mendigar por migalhas.
Mas não foi só esse componente moralista-social (que, claro, importa) que atravessou minha garganta. Havia alguma coisa além que me incomodava ainda mais profundamente. O que era, fiquei me perguntando, o que era?
Sempre fui uma criança estranha (fui?). Entre tantas estranhezas, nunca gostei de doces - portanto o Corme&Damião nunca foi um dia especialmente importante. Jamais corri atrás dos saquinhos e quando os ganhava, eles ficavam literalmente meses na minha casa sem serem tocados - até que eram provavelmente jogados fora.
Há, contudo, um elemento na busca pelos saquinhos que cada vez mais me interessa, por misturar um processo ativo a uma atitude lúdica. Meninas e meninos saem pelas ruas da cidade numa busca pelo(s) tesouro(s), sem usar qualquer tipo de mapa pré-determinado. As suas caminhadas são a própria forma de criar trajetórias, quase como arcos narrativos, da própria cidade - dessa geografia afetiva que nasce a partir das corridas. É um descobrir e se apropriar dos lugares, sem se tornar dono ou proprietário. Aquele por-do-sol é seu, mas é também de quem mais olhar. É uma espécie de atualização da proposta do flâneur, mas com pitadas de ginga e uma alegria que não constavam no original. É um se deixar afetar, mas ativamente. É um estar aberto para o que acontece, à medida que se caminha, sem ficar parado.
Exatamente o inverso da proposta daqueles pobres meninos e meninas pobres que coloriam as margens da Avenida das Américas, ontem. Os meninos e as meninas na Barra estavam sendo usados por madames para expiar suas culpas. Não pode ser coincidência o dia de ontem também ser o da padroeira desse que é o maior país católico do mundo. Os meninos e as meninas eram meros bonecos despersonalizados, sujeitados pela vontade dos outros. Mesmo que eles possam aproveitar os brinquedos, mesmo que seja melhor que eles tenham algo para brincar, mesmo que seja melhor que as madames doem os brinquedos extras de seus filhos a deixá-los estragando dentro de casa, esse encontro só reforça o desencontro. Os meninos são objetos de decoração que apenas reforçam a dignidade "altruísta", "caridosa" e "filantrópica" da nossa elite de casa grande. Não preciso dizer a cor da pele de todas- TODAS - as crianças nas margens da grande avenida, né?
Lembro de uma história de madames de Ipanema que pediram para deixar os mendigos na porta da igreja de Nossa Senhora da Paz para que elas pudessem lhes dar esmolas ao sair das missas aos domingos - e foram atendidas. Os meninos e as meninas estão sendo treinadas para serem os próximos pedintes.
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