quarta-feira, 26 de março de 2003

e não é que o chinewski, depois de um ano fora do ar, voltou? para quem quiser ler algumas boas coisas - e outras nem tanto - www.chinewski.com ou cliquem lá embaixo...

sexta-feira, 21 de março de 2003

Óbvio ululante

Óbvio ululante. Seria assim que Nelson Rodrigues iria tratar da Guerra do Bush. É óbvio ululante que Saddam Hussein é um ditador cruel, sanguinário, genocida e todos os outros adjetivos que os americanos e ingleses dão para ele. Porém, uma invasão norte-americana, com o suposto apoio de trinta países, da Inglaterra até alguns nanicos, e sem o da onu, mostra até onde vai a empáfia dos eua. Esse tipo de atitude unilateral mostra que nenhum país está protegido de uma intervenção americana para proteger os interesses deles. O que é assustador.

O que não é considerado óbvio ululante, e por isso mesmo tão ou mais assustador, é a falta de atitude prática de todo mundo em relação à violência que vive à nossa espreita.

Não é o caso só de culpar o governo, que até tem a maior parcela da culpa, mas também de olhar para cada umbigo. E não é um problema para ser resolvido com passeatas emocionantes e inúteis. Mas uma questão de tomar uma atitude que traga resultados mais imediatos.

Enquanto ficarmos somente em frente à televisão assistindo anestesiados ao noticiário das oito, viveremos recebendo notícias de pais de amigas assassinados na porta de casa durante um passeio com o cachorro. Ou que o irmão de doze anos de um amigo foi agredido na saída de um jogo de futebol, sem que as autoridades nada fizessem. Ou presenciar um tiroteio num restaurante que estamos acostumados a freqüentar no meio de um dos bairros ditos pacíficos da cidade.

Não sei se posso chamar, mas arrisco. Vivemos numa guerra civil. Acredito que o termo não é nem próximo de original, entretanto é o mais adequado para todas os problemas que enfrentamos.

Durante décadas, a classe média fez que não viu o crescimento expressivo das populações marginais. As favelas cresciam e o “estabilishment” varria a imagem para debaixo do tapete. Agora, o morro desce para pedir seu quinhão.

É razoavelmente comum encontrar argumentos de que basta eliminar o povão excluído que vive na periferia. Como se de um dia para o outro isto acabasse com todos esses problemas. A idéia é tão fraca que se projetarmos um período de vinte anos, todos os problemas estarão de volta.

Contudo, o caos urbano provocado pelo estado de violência cotidiano não se resolverá com atitudes somente estruturais. Aquela combinação famosa em campanha política de “saúde e educação”. Elas são indispensáveis, mas já viraram óbvios ululantes.

Uma tentativa seria levar a presença do Estado para essas comunidades de uma maneira diferente do que há agora. Para pobre, o único braço do Estado que chega até ele – o policial – é sinônimo de tiroteio e problemas. Temos que levar possibilidades de inclusão. Temos que mostrar que não há diferença entre o cara que desce o morro todo dia e aquele que vive freqüentando cinemas, boates de grife e points badalados.

Temos que lidar com inteligência com a situação. Monitorar todas as regiões mais violentas. Criar estatísticas não-camufladas de crimes. Mapear a cidade e promover atitudes direcionadas. Li certa vez, num artigo do Xico Sá para o Nomínimo, que o governo do PT no Rio, durante os oito meses que ficou ativo, implementou alguma coisa parecida. Tudo, claro, jogado fora agora.

Tomar atitudes mais severas em relação aos chefes das grandes quadrilhas. O sistema penitenciário é feito para re-socializar o preso, porém citem-me um caso em que isso aconteceu? Não é o caso de desistir da base de atitude, a prisão deve continuar tendo como meta a re-inclusão do delinqüente na sociedade. Mas, o que dizer dos grandes comandantes dos comandos, para ser bastante redundante, que estão presos? Não é uma defesa da pena de morte ou coisa parecida, apenas um pedido humilde para impedir que eles tenham o mesmo tipo de poder dentro ou fora da cadeia. Como diria Nelson, o óbvio ululante.

Não tenho a mínima idéia se essas atitudes são as corretas ou se irão dar algum resultado diferente. Porém, se continuar assim, o futuro é mais do que certo. Já ultrapassamos os números de mortos de alguns países em conflito ou até em guerra. Já há pessoas que não saem em determinadas horas de casa por medo. Já há casos de cidadãos que acumulam dezenas de assaltos. Não quero imaginar aonde chegaremos.

Já colecionamos uma nomenclatura toda própria sobre o assunto. Cidade sitiada, cidade partida, em guerra. Mas parece que o futuro resvala na frase definitiva de Nelson. Se não fizermos algo em caráter de urgência pela nossa cidade, e conseqüentemente pelo nosso estado, pelo nosso país, nem o óbvio ululante a salvará.
aconselho a dar uma visita nos blóguis relacionados ali em baixo. principalmente dos camaradas. o do César, por exemplo, conheci hoje. depois foi a vez do da Nira. Iuri, sempre o Iuri, volta a escrever com bastante freqüência. e o do Jafas, sobre cinema é bem legal.

quarta-feira, 19 de março de 2003

Segundo o Arthur Dapieve, um dos maiores entusiastas do período, a diferença entre os dois mais conhecidos filósofos existencialistas de língua francesa era que Sartre escrevia suas teses filosóficas com inspiração em romances, enquanto Camus escrevia romances que tinha inclinações filosóficas. Ou algo do gênero.

Certo é, e isso me lembro bem, que ele dizia que Camus escrevia melhor do que Sartre. Nunca li nada do francês, mas é inegável a capacidade do argelino em contar histórias interessantes de maneira interessante. Li dois livros de Albert Camus, “O Estrangeiro” e “A Peste”, e, por mais que sejam díspares, eles defendem bem essa tese.

Em “O Estrangeiro”, o escritor consegue sintetizar na forma de seu protagonista, Mersault, o homem do século XX. É um romance urgente, rápido, visceral. Quase um manifesto punk, décadas antes dos ingleses quererem usar piercing e tocar músicas de três acordes.

O personagem não aspira a nada, deixa ser levado pela maré. Não almeja a nenhuma coisa, apenas está. Não quer mudar de vida, espera permanecer para ser mais um. Não quer desfigurar do meio comum, sonha apenas ser parte da massa. Não é superior nem inferior, faz parte da média.

As emoções não o tocam, vive planando ao longo disso. E o primeiro parágrafo é exemplar quanto a isso. Ele conta, em primeira pessoa, que sua mãe havia morrido, mas não tinha certeza se tinha sido no dia anterior, ou no dia antes desse.

Ele constrói sua persona ao longo da primeira parte do livro. Primeiro com a morte da mãe e sua indiferença, depois com o emprego público e a pouca vontade de mudar de posição, em seguida ao encontrar uma nova namorada por acaso, e aceita-la mesmo sem estar apaixonado, e por último quando começa a freqüentar a casa de conhecidos que se diziam amigos. Mersault é um homem que vive na maré sendo levado sem sua vontade.

A virada na vida do protagonista vem quando ele, sem mais nem menos, assassina um argelino – o estrangeiro do título – numa praia qualquer. O homem do século passado é assim, não tem motivos, age por agir, sem pensar. Nem é um instinto no sentido de ser irracional, mas voltado para o lado de dar pouca importância para tudo. Ele observa sua vida como sem objetivo, sem nenhum porquê, sem rumo.

A partir daí, Mersault enfrenta um julgamento onde ele nem tenta se salvar, pois tinha a certeza de que isso pouco importava para ele. Por mais que a condenação fosse iminente, o protagonista não luta pela liberdade. Para ele, qual é a diferença?

Já em “A Peste”, Camus fala de uma cidadezinha no norte da sua Argélia natal chamada Oran que é invadida, também sem muito motivo, pela peste. A doença que já dizimou milhares de pessoas em diferentes partes do globo em várias épocas.

Tudo, porém, é metáfora para narrar a invasão alemã na sua França de adoção na segunda guerra mundial. De maneira exemplar, ele compara os Nazistas à peste bubônica, e deixa isso disfarçado, mas decodificável, desde o prefácio.

“A Peste” é um romance mais tradicional. Funciona como crônica de uma cidade que é invadida e sitiada de maneira indesejável – se é que haja algum tipo de invasão desejável.

Conta histórias de um grupo de amigos que ficam divididos entre a necessidade de ajudar toda a cidade a se salvar da doença e ficar distantes de familiares e vulneráveis a contaminações.

É um romance mais cerebral onde a cada informação parece que existe uma referência para ser achada. Onde a cada problema relatado, pode ser encontrado um que correspondia à França de Vichy.

É também uma história política para os padrões camusianos. Cética, onde se admite que não há muita coisa a se fazer além de lutar contra um adversário sem rosto e que não se sabe se vai vencer ou não.

O mais interessante dessa obra, em comparação àquela, é sua atemporalidade. Com seu caráter mais urgente, “O estrangeiro” fica mais restrita a um determinado período, o século XX, como sua obra definitiva. Já “A peste” é não se prende tanto a determinados períodos. Ele mesmo diz isso no livro quando afirma que não há prognósticos acertados e definitivos sobre quando a peste atacará novamente. Ou quando ela irá invadir novamente uma cidade, estado ou nação sem autorização de ninguém. Qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência.

O que mais falha nessa última obra, parece-me, é o seu caráter, às vezes, excessivamente cerebral. Por mais que o autor tente passar como era a reação de cada cidadão da cidade, de diferentes classes e estilos de vida, parece que a emoção vem requentada. Ao contrário, porém, do que acontece com “O Estrangeiro”, onde a cada página vemos traços genuínos de uma indiferença que aperta a boca do estômago. A cada bater de ombros do protagonistas, dá vontade de parar, olhar para um espelho e perguntar, será que somos assim mesmo? E fugir antes que possamos escutar a resposta, para não se assustar ainda mais.

As duas obras em conjunto, contudo, retratam de maneira exemplar, o que foi o século que acabou há menos de cinco anos. Talvez elas sejam complementares. Uma tenta falar sobre cada um de nós especificamente e a outra na maneira como nos comportamos em conjunto. Ambos indispensáveis para conhecer onde estamos e para onde estamos indo. Se é que isso é realmente importante.

sexta-feira, 14 de março de 2003

Não se dê tanta importância

Não se dê tanta importância.
Escutei à minha passagem.
Pense em zumbidos,
igual a milhares de abelhas em vôo ao lado do ouvido
apenas para desviar sua atenção.
Mas, por quê?
Martelava na minha cabeça.
Um por que sem verbo, adjetivo, ou qualquer coisa a mais.
Um por que, apenas e simples.

Não se dê tanta importância.
Repete como num mantra para desviar minha visão.
Esqueça aquilo que você viu.
Acredito que seria bom para você ver o filme.
Não tenho certeza se você vai gostar.
Apenas acho que seria bom, pelo contraste.

Não se dê tanta importância.
Mas como não pensar que a vida não é vida caso você fuja dela?
Já tenho todos os cacoetes necessários para ser um escritor.
Só os cacoetes.

O zumbido desvia a intenção.
Se der importância, percebo que não vale a pena.
Não há lição de moral, não há nem moral.
Apenas pergunto e a pergunta foge com insistência.

Por quê?
A covardia é minha amiga.
Quer dar algum motivo.
Me instiga a responder.
Fornece colaboradores.
Demonstra exemplos.
Abstrato.
Percebo que tudo o mais pode ser tátil, isso não o é.

Eu sei que desistir de tudo agora, novo, é sinal de impaciência.
Mas, e se a única coisa que o tempo me trouxer for o arrependimento?
E se a única coisa que eu puder ser durante toda a minha vida for um fardo?
E se a única maneira de conseguir sobreviver for através de migalhas camaradas?
Por quê?

Eu sei.
Eu sei que a cada tempo uma impaciência diferente povoará minha mente. Como um sinal de angústia temporária.
Eu sei que poucas coisas poderão me fazer feliz por mais de dez segundos. Eu sei que posso conhecer tudo e desistir de tudo na metade de uma volta ao mundo.

Não se dê tanta importância.
Escuto o zumbido ao meu lado.
Basta viver sua vida, medíocre, plana, na superfície.
Sobreviverá.
Terá sempre alimento em casa.
E aos sessenta ou setenta anos, morrerá de um infarto cardíaco.

E como explicar para mais alguém que isso não é o suficiente?
Como dizer que se há a possibilidade de mais alguma coisa,
por que se contentar com algumas migalhas?
E não digo de algo que possa tocar, ou medir com ambas as mãos.
É algo inenarrável.
É algo que existe sem a minha presença ou até existência.
Algo que me infringe a perguntar por quê?

Por quê?
O que é que faz sentido nessa vida?
Dê-me um pequeno exemplo para saber o que é que faz sentido.
Não aceito conceitos ou idéias salvacionistas.
Vivemos porque não temos nada melhor para fazer.
Ou porque não somos corajosos.
Ou porque aceitamos o dia-a-dia como a melhor coisa que tínhamos para fazer.
Por quê?

Medo.
Não se dê tanta importância.
Quem sou eu para dizer algo importante.
Não tenho importância.
Não tenho importância, repete aqui ao lado.
Não sabemos o que somos,
não sabemos aonde chegaremos,
não sabemos nada.
Vivemos numa roleta onde a cada jogada devemos apenas agradecer como a única coisa possível.
É essa pressão que carregamos,
que nos prende ao banco,
que impede de nos levantar.

Quem somos nós além de peças sem importância?
Somos seis bilhões de peças sem importância,
uns com mais poder divino que outros,
nenhum por minha inteira e irrestrita vontade.
E acredito, se é que posso acreditar em algo, que nem de ninguém.

O que temos além de horas que espremem horas, que espremem horas, até o infinito?
E se o infinito já tiver sido definido como o momento exato que existe agora, quando você já pensou já passou.
O infinito é ou era.

Por que, se quero viver apenas para aprender,
apenas para escrever,
para transformar-me numa máquina,
numa locomotiva de produção,
numa espécie de fábrica com coração?

Porém, o que é mais viável, cada vez mais viável
é ser um pequeno e irrisório nada.
Daqueles que só conseguem produzir cascas, embalagens, redomas. Aqueles que só conseguem, ou imaginam, ou fingem entender.
Que riem de alguns por comodismo,
que não sabe nem tocar, nem falar, nem imaginar.
Que não sabe perdoar, não sabe conviver, não sabe imaginar de dentro, de dentro de uma caixa torácica quentinha.

Não se dê tanta importância.
Não se dê importância nenhuma.
Esqueça que você existe.
Viva apenas.
Siga em frente.
Vá a praia.
Ria, disfarce o rancor.
A vida é bela, não é?

Não.
E não adianta agora vir com bolas de cristal,
runas ou qualquer uma dessas coisas.
Não adianta.
Não me dou a importância necessária para acreditar em algo.
Vivo para ser um pária.
Apenas um pária daqueles que só existem por caridade da sociedade.

E se disserem que eu deveria lutar,
que deveria levantar a cabeça,
que deveria ir em frente,
direi que nem sei para onde minha visão aponta.
Não é uma fuga, é a realidade.

terça-feira, 11 de março de 2003

apenas um teste...depois melhoro
a morte é inevitável. a violência não.
cenas de carnaval I

Piso na areia e enxergo a multidão aglomerada no quiosque que toca rock... Não conheço ninguém a minha volta... O que eu to fazendo aqui? To sozinho, vou pegar uma cerveja para beber... O quiosque tá lotado, melhor ir nesse trailerzinho aqui do lado... Olha essa ruivinha na mesa... Tá acompanhada, claro... Quanto tá a Skol? Dois reais? Preço justo.

Com a cerveja na mão, é melhor ficar em um lugar que possa observar todo o movimento... Carai, esse grupo de lourinhas que passa é sensacional, mas devem ter dezessete anos no máximo... Que música é essa? Hum, gosto duvidoso, “Na moral, Na moral”. Prefiro a minha versão, “Gadernal, Gadernal”.

Sozinho não dá nem para disfarçar que eu estou olhando para uma das dezenas de meninas lindas que existem aqui. Aquele grupo de lourinhas passou aqui em frente e subiu na mesa de dentro da tenda. Olha aquela ali... Que rosto delicado, de narizinho em pé, que decote... Será que ela olhou para mim? Não, não é possível. A amiguinha dela, outra lourinha, é outra maravilha, só que de rosto mais ossudo, mais angular e a melhor bunda que uma menina pode ter... Acabou minha cerveja, é melhor buscar outra.

Vou me apoiar nesse troço que segura a tenda, assim dá para parecer que eu to aqui só para ver o show... Cacete, Mais um grupo de meninas lindas. Quantos anos devem ter aquelas de cima da mesa? Olha a moreninha, ela olhou para mim. Ou foi para alguém aqui atrás. Vou disfarçar e olhar... Será que ela percebeu que eu olhei para trás?

Que música é essa? Não conheço, deve ser algo de alguma obscura banda gaúcha. Não, segundo o vocalista, é uma música deles. Logo, algo de alguma obscura banda catarinense, o que não é, assim, tão diferente... Quanto esses caras devem ganhar para tocar aqui? Foram eles que tocaram aqui ano passado? Deve ser um bom emprego, tocar numa tenda no meio do carnaval, para várias meninas lindas... Olha, a moreninha de cima da mesa olhou para cá novamente... O que eu devo fazer? Será que eu devo ir lá falar com ela? O que eu falo para ela? Você é linda. Não, isso é ridículo. Mais canastrão impossível. O que eu devo falar para ela para parecer interessante? Vou pegar outra cerveja porque essa aqui acabou.

Aqui atrás da mesa das meninas, consigo enxergar perfeitamente todas... Essa música dá para dançar. Parece que é... É Led Zeppelin... As duas lourinhas estão do outro lado da mesa. Na minha frente a moreninha deliciosa e uma gordinha. Já sei, vou chegar para ela e perguntar quantos anos ela tem. Só para ela ficar curiosa. Então, ela vem falar comigo, e... Impossível. Ninguém cairia numa cantada desse nível. Peraí, subiu um sujeito para falar com a moreninha. Também, quem mandou demorar tanto? Vou ficar olhando a lourinha com o super-decote. Ela tá de costas para mim, mas pode olhar para mim de vez em quando, sei lá. A moreninha deu um beijo no cara. Filho da puta. Eu sou um medroso mesmo. Era só subir e falar qualquer coisa. Mas, será que isso é realmente saudável? Eu nem a conheço direito, e se ela for uma chata? Eu não a conheço nada, para falar a verdade. Digamos que ficássemos juntos, se eu tivesse algum tipo de coragem, o suficiente apenas para falar com ela, e ela, claro, aceitasse ficar comigo, o que teremos em comum para conversar? A menina deve ser muito nova... Caraca, a vontade de mijar vem nas piores horas.

Ainda bem que o meu banquinho continua vazio. Vou subir para ficar na altura da lourinha ali na frente. A outra lourinha, a de rosto anguloso, abaixou, o que ela tá fazendo?, pega um cigarro, eu adoro meninas que fumam, se levanta, olha para o lado, para o outro, para trás, sou o mais perto dela, “Tens isqueiro?”, com todo o som do “s” que tanto adoro, mas não, não tenho isqueiro. Fiz cara de culpado, ela olhou para o outro lado e pediu para um sujeito com uma camisa da gaviões da fiel na mesa ao lado. Ele tinha isqueiro.

Na minha frente, a moreninha dança agarrada ao sujeito que subiu “só” para conversar com ela. Na frente dos dois, as duas louras dançam de frente para o interior da tenda. Ao lado da moreninha, uma baixinha, meio gordinha. Ela olhou para mim. Ela olhou para mim? O que eu faço? Não, não quero nada com ela. Ela repara que eu reparei que ela olhou para mim. Tá vindo para meu lado no banco. Não vou sair daqui. Que situação constrangedora, não quero ser grosseiro, mas, o que devo falar com ela se ela vier falar comigo? A gordinha chama a moreninha na minha frente, e é a minha deixa para ir buscar mais uma cerveja.

Uma versão da Tribo de Jah para “Santeria” do Sublime. Apesar de gostar mais da original, porque é uma das minhas bandas preferidas, essa não me incomoda. Melhor que várias outras músicas que esses caras tocaram.

O sujeito que tá com a moreninha vem falar comigo na maior cara-de-pau. Apela para o sentimento de camaradagem dos homens, “Ai, cara, essa daqui (a moreninha) disse que só fica comigo se você for falar com ela (a gordinha)”. “E você aceitou esse tipo de chantagem?”, como se eu não tivesse reparado nos dois juntos. O sujeito arregala os olhos, com certeza não esperava esse tipo de resposta. Estava preparado para que eu me esquivasse e ele iria contra-argumentar usando o sentimento machista de que o homem deve ter o máximo número de fêmeas possível para disseminar a espécie. Ou algo parecido. A moreninha vem falar comigo, “É só conversar com ela”. “Não rola”. Um pouco grosseiro, talvez. Mas a situação que se previa seria surreal demais até mesmo para quem está acostumado a isso. Imagine para mim.

É melhor ficar atrás da lourinha de traços finos. Ela é sensacional. Deve ser novinha, mas isso, no caso dela, não importa. Parece safadinha, olha como dança. A música? Uma merda. Uma versão da Comunidade Ninjitsu para um funk daqui de cinco anos atrás. É constrangedor, mas ela dança, nossa, como dança a menininha. Sozinha é um espetáculo. Acho que não vi nenhuma como ela aqui. Quero sair com ela daqui, vou convidá-la para tomar uma cerveja comigo, “Você quer tomar uma cerveja comigo?”. Acho que disse algo em voz alta. Foi sem querer, não queria dizer isso. Ela tá se virando, tá procurando quem falou com ela, o que devo dizer?, o que vou fazer?, já sei, vou fazer que nem aquela crônica do Veríssimo que o cara diz qualquer coisa para chamar a atenção da menina e puxa um papo surreal com ela depois disso, ela tá se virando, olhou nitidamente para mim, para os meus olhos, é agora, é agora, “Oi, tudo bom?”, ela desviou os olhos de mim, “Tudo bom”, ela me ignorou, como se eu fosse transparente. Desce da mesa, acompanho todo o seu movimento, vai na direção de um sujeito apenas de sunga na mesa ao lado, sobe na mesa, que saia pequena, abraça o cara, não, não faz isso não. Ela beija ele. Filho da puta.

E, então, penso, Quem sou eu para que aquela ali quisesse algo comigo? O melhor mesmo é ir embora. Vou tomar uma cerveja no caminho.

sexta-feira, 7 de março de 2003

duas mulheres

Há duas mulheres na minha vida. Ou havia, pelo menos. Até a semana passada, o fim-de-semana passado, para ser exato.

Conheci Andréia no meu trabalho. Ela entrou no meu setor, há uns seis meses atrás. Mesmo não fazendo exatamente o meu estilo, ela chamava a atenção. Cabelos de um louro escuro, lisos até o meio das costas e olhos claros não passam impunes. Quando fomos apresentados, ela sorriu, eu sorri de volta. Tudo, pensei, no maior grau de profissionalismo. Acho que ela não encarou assim.

Já Nicole, posso admitir, é uma paixão antiga. Desde a época da faculdade. Lembro que comecei a estudar e ainda namorava com uma menina do colégio. Nicole também namorava. Mas nada impediu que nos aproximássemos durante os quatro anos. Entretanto, vale ressaltar, nunca havíamos ficado realmente juntos.

Um dia, num aniversário de um sujeito do trabalho, Andréia sentou-se ao meu lado e puxou conversa. Começou falando banalidades, mas em pouco tempo já enveredava por declarações de que desde a primeira vez que havia me visto, tinha mudado sua concepção de vida. Ela tinha um namorado de anos, mas pensava em terminar com ele no momento em que eu quisesse. Fiquei surpreso, mas pensei que a conversa pararia ai. Me surpreendi.

Ao final da faculdade, Nicole terminou com o namorado, e eu já não encontrava a minha há pelo menos dois anos. Fiquei dois anos desesperançoso de que nunca a encontraria de novo. Havíamos nos separado um pouco por minha causa. Já não agüentava pensar que ela nunca seria minha. Toda vez que a via com o cara, sentia meu corpo queimar de uma raiva que era misto de inveja e impossibilidade.

Lembro que disse na festa para Andréia que não, não poderia carregar um peso desse tamanho nas costas. Não poderia ser o responsável pela separação de um namoro tão antigo. Cheguei a ser bastante claro, resvalando na grosseria, disse que não gostava dela, assim não poderia me aproveitar da situação. Ela respondeu que eu deveria me aproveitar.

Com as coincidências da vida, ou porque as amizades sempre são muito próximas quando tratamos da mesma faculdade, comecei a encontrar a Nicole cada vez mais após esses anos todos. Pensava que ela já sabia o que eu sentia por ela, mas, um dia, um pouco bêbado, fui claro para não pairar dúvidas. Ela me olhou nos olhos, mexeu no meu cabelo, puxou meu rosto e me deu um beijo. Depois, foi embora sozinha para a casa dela.

Quando sentei para conversar com Andréia, já havia bebido bastante. E ela também. E continuamos a beber para, sei lá, temperar melhor a conversa. Ora, Andréia é uma menina que atrairia qualquer um. O rosto delicado, o nariz afilado, os grandes olhos verdes me furando quase, a beijei.

Já Nicole me evitou por uns tempos. Dizia que ainda pensava no namorado, que eles ainda se encontravam, que não seria justo comigo. Segurei na garganta o meu impulso de dizer para ela não se importar comigo, mas na hora veio a imagem de Andréia na cabeça e no quão ridículo que isso poderia soar. Permaneci quieto, sentindo novamente o amargor de outrora, só que agora mais forte, ao pensar que ela já tinha sido minha, que aquela menina pequena, de curvas provocantes, com aquele cabelo curto que mostrava o colo, já esteve envolta nos meus braços.

Evitei Nicole por um tempo. Pensei em ficar sozinho e então apareceu Andréia, de pára-quedas, sem avisar, sem nenhum sinal. No final da festa, Andréia pergunta se eu estava de carro, respondo que tinha vindo de carona, ela se propõe a me levar em casa. Fecho os olhos e balanço a cabeça concordando, mas lá dentro uma pergunta martela, será que eu estou fazendo a coisa certa?

Moro sozinho. Chegamos em casa, a convido, sem vontade de a convidar, apenas pelo fator social, para subir, tomar alguma coisa e ela aceita sem pensar. Já no elevador, esquecemos de qualquer convenção. Abro a porta sem olhar para a maçaneta e rolamos pela entrada até o sofá da sala, onde ficamos por algumas horas.

Quando o telefone tocou, acordei num salto e olhei para o relógio, ele marcava 3h47min. Olhei para o meu lado, Andréia deitada, nua, dormia, parecia absorta em algum sonho. Corri para atender ao telefone, parecia que não sabia quem era, mas em algum lugar eu tinha certeza.

Escutei a voz da Nicole e encostei minha cabeça na parede apoiada no braço. Ela perguntou se podia me ver. Primeiro balancei a cabeça, depois respondi que era claro, ela insistiu e eu confirmei mais uma vez, ela queria saber se podia me ver agora, naquele momento e eu fiquei em silêncio. Olhei para Andréia, olhei para a parede em branco, mas só pensava em Nicole, só nela, o quanto eu queria estar com ela ali, o quanto queria essa menina, claro, respondi, é claro que você pode vir para cá agora. Ela disse que chegaria em alguns minutos, quis saber quantos, ela respondeu em quinze, mais ou menos.

Fiquei com um nojo de olhar para Andréia. Sem pensar, a culpei por estar fazendo algo que não queria. Mas eu percebo agora que não houve nem culpa, nem culpados. Apenas algumas pessoas que queriam aproveitar o momento. Acordei Andréia, pedi para ela ir embora e disse a verdade. Queria cortar aquele relacionamento ali mesmo. Andréia me olhou, sentada na cama, sem entender direito o que acontecia, parada, nua, e percebi o exato momento que seus olhos se encheram de lágrimas. Me levantei, fui tomar banho e quando sai, Andréia não estava mais em casa.

Nicole demorou pouco mais de vinte minutos para chegar em casa e meu estômago já me matava de ansiedade. Tinha resolvido tomar um café para ficar acordado, mas acho que só fez piorar meu nervosismo. Ela tocou a campainha, abri a porta e ela ficou parada do lado de fora do apartamento. Depois de alguns segundos, me perguntou se não a convidaria para entrar, disse claro, entre. Sentamos no sofá, naquele sofá que havia estado há poucos minutos com Andréia e de onde havia rechaçado a menina que não tinha nada com o assunto. Nicole começou a falar que desistira do namorado, que não iria nunca mais ver o cara, e eu só pensava em Andréia e o quanto havia sido grosseiro. Nicole se aproximou, pude sentir um cheiro de álcool que brotava dela, fiquei com uma pequena repulsa, e não conseguia parar o meu pensamento. Nicole me beijou e eu fiquei parado, como uma estátua. Ela se afasta e pergunta se está tudo bem, responde que sim, puxo seu rosto para comprovar e a beijo novamente. Começamos a tirar a roupa automaticamente e só vem a imagem de que ali estava Nicole que tanto havia pedido e como eu havia sido ríspido com Andréia, Nicole na minha frente e eu pensava em Andréia. Comecei a me culpar por isso. Estávamos quase nus e eu sentia meu corpo tenso, meus ombros pesados, minha perna dormente. Ela beijava meu pescoço quando pedi para que ela parasse, o que foi, ela me perguntou, nada, respondi. Ficou um silêncio no quarto, ela tentou se aproximar mais uma vez, mas não conseguia relaxar, não conseguia perceber que aquela menina era a que eu havia desejado nos últimos seis anos. Não consigo, disse para ela, ela perguntou se o problema era com ela, respondi que não, que não pensasse nesse absurdo, que eu queria estar com ela sempre, só que não dava, não conseguiria, não dava. Ficamos ainda alguns segundos sentados, um de frente para o outro em silêncio. Então ela se levantou e disse que tinha que ir embora. Deu uma resposta qualquer e eu quase agradeci por tirar aquele peso da minha frente. Antes de ela entrar no elevador, perguntei se poderia ligar para ela, ela respondeu que era claro, mas ainda não tive coragem para isso. Voltei para o apartamento e tentei dormir em vão. Da janela do meu quarto vi o sol nascendo e pensei que há duas mulheres na minha vida. Logo em seguida, corrigi para a verdade, havia duas mulheres na minha vida.
Querido Papai do Céu,

Desculpe-me pedir alguma coisa para o senhor. Eu sei que o senhor deve estar um pouco atrapalhado com um montão de gente pedindo coisas para o senhor, mas é que é muito importante.

Eu sei, também, que não fui um bom menino ano passado, sei que fiquei de recuperação em matemática no colégio, sei que quebrei o vaso preferido da minha mãe na páscoa passada, que impliquei muito com o meu irmãozinho o ano inteiro, mas eu preciso pedir isso para o senhor.

O senhor deve imaginar já. Eu gostaria de pedir para o senhor acabar com o carnaval. Todo ano é a mesma coisa. A gente viaja, meu pai, minha mãe, meu irmão e eu, para a praia. É uma praia enorme, grandona mesmo, cheia de gente. Não, nada contra a praia, eu adoro ir para a praia. É que meu pai e minha mãe sempre brigam no carnaval.

Minha mãe reclama a toda hora das mulheres da praia. Dizem que são umas oferecidas, mas eu não sei o que é isso não. Diz também algumas palavras feias, mas eu não tenho coragem de dizer isso aqui para o senhor. Mas o senhor deve imaginar.

A gente chega na praia e o meu pai pede uma cerveja. E fica pedindo mais cerveja sempre que a cerveja que ele estava bebendo acaba. Ele pede cerveja da hora que chegamos até a hora que vamos embora.

Às vezes, quando minha mãe sai de perto para ir na água com o meu irmão, ou para ir ao banheiro, ele me aponta uma moça e diz que ela é muito gostosa. Um dia, meu pai aproveitou a ausência da minha mãe e chamou uma dessas moças. Queria porque queria falar alguma coisa com ela, mas a moça não parou. Meu pai falou um palavrão. Não sei se foi para ela, para o ar ou para mim.

Da última vez foi pior. Quando a moça que traz a cerveja apareceu com mais uma latinha, meu pai a segurou pelo braço. A moça conseguiu se soltar e saiu correndo lá para dentro. Minha mãe chegou da água com Augustinho, o meu irmão o senhor deve saber, e disse que tinha visto tudo. Dessa vez, eles nem brigaram, ela me puxou com um braço e com o outro carregou Augustinho e fomos embora. Meu pai ainda gritou alguma coisa, mas eu não consegui escutar direito.

Na casa da praia, ela pegou algumas roupas, colocou dentro de uma bolsa e me puxou pelo braço para o carro do papai. Agora, acabamos de chegar em casa, e eu estou escrevendo para o senhor.

Eu acho que o senhor poderia acabar com o carnaval porque, não é que eu não goste da praia, a gente podia ir para a praia outras vezes, mas é que meu pai sempre briga com minha mãe. E piora nessa época. Acho que se não houvesse o carnaval, os dois brigariam menos e ela não estaria agora chorando para caramba.

Muito obrigado, Papai do céu. Eu sei que o senhor vai atender o meu pedido. E prometo estudar mais esse ano para passar de ano direto.
Fredinho

Desde moleque Alfredo Boal de Magalhães Pinto, ou Fredinho para os íntimos, não se mostrou de acordo com as tradições de sua família. Com treze para quatorze anos, quis porque quis ir ao forró arrasta-pé que a babá, Dona Jucineide, freqüentava. A mãe, Dona Maria Quitéria Boal de Magalhães Pinto, vetou o máximo que pôde, mas o pai, Seu Carlos Henrique Magalhães Pinto, conseguiu dobrar a mulher na época. Disse para deixar o menino se divertir, que era coisa de fase, que no futuro todos ririam com a atitude rebelde dele. Até hoje o pai se sente culpado por isso.

A partir de dezesseis anos ia normalmente, junto com Carlos Jaime, filho da cozinheira, para os bailes que tocavam forró e música nordestina de toda espécie e qualidade ao pé do morro em que a família da cozinheira morava.

Era um garoto bastante inocente. E não adiantava ir várias vezes no baile, vez por outra era ludibriado por alguém em alguma coisa. Era na entrada, quando pagava o preço de várias pela dele, era ao comprar bebidas, que misturavam algo mais barato do que o que ele pedia, era na tentativa de se aproximar de uma mulher, onde bastavam ficar com ele para as meninas pedirem algo caro para ele comprar. Sempre alguém tirava vantagem de sua ingenuidade.

Um pouco depois, pediu de presente um teclado de presente. Sua mãe ficou prosa, na expectativa de que ele se tornasse algum dia um pianista, ou, ela aceitava, um tecladista de uma banda de rock. Mas Fredinho tinha outras idéias na cabeça.

O garoto chocou tanto sua família na vez que levou a primeira namorada que sua mãe exigiu que ele fizesse análise. Tudo porque a moça era fora dos padrões que ela estava acostumada. O problema era que além de ser pobre, a menina era extremamente feia. Pintara o cabelo de acaju claro, como disse no dia, e, no momento, a tinta estava saindo. Metade do cabelo claro, metade escuro. Fredinho não se importava, afirmou categoricamente para quem quisesse escutar. Disse que gostava dela assim mesmo, não importava que fosse um pouco gordinha, que vestisse roupas apertadas, que usasse uma franja fora da moda há vinte anos ou que o rosto fosse cheio de marcas de espinhas, ele gostava dela.

O fim do namoro o levou a escrever sua primeira música. Era uma tremenda dor-de-cotovelo que falava da separação dos dois. O refrão dizia algo assim “Meu amor / ele me deixou / agora, sozinho / só sinto a dor”. Em seguida escreveu mais 11 músicas, todas seguindo basicamente a mesma vertente. De presente de aniversário de 18 anos, sua mãe queria dar para ele um carro esporte, mas ele pediu a gravação de um cd. Sua mãe não aceitou, disse que aquilo não era música e deu assim mesmo o carro. Foi apenas o trabalho dele vender o automóvel e pagar as despesas com a gravação do cd. “Fredinho e seus teclados” era o título.

Os pais insistiram tanto para que fizesse uma faculdade, que Fredinho aceitou fazer engenharia na Puc. Em troca, pediu uma viagem ao pai para o Nordeste. Seu pai se empolgou, pensou que assim o menino poderia conhecer lugares bonitos, se interessar por algum tipo de arte mais erudita, ou qualquer coisa do gênero para esquecer “essa música de empregada”, como ele costumava dizer. Mas o menino queria mesmo era ir para o interior do Ceará conhecer o que ele chamava dos melhores forrozeiros do Brasil.

Na volta, mais um susto para D. Maria Quitéria. Fredinho trouxe na mala uma namorada Nordestina. A menina, mais uma vez, não se enquadrou no perfil que D. Maria Quitéria esperava. De cabelos ligeiramente cacheado na parte mais alta da cabeça, de rosto largo, de estatura bem abaixo da mediana, Sérgia Augusta, em homenagem aos dois avôs, não era, assim, bonita nos padrões de beleza atuais. Fredinho dizia que não tinha importância.

De volta ao Rio, largou a faculdade logo no primeiro semestre e começou a batalhar a divulgação de seu cd. Percorria todos os bailes cariocas de forró para tocar seu repertório. Com a explosão da onda de forró no Rio, pensou que teria mais espaço, mas o que se viu foram sucessivas portas fechadas na sua cara. Ele dizia que aquilo não era forró, que o verdadeiro forró era o feito no Nordeste, que aquilo era uma deturpação. Entretanto há suspeitas que suas declarações sejam apenas retaliações a sua não acolhida pelo grupo.

O certo é que o seu sustento, o dinheiro que ele sobrevivia, a grana que ele comprava sua carne seca com jerimum, pagava sua cachacinha, sua idas aos forrós, seus cds da Uruguaiana, ele já conseguia tirar com os shows dos bailes de periferia e principalmente, ele havia conseguido através de um conhecido distante da mãe, no pavilhão de São Cristóvão.

Deixou o cabelo crescer só atrás da cabeça, até o pescoço, próximo aos ombros, e um sombreado abaixo do nariz, já que não tinha bigode, como seu pai. E se mudou de casa. Disse para o pai que queria morar com Sérgia Augusta, nem que fosse num quarto e sala no Méier. A mãe quase teve um troço no dia da mudança.

Há duas semanas atrás, teve duas grandes notícias. Primeiro que Sérgia Augusta está grávida. Na hora ele decidiu que se fosse homem se chamaria Reginaldo, em homenagem ao seu ídolo maior. Ou Sérgia, se menina, como o seu grande amor da vida. Rascunhou até uma pequena homenagem para o bebê. “Meu bebê / que felicidade / eu te ter / nessa cidade / de cor dendê / sem idade / nem porquê”, dizia o início da música.

A outra foi num aniversário de uma menina, filha de um funcionário da empresa de seu pai em seu sítio, que ele implorou ao pai para tocar. Montou seu teclado perto da piscina, levou Sérgia Augusta e tocou por horas. Certo momento, um grupo de amigos se aproximou de Fredinho e elogiou bastante o repertório dele. O garoto se encheu todo. Perguntaram quanto ele cobrava para ficar, assim, a tarde inteira tocando, Fredinho passou seu preço e os rapazes, todos moços, com menos de 30 anos, com exceção de um mais brincalhão de orelhas de abano, disseram que o preço era justo. Propuseram para Fredinho fazer, então, uma excursão pelo Nordeste, junto com o famoso Juscelino do acordeão. Fredinho nunca tinha ouvido falar nesse tal Juscelino, mas aceitou de pronto a proposta. Os meninos só pediram que ele fosse para casa o mais rápido possível para ensaiar o repertório que, dentro de poucos dias eles entrariam em contato com ele. Fredinho disse que só iria terminar de tocar nessa festa e não sairia mais de casa. Porém os garotos, principalmente um rapaz bastante peludo, argumentaram que ele deveria ir embora o mais rápido possível mesmo. Isso queria dizer agora, naquele momento. E Fredinho foi-se embora.

Fredinho agora não sai de casa. Está treinando e esperando a ligação. Ele sabe que a qualquer momento o telefone tocará e ele poderá pedir mais informações sobre a “tour do Nordeste”, como ele está a chamando, na qual conhecerá o famoso Juscelino do acordeão. Está há quatro dias sem abrir a porta e disse que só a abrirá quando o telefone tocar. Promessa para o Padre Cícero, diz ele.