sexta-feira, 20 de abril de 2018

MAR (conto)

Ao piscar os olhos uma segunda vez, eu estava ali, no meio de um oceano imenso de areia amarela esbranquiçada, com um horizonte infinito e absolutamente indistinto em todas as direções, o céu sem linha se confundindo com o chão, em tons opacos, uma visão translúcida – tudo era translúcido – o sol, inexistente, nuvens embaçadas, borradas, como pinceladas impressionistas. Sem conseguir me lembrar o que tinha acontecido antes, sem qualquer memória, história ou passado: era como se eu tivesse aparecido no meio de um deserto, automaticamente, como se isso fosse o que deveria acontecer. Não fazia sentido, mas o que faz sentido?

Não me preocupava em saber como eu chegara ali, apenas queria sair dali, numa angústia despropositada, sem origem. Eu buscava um rosto familiar, mas não sabia quais poderiam ser suas feições. Olhava ao meu redor e todo o ambiente era exatamente igual: areia. Grãos finos de silício – ou do que quer que fosse sua composição, não tinha certeza, não me importei. Abaixei, peguei um punhadinho e deixei escapulir entre os dedos. Era areia. Parecia areia. Acho que era areia. Tanto faz – não era isso, não era essa dúvida que me olhava de frente, no meio dos meus olhos. Quando me ergui, levantei a pesada gravidade da coluna de ar. Fiquei mareado. A pergunta me caiu sobre a cabeça como uma tormenta: para onde?

Olhei novamente ao redor para ter certeza. Nenhuma pegada, nenhuma sombra, nenhuma mudança de cor em determinado ângulo... Estava indiscriminadamente perdido. Minha caixa torácica ressoou a essa conclusão com uma síncope negativa, e depois acelerou, me incentivando a chegar a algum lugar que eu não sabia qual era. Meus foles inchavam e esvaziavam com a tentativa de queimar o carvão que abasteceria o medo indesejado, porém certo, para mim, como a morte. Uma insegurança pegajosa subia no corpo como múltiplas algas microscópicas, contaminando dos pés, canelas, joelhos, coxas, sexo, cintura, braços, barriga, tórax, pescoço, à cabeça.

Andei para o lado direito: quatro ansiosos passos, até ter certeza de que era para o outro lado que eu deveria ir, voltei os quatro e acrescentei mais alguns outros, mas não foi exatamente em linha reta, fiquei confuso, tentei regressar ao ponto inicial, mas as pegadas haviam sumido, como que absorvidas pela própria areia, decidi seguir em frente, para onde o meu nariz estava apontando, mas pensei que nada me garantiria chegar lá – onde quer que lá fosse. Imaginei que tinha visto um oásis, mas nem o calor estava forte o suficiente para se delirar. Não sentia nem frio – nada era exatamente desconfortável. Não sentia. Era-me tudo basicamente indiferente. Só queria chegar a um lugar menos árido, menos deserto. Para onde eu estava olhando quando abri os olhos pela primeira vez? Talvez essa fosse uma explicação, uma indicação. Ou seria o inverso? Essa informação estava ali apenas para me enganar? Estava me tornando supersticioso, querendo encontrar relações causais onde não há mais que aleatoriedade.

Para aumentar minha instabilidade, percebi meus pés afundarem quando ficava parado por qualquer tempo. Eu tinha que me movimentar, mesmo que contra a minha vontade. Minha tendência, nesse tipo de situação, é empacar, como um touro teimoso e pesado, que não sente o vento da pura vontade abertamente soprar nos ouvidos uma direção qualquer. O movimento me era obrigatório, como o mal e o medo e a insegurança, onipresentes, cheguei a pensar rapidamente. Lembrei, em seguida, do subtítulo da autobiografia de Nietzsche, “wie man wird, was man ist”, e lhe acrescentei uma interrogação ao fim. Ser alguém é um destino que nunca se completa, pensei. O tornar-se, sim, era um devir.

Pisquei os olhos rapidamente incontáveis vezes processando material bruto, dando formas para os caos que me rodeavam. Reparei no meu corpo feminino, passei as mãos pela minha cintura, meu quadril, meu cabelo. Minha respiração se acalmou: eu entrara em casa. Observei o cenário imóvel, com as mesmas cores, numa paleta pastel indiferente a mim e aos meus desejos. Não sabia das coisas da vida, mas percebi uma ligeira e sutil brisa passar por mim. Era um sopro difuso, que eu não tinha certeza de direção, menos de sentido, mas me deu um aconchego, como dormitar sob uma palmeira à beira do mar ameno. Minha vida começava e recomeçava, ao mesmo tempo, ali – percebi na hora. A aragem me tocava o rosto na direção contrária dos meus passos, era claro!, claro como o mundo à minha volta. Caminhar, mesmo enfrentando dunas e miragens, ainda me dava algum prazer. Segui.

domingo, 15 de abril de 2018

De ser contra a ironia

"O método geométrico, na Ética, opõe-se ao que Espinosa chama de sátira; e sátira é tudo aquilo que se deleita com a impotência e com a pena dos homens, tudo o que exprime o desprezo e o escárnio, tudo o que se nutre de acusações, malevolências, depreciações, baixas interpretações, tudo o que despedaça as almas (o tirano necessita de almas despedaçadas, como as almas despedaçadas necessitam de um tirano)".
Deleuze, na p. 19 do Espinosa e a filosofia prática.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Palpites para a eleição de 2018

Após o assassinato de Marielle, o que o épico episódio da prisão de Lula me ensinou foi que a política - em qualquer uma das suas acepções e, talvez, por consequência, toda a vida [Spinoza sorri] - é feita de afetos. Não foi incomum escutar de críticos de todos os tipos ao ex-presidente que eles choraram com todo o processo fúnebre, arrebatados com a missa [mesmo ateus!], com a aglomeração de pessoas, com o memorável discurso.

Já aqueles que o odeiam abertamente não conseguiram disfarçar muito bem como estavam afetados: tentaram de todas as formas minimizar ou desdenhar do evento - numa tática tão banal que já foi imortalizada até em ditados populares. Apenas alguns poucos se disseram indiferentes, mas mesmo assim fizeram questão de se colocarem numa posição de racionalidade que beirava a superioridade, como se somente estes tivessem acesso a uma espécie de verdade anterior. Foi difícil passar incólume dessa semana.

Esse é um dos motivos pelos quais não se chega a qualquer conclusão tentando "convencer" racionalmente um sujeito do outro lado do espectro político que você. Seus argumentos são completamente inócuos para ele. Ele é afetado por motivos absolutamente diferentes dos seus. Ele enxerga a mesma cena de um ângulo totalmente outro. E se fecha para discursos que não confirmem o seu ponto, porque seus afetos estão direcionados muito concretamente para si próprio.

Outro motivo, derivado do primeiro, é o ressentimento [alô, Nietzsche!]: lutar contra o outro sempre coloca sua força numa espécie de inferioridade em relação a quem está dando as cartas. Em vez disso, se continuássemos a pensar junto com o bigode, o melhor seria se manter firme nos seus próprios projetos, reafirmando a própria potência, seguindo em frente, tentando aumentar o alcance do seu próprio poder, e deixar que esse poder seduza os demais, talvez, quem sabe, como uma lâmpada faz com insetos no verão.

[Numa História utópica, poderíamos pensar em territórios em que os afetos parecidos se encontrassem, numa materialização das bolhas de afinidades, e fôssemos obrigados a nos mover para lá e para cá, de acordo com o formato das nossas convicções. Assim, a cidade seria reorganizada, de acordo com as nossas opções políticas. Seria uma maneira de aceitar a fragmentação dessas megacidades, cada vez mais ingovernáveis. No fundo, portanto, estaríamos pensando apenas em uma guerra territorial: quem vai ter melhores benefícios, mais confortos, em suma, quem vai morar perto da praia.]

Voltando para a realidade em que devemos votar nas próximas eleições: considerando a alta carga emocional do momento, não me espanta que diversos candidatos estejam engrossando a voz para tentar gritar mais alto que o adversário. Uma das maneiras de aparecer mais é aumentar o volume. Lembrar de um determinado governador com gosto de chuchu que tentou apimentar seu discurso sugerindo que Lula era o culpado pelo atentado a si mesmo - e depois, percebendo que isso podia estragar sua postura de bom-moço cristão, mudou de opinião. Também não é de espantar que vários intelectuais que opinam sobre a política tentem resfriar o jogo, apelando para um ideal de racionalidade. Funciona como se eles estivessem puxando a corda desesperadamente para o outro lado, numa tentativa de diminuir o fogo [suspeito que não dá mais].

Não é também coincidência que o principal ponto da agenda para a próxima eleição majoritária seja exatamente a segurança pública. Para comprovar isso, basta pensar que o único candidato, além de Lula, que emergiu do bolo intermediário nas pesquisas de opinião foi aquele, à extrema-direita, que se vende como o salvador da pátria em relação à violência urbana. Não deve ser visto como um movimento despretensioso, portanto, a intervenção militar no Rio [área de influência do tal candidato], e os recente elogios do atual ocupante da cadeira de presidente ao golpe de 1964. Foi uma maneira do ex-vice-presidente-golpista tentar vampirizar a agenda do falso messias, golpear o poder de persuasão do dito-cujo, e angariar capital político para si mesmo, já que sua aprovação está nos calcanhares.

A violência (urbana, rural, em ambientes mistos ou inclassificáveis) mexe diretamente com os afetos porque, primeiro e óbvio, tem a ver com a própria sobrevivência, a própria integridade física. A própria e a dos próximos. É comum ter vivido ou ser testemunha de crimes bizarros. Segundo, porque os números de violência das grandes cidades brasileiras são, comparativamente com cidades do Norte rico, inegavelmente assustadores. Terceiro, porque há uma repercussão imensa, uma reverberação fora do ordinário em diversos meios de comunicação. Há jornais e programas de TV exclusivamente dedicados ao assunto, em todo o território nacional. Isso além dos telejornais tradicionais explorarem o tema à exaustão, quase de maneira a nos anestesiar. Por consequência, os meios de comunicação tendem a aumentar cotidianamente a carga, sobrecarregando nossos órgãos receptores. Funciona. O medo é um combustível muito produtivo para a indústria da ansiedade. Maus afetos ainda são afetos.

Como, então, entrar numa pauta tão espinhosa, sem cair no discurso do recrudescimento - e ainda se fazendo ouvir? Como falar para quem está convivendo diariamente com violências de todas as formas, que é assoberbado de relatos tristes e vê uma banalização de tragédias, que não adianta matar o traficante? Que a violência só tende a aumentar com a liberação das armas? Que a pena de morte vai afetar principalmente criminosos de baixa voltagem, que não tiveram dinheiro para protelar seu julgamento? Que o problema não é a comercialização de drogas, já que há tráfico em todas as cidades do mundo, mas o arcabouço histórico-social - esse nosso barril de pólvora eterno - em que ele está inserido? E, por outro lado: que o policial é apenas uma peça - consciente, autônoma, mas ainda assim uma peça - dessa imensa engrenagem? Que nem o próprio policial quer ser militar? Que há sádicos nas forças, mas que esse comportamento reflete a mentalidade do lado de fora dos quartéis?

A violência é um nó górdio brasileiro, antigo, o mais antigo, talvez, que, acho, poucos estão capacitados para enfrentar. Espero que um destes se apresente para o trabalho, seja eleito e consiga exercer seu mandato até o fim.

Mudo (Conto)

O colapso de Miguel foi um estranhamento para todos nós. Nos pegou de surpresa, de um jeito que eu não sei bem como foi. Estou com dificuldade de admitir isso. Vim só porque a minha mulher insistiu muito. Não tinha nem reconhecido, aqui. Não podia ser. Ele era um símbolo, sabe? Um ídolo. Um cara que eu conhecia há muito tempo. Eu o admirava pra caramba. Comecei a acordar no meio da madrugada, sem motivo, com o coração em disparada, com medo, medo... de quê? Depois, depois. O encontro com ele, ali, na Cinelândia foi, foi... Foi surreal. Posso fumar aqui? Voltei a fumar, sim.
Foi ali, ali, ó. Miguel se transformou de maneira que não o reconheci quando passei por ele. Estava degradado, vilanizado, com roupas que eu nunca imaginei nele – ele que foi sempre muito elegante –, fazendo aquelas coisas que agora ele faz. O mais bizarro – bizarro nem dá conta direito – o mais bizarro era o permanente sorriso no rosto. Ele enlouqueceu, só pode. Completamente fora da realidade. Miguel, Miguel...  Era como se desconhecesse sua condição. Como se houvesse esquecido o passado. Um lunático.

Fomos colegas de faculdade ainda há quase 30 anos – estou velho. Estamos velhos. Economia na PUC, só o dream team do pensamento liberal. Ele, meu veterano, sempre pareceu que iria longe. Lia tudo o que era pedido e muito mais. Presenciei várias discussões suas com os professores. Os mestres menos ortodoxos questionando suas convicções: “Como você tem tanta certeza do que está falando?”, dizia o velho Soares, um comuna disfarçado que se vendia como desenvolvimentista. Lembro como se fosse hoje. “Fala em números, faz ginásticas matemáticas, como se elas resolvessem os problemas sociais como catapultas mágicas. A realidade é muito mais complexa, Miguel.” Ah, o velho Soares. Com o donaire que sempre lhe foi característico, Miguel respondia com apenas um sorriso, de superioridade, altivez, condescendência, como se dissesse sem se dignar a mostrar os dentes: coitado.

Passamos anos sem nos encontrar e acabamos nos esbarrando na Véritas, uma consultoria de fundos de investimentos para grandes fortunas. Ele veio assumir o cargo de VP – na prática era quem mandava, já que o presidente estava baseado em Nova York –, enquanto eu sou apenas um gerente de contas industriais. Era merecido. Queria chegar lá, mas queria que ele também continuasse lá. Nunca tive um chefe com a inteligência, a precisão e a classe de Miguel. E a elegância? Sempre usava ternos Ermenegildo Zegna e sapatos Bemer. Lembro de uma oportunidade em que a garçonete da firma derrubou café e sujou alguns dos papéis que ele mantinha sobre a mesa. Em vez de se alterar, Miguel disse para a senhora não se preocupar, erros acontecem com todo mundo. Em nenhum momento ele levantou a voz; foi controlado, calmo – beneplácito, eu diria. O máximo que ele fez, e só quando ela saiu, foi pedir a administração da Véritas para que essa senhora – já uma senhora de idade, não deveria estar nessa função – não lhe servisse mais. Se fosse eu...

Que gestor. Miguel era um homem extremamente compreensível com seus subalternos. Mesmo sob a pressão cotidiana. Lá, temos que bater metas assustadoras. Trabalhamos 12, 13, até 16 horas por dia. A Véritas se vende como a consultoria que entrega os melhores rendimentos do mercado. E nós precisamos cumprir o prometido – o que acontece quase sempre. Nas poucas oportunidades em que não conseguimos, Miguel aparece para resolver. As contas são separadas, mas em todos esses momentos, ele chamou a equipe inteira para conversar, instigando o sentimento de equipe. Um verdadeiro líder. Ali, todos estávamos juntos. E ele jamais levantou a voz, nem precisava. Falava baixo e pausadamente. O esporro parecia pior. Como se nos enfiassem uma faca vagarosamente, por horas, individualmente, em vez de nos bater com raiva.

Ele nunca citava o culpado pela falha, não precisava. Todo mundo sabia quem era. Nossos dados eram públicos. A competição entre os funcionários sempre foi a melhor maneira de nos incentivar a trabalhar mais. Miguel mandava que nós fizéssemos o que fosse necessário para entregar os números prometidos. Lembrava do bônus de fim de ano, das festas, das convenções, dos cursos bancados com dinheiro da Véritas. Lembrava de todos os benefícios e lembrava ainda que nós tínhamos o compromisso de atingir essas metas porque éramos os melhores do mercado. Sempre fomos, sempre seríamos.

A Véritas é conhecida por ter os salários mais altos e as maiores cobranças do mercado. Somos demitidos compulsoriamente se, por exemplo, acumularmos três meses em sequência abaixo dos objetivos. É o jogo jogado. Muitos, nessas horas, apelam para investimentos, digamos, complicados. Outros fazem isso todos os meses. Eu nunca fui a favor dessas aplicações mais controversas. Nunca as fiz, mas não julgo quem fez. Eu sei que você vai manter o sigilo por isso eu vou dizer. Há certos fundos em que não sabemos para onde o dinheiro vai. São fundos secretos, de riscos estratosféricos, mas com retornos altíssimos, e, principalmente no caso de quem está com a corda no pescoço: de liquidez quase imediata. Você coloca dinheiro num buraco negro, às cegas, e, pam, rapidamente recebe uma grana de volta. Acontece, de vez em quando, de não funcionar, mas o ágio estratosférico vale a pena o risco.

Só que, na verdade, sabemos muito bem para onde vai esse dinheiro investido. São fundos que sustentam conglomerados com braços em operações não exatamente legais nos países árabes, na África subsaariana, em cartéis americanos. Essa grana sustenta mercenários, venda de armas para grupos revolucionários – com aspas aqui –, tráfico internacional de pessoas, ou mesmo para incentivar plantações de matéria-prima para entorpecentes, papoula no Afeganistão, folha de coca na Bolívia, essas coisas. Dinheiro arriscadíssimo, mas com enormes taxas de retorno. Quando o sujeito chega ao segundo mês sem bater a cota, não titubeia. Ele não quer perder o emprego. Hoje em dia, é cada vez mais difícil conseguir algo parecido com a Véritas.

Com uma política de liberdade total com os empregados, Miguel não se dizia nem a favor nem contra esse tipo de investimentos – simplesmente não comentava. Claro que ele os conhecia, mas fazia ouvido de mercador. Pregava apenas o máximo de transparência possível, para que os investidores tivessem noção de para onde estaria indo o seu dinheiro. A grande maioria dos clientes, porém, ignorava a composição das suas carteiras, e se importava apenas com os rendimentos. Não me lembro de nenhum colega citar alguma reclamação.

Ele, Miguel, ele era assim. Um espelho para todos nós. Não sei como agora ele está lá, no meio da Cinelândia, vestido de palhaço, com uma peruca ridícula, nariz vermelho, nariz vermelho!, e tentando fazer as pessoas rirem. Quem vai rir dele? Quem vai rir hoje em dia?

Não sei como ele chegou lá, ali. Não sei mesmo. Nas últimas semanas, ele não parecia mais nervoso que o normal. Até a última vez que eu o vi, manteve sua fleuma inabalável. Seu sorriso altivo. Uma saúde invejável. Um corpo rígido como um tronco de árvore. Um ex-surfista que ainda hoje caía na água. Sua família era perfeita. Com uma mulher, linda e inteligente, Ana, Ana Lúcia, uma médica pediatra reconhecidíssima, e filhos maravilhosos terminando a faculdade fora do país – o que houve com ele?

Fico perdido. Esse colapso parece que liberou alguma coisa represada, algo que não podia sair – em mim, em mim, estou falando de mim. Tentei buscar alguma direção, mas quanto mais eu procuro, mais eu me perco. Parece uma janela que foi rompida, arrombada, destruída, e os fantasmas se libertaram. Tenho que me reerguer, mas meu corpo está pesado. Estou sempre cansado, mas não consigo dormir. Nada prende a minha atenção, mas estou sempre ansioso, como se algo pudesse acontecer a qualquer momento, e eu precisasse estar lá, para presenciar, para ser a testemunha. Minha garganta se mantém constantemente inflamada, como se ela prendesse as minhas falas, fazendo com que elas voltassem e adoecessem também o meu estômago. Tenho ânsia de vômitos e tonteiras a cada vez que discuto – e eu estou brigando a toda hora com a minha mulher, com os meus filhos. Não sou assim. Estava tudo bem para mim. Estava tudo bem...

Por isso que eu aceitei vir aqui. Nada tem sentido. Só sei o que eu escuto por aí, pelos corredores. E não se pode confiar em fofocas – mas é o que temos, é o que temos... Uns dizem que ele foi por livre e espontânea vontade – o que não é possível. Ele jamais iria por livre e espontânea vontade. Não Miguel, o Miguel que eu conheci. Mas era isso que tinha acontecido, segundo esses: que ele tinha acordado, um dia como outro qualquer, e desistido. Simplesmente desistido. Não posso acreditar, não posso acreditar.

Outros que o estopim foi uma cena a que ele assistiu. A senhorinha do café me contou, não aguentou e me contou que viu quando aconteceu. Achei estranho, mas deixei ela falar. Eu estava muito perdido, não conseguia nem mesmo controlar os meus passos. Fraco, febril, como se tivesse gasto toda a minha energia tentando entender. Estava na minha mesa, ela começou a falar, levantei o rosto, ela estava com o semblante assustado, como se tivesse visto uma represa ruir e afogar uma cidade inteira. Ela contou uma história impressionante, que eu não consegui captar os detalhes, só as pinceladas mais fortes, uma história sobre um dia em que Miguel estava saindo daqui, ela disse, um dia qualquer. Achei estranho de cara: raramente ele saía do escritório. Sua vida era: casa no Alto, carro, motorista, insulfilm, celular, Centro, almoço e tudo o mais dentro do escritório, e voltar para casa, tarde da noite. Daí, achei estranho, ainda mais estranho, mas eu não tinha forças para falar nada, eu estava atônito. Deixei ela continuar. Miguel estava saindo e – sabe o que é mais surreal para mim? Miguel parece feliz agora. Eu o olhei ali na Cinelândia e ele fazia malabarismos, sorria para as pessoas, entregava rosas. O Miguel? Não tive coragem de falar com ele. Não podia ser ele. Pois ele até mudou de nome, para um nome mais que ridículo, um nome que não combina com ele. Diz que é o Palhaço Pixote. E ele sorriu para mim! Como se ele tivesse me convidando, como se ele... – a senhorinha do café, a senhorinha do café (não sei o nome dela). A senhorinha do café veio me dizer que o Miguel (qual é o nome da senhorinha?) saiu do escritório um dia, ele saiu, calmo, aparentemente calmo, sol forte e seco, céu azul de outono, ela voltava do almoço, mas, quando ela o viu, parou na esquina, não queria cruzar, tinha sido ele, ela sabia, ela tomou um esporro, ele era impenetrável, ele tinha um único movimento (palavras dela), rígido, um único objetivo e seguia nessa direção e não tinha nada que o desviasse, ela disse. Miguel viu uns policiais se aproximando, e tinha um grupo de mendigos, gente que dormia ali, todos os dias, há muito tempo, mas piorou, em pouquíssimo tempo, a marquise lotada, colada à Véritas, Miguel, desprevenido, aberto, desatento, desprotegido, ela disse, Miguel, inocente, inocente?, e a polícia chega e começa a bater, bater, mulher, velho, até criança, várias famílias, e os policiais, cassetete e spray, e Miguel, o Miguel que nós conhecemos, o Miguel – ele mesmo – o Miguel correu para lá, imagine, como assim o Miguel? – o Miguel se meteu na frente dos policiais, o Miguel se meteu e eles continuaram, sem enxergar, e bateram nele também, o terno rasgou, perdeu um sapato, caiu no chão, ela disse, só depois os policiais perceberam: opa!, e pararam, pararam, ofegantes, mas já era, já tinha passado, Miguel no chão, ensanguentado, desalinhado, sem o sapato direito... Não sei se acredito: o Miguel, ali, deitado, sem sapato, rosto no chão sujo? Não pode ser. A senhorinha continuou – e eu não conseguia esboçar qualquer reação: os policiais o levantando, ele zonzo. A senhorinha correu, ajuda, ajuda!, os policiais contemporizando, amenizando, não foi bem isso, por que você aqui?, é sua culpa, quem mandou se meter aqui? A senhorinha o levou, os policiais sumiram, a calçada livre, novamente – por alguns instantes, disse ela, e logo os moradores voltaram, para onde eles iriam?, ela perguntou, e eu não tinha o que responder – e ela e ele atravessaram a rua, foram para uma praça pequena aqui perto, e, quando chegaram, ele olhou para ela, abriu um sorriso e disse “obrigado”, todo o rosto aberto, aliviado. Ela disse. Ele estava leve, ela disse. Ele estava livre, ela disse.

Depois eu descobri que ela inventou toda essa história. Foi o que me disseram. Disseram que ele tinha ido para a Cinelândia porque tinha uma vontade desde criança de ser palhaço, tinha visto uma cena quando pequeno que o marcou, num circo, num circo na Praça XI, e a cena reverberava sempre nele, e resolveu simplesmente seguir sua vocação, agora, já velho, porque ele podia, excentricamente. Abandonar a família, abandonar o emprego, abandonar a realidade e viver num mundo à parte, completamente louco. Mas também era tão aleatório. Tudo era aleatório por demais, nada faz sentido...

Até eu mesmo. Eu mesmo menti também. Tive vergonha de admitir o que eu fiz, não sei por que. Talvez porque ele me confundiu – a tranquilidade dele... não, não foi a tranquilidade. Foi a sensatez. Ele não parecia perdido, como eu esperava encontrá-lo. Ao contrário. Ele parecia, ele parecia... feliz. Merda!, eu não consigo, isso, assim... Não consigo... É muito para mim. No dia que ele me chamou, ali, na praça – eu tinha ido lá, queria vê-lo, com os meus olhos, e ele me chamou, me chamou sem pronunciar meu nome, ele me chamou apenas me olhando, sorrindo, calmo, me oferecendo uma flor – eu, hipnotizado, intrigado, sem saber o que fazer, o que pensar, me aproximei. Nós não conversamos nada. Foi um silêncio, que apagou todas as buzinas e as conversas e os barulhos ao nosso redor. Ele apenas me entregou a flor e sorriu, sorriu o maior sorriso que eu já vi na vida. Quando a senhorinha falou que ele sorriu para ela, eu lembrei desse sorriso – mesmo que ela tenha me falado antes, mas eu lembrei, mesmo antes, já lembrei antes de falar com ele – ele, que nunca tinha sorrido, nunca o tinha visto sorrir esse sorriso, não o outro, não o anterior. Foi demais para mim. Tive a certeza de que ele me reconheceu.