segunda-feira, 12 de maio de 2003

Coceira

A primeira vez que sentiu a coceira foi no final do expediente de trabalho. Numa quinta feira, final de mês, fechamento das contas e as contas não fechavam. Sete horas da noite, todo o escritório escuro, só ele e mais dois do grupo, seu chefe e sua assistente, o dia inteiro procurando o erro. Os olhos vermelhos por horas em frente à tela do computador, o rosto banhado num suor que não escorre, mas deixa a pele oleosa, o cabelo despenteado e alguma coisa continuava errada. Oito horas. A boca do estômago mais gelada que ponta de iceberg, o coração batendo mais rápido que escola de samba e faltava quase um milhão que ninguém sabia aonde foi parar. Nove horas. O chefe atrás dele e a assistente no computador ao lado procuravam essa pequenina diferença em todas as entradas e saídas da empresa.

Então, Luiz sentiu uma comichão na perna, na parte anterior da canela, logo acima do calcanhar e abaixo da panturrilha. Abaixou-se, levantou a calça um pouco e começou a coçar por cima da meia. Logo abaixou a meia e coçou rispidamente a perna, só parando quando sentiu uma espécie de dor, como se ele estivesse rasgado um pedaço da pele dele mesmo. Olhou para os dedos que utilizara para se coçar para certificar se se machucara, percebeu que estavam limpos e voltou para o computador para procurar o dinheiro sumido. O chefe perguntou o que tinha acontecido, e ele respondeu que deveria ser um mosquito. O chefe se levantou para buscar café, pois dizia que a noite seria longa, e Luiz aproveitou para coçar a perna novamente, dessa vez um pouco mais devagar, e sentiu um prazer quase de orgasmo no ato de coçar. Com os olhos fechados, passava o tato dos dedos vagarosamente pela perna. A cada passada de mão sentia ondas do mesmo prazer se repetindo por todo o corpo. Aquilo o relaxava de maneira sem igual, nunca tinha percebido algo tão poderoso com esse fim. A respiração rapidamente voltou ao normal, o corpo parou de suar. Olhou de volta para o computador, e pôde ver algumas movimentações financeiras que antes tinham passado despercebidas debaixo do seu nervosismo. Consertaram todos os trâmites e conseguiram ir embora antes das dez da noite.

Foi direto para casa descansar. Abriu a porta e encarou a escuridão cotidiana do seu apartamento. Entrou se arrastando, se preocupava com o relatório mensal do dia seguinte. Sabia que o fechamento das contas era o primeiro problema de fim de mês que ele enfrentava sempre. No quarto tirou o sapato do pé direito e o colocou no chão, depois jogou a meia preta por cima, tirou o do pé esquerdo, a meia esquerda e encostou o indicador no pedaço da perna onde coçara. Sua cabeça estava presa no relatório mensal, mas na hora, uma vontade incontrolável de coçar aquela parte da perna tomou conta dele. Completamente irracional Luiz começou a passar as unhas como se fossem garras no pequeno montinho – a carne estava inchada – e sentia novamente o prazer, o mesmo impronunciável que tinha sentido no trabalho. Sua respiração mais uma vez se acalmou e ele parou de pensar no relatório mensal, deitou na cama e continuou a coçar, mais devagar, agora só com as pontas dos dedos. Só o prazer da coceira povoava sua cabeça, como se fosse algo tátil, como se fosse um líquido que inundasse todo o seu cérebro e o protegesse de qualquer outro pensamento, só aquele sentir bem, só aquela vontade de descansar, de dormir um pouco.

Nos dias que seguiram, teve que fazer o relatório mensal, a apresentação para a diretoria e aprontar a previsão para os próximos semestres. Luiz ficou algumas vezes até tarde da noite na empresa. E, sempre que se sentia muito preocupado, nervoso ou estressado com algo, descia a mão e coçava um pouco a perna. A onda de prazer sempre lhe tomava de maneira a fazer-lhe esquecer o que estava fazendo no exato momento anterior. Luiz se sentia em outro ambiente, em outro estado, longe dali, a cabeça já não pensava de maneira racional, pelo menos por alguns segundos, durante a coceira. Só quando estava nervoso acima do normal que exagerava na força. E, todos os dias, ao trocar de roupa, quando chegava em casa, após o trabalho, coçava novamente a perna e deixava o torpor tomar conta do corpo. A cada passada de mão sentia as ondas se propagarem e ele se acalmar.

A coceira noturna, ao trocar de roupa em casa, já tinha se transformado em um hábito e as no trabalho se encaminhavam para isso. Ele se coçava agora, todos os dias antes de começar a trabalhar, mesmo sem sentir a titilação. Dizia para si mesmo que era para se preparar para a pedreira diária, para iniciar a jornada de bom humor.

Numa dessas manhãs, sentiu algo molhado em seus dedos. Pela primeira vez, desde que toda essa história começara, teve curiosidade em olhar para aquela parte da perna que ele arranhava diariamente. Aproximou-se para olhar bem de perto e viu um montinho de carne, do tamanho exato que imaginara, porém com uma cor roxa parecida com a de carnes estragadas, sem nenhum pêlo em volta. Ele achou estranho, pois a outra perna era extremamente cabeluda, mas não se prendeu muito tempo a isso. A água que molhou seu dedo era esbranquiçada como pus, porém mais clara. Não havia sinal de sangue ou qualquer coisa parecida. Porém, de tudo isso, o que mais o chocou foi um ponto bem pequeno, extremamente preto na parte mais alta do montinho. Parecia que a pele estava morta. Luiz ficou assustado com a idéia de ter um pedaço dele morto enquanto ele continuava respirando, andando e indo trabalhar. E se imaginou como o assassino dele mesmo. Olhava para frente, e seu computador ainda estava desligado. Sua imagem refletia na tela escura, mas ainda não tinha percebido nisso, até esse exato momento. Sentiu raiva de si mesmo, se viu com uma arma apontando para a própria cabeça ou dando nessa mesma área da perna. Sonhou com os olhos ali olhando para os próprios olhos na tela do computador desligado com ele cortando um dedo para poder se alimentar. Destrinchava o indicador da mão esquerda e mordia a ponta, na altura da unha e puxava uma falange inteira. Dava para ver o osso ainda com sangue em volta, mas a carne apodrecia rapidamente ficando da mesma cor roxa e com o mesmo ponto preto que tinha na perna. Levantou-se correndo e foi no banheiro lavar o rosto.

Luiz prometera para si mesmo, no banheiro, que não iria mais se coçar. Não queria mais um pedaço de carne podre no meio da perna, não queria mais se sentir como o responsável pelo assassinato de si mesmo.

O dia passou e Luiz ficou irritadiço com seus colegas, de uma maneira que nunca tinha sido. Foi ríspido com todo o mundo que tratou, gritou com a assistente e pediu dados impossíveis de se conseguirem para alguns subalternos para aquele mesmo dia. Foi para casa nervoso sem nenhum grande relatório, apresentação ou motivo aparente. Ao tirar as meias e a calça, a coceira irracional o tomou de súbito. Começou a se debater na cama, abraçando os joelhos, mas algo arranhava exatamente aquela região, parecia que uma pena passava bem de leve sobre a pele sensível da perna, resolveu colocar a mão por cima, tapando o machucado, mas, ao simples toque da sua mão com a região, fez proporcionar uma pequena onda de prazer, bem mais fraca que a que sentia quando se coçava, é verdade. Contudo, Luiz ficou insano, não conseguia raciocinar, queria apenas que a coceira acabasse, e começou a passar os dedos em volta da ferida, no intuito de diminuir a vontade. Era ineficaz, a coceira só aumentava. Luiz, cada vez mais sem ser dono de suas atitudes, tomado por uma espécie de síndrome de abstinência, coçou com as unhas novamente em volta e, por fim, em cima da ferida. O prazer o abraçou como uma onda de calor e ele se deitou calmamente. Ficou deitado até adormecer.

À medida que os dias passaram, Luiz tentou diminuir a quantidade de vezes que se coçava, mas sempre que isso ocorria, ele ficava mais nervoso. Seus colegas não entenderam muito bem esse comportamento e Luiz não se deu o trabalho de explicar para eles. Com uma força de vontade sobre-humana, conseguiu ficar dois dias inteiros sem se coçar. Para Luiz, foram os dias mais longos da sua vida. As horas derretiam-se nos relógios e ele olhava para todos ao mesmo tempo para saber se algum deles tinha se atrasado no instante anterior. Ficou num extremo de concentração nesses dias que não puxou conversa com ninguém. E ignorou muitas pessoas que dirigiam a palavra a ele, pois não prestava a atenção em mais nada além do prurido na perna. Na primeira noite, teve insônia e só conseguiu dormir às quatro horas da manhã. E mesmo assim, um sono leve que era acordado a todo o momento pelo barulho dos carros que passavam na rua, bem longe dali. Na segunda noite, como na anterior, tirou as roupas rapidamente para não ser pego por uma fraqueza momentânea e deitou-se direto para tentar dormir um pouco que fosse. Sentia-se mais do que cansado, sentia que todas as suas forças tinham sido gastas nas últimas 48 horas sem descanso. Deitou de bruços e sua mente não conseguia dar grandes vôos porque sempre estancavam na perna e na coceira. Colocou o outro travesseiro na cabeça, na tentativa de abafar esse pensamento, mas ele se mostrava mais forte que qualquer outra coisa. Agora sentia como que uma pequena formiga andasse em volta da área machucada. Ela andava em círculos e, no centro exato, ficava se mexendo sem parar. Na cama, sentiu ainda algo pior. A formiga imaginária subia suas pernas e por onde quer que passasse a comichão se alastrava. Pela panturrilha, pelo joelho, pela coxa, por debaixo das nádegas, entre as nádegas, na região pélvica, na virilha e Luiz não resistiu. Coçou com ambas as mãos, com todos os dedos, com as garras afiadas com uma violência nunca antes utilizada, queria rasgar, estava determinado, queria procurar por todo o corpo a formiga imaginária, que destruí-la. Entretanto, por mais que ele a procurasse, não conseguiu achar nada. Ao final de alguns minutos, exausto, adormeceu mais uma vez sem perceber.

Luiz acordou com ambos os pés no travesseiro, onde devia estar sua cabeça. A cama estava desarrumada de tal maneira que parecia que uma batalha campal, ou uma noite de sexo selvagem ocorrera ali. Ele se levantou para observar todo o corpo e perceber em que estado se encontrava. Um pedaço da noite anterior tinha sido apagado da sua memória. Olhou para a ferida na perna e ela estava igual à sempre, sem nenhum traço de diferença. Porém, teve que aproximar mais a cabeça porque não acreditou no que conseguiu enxergar. Passou as mãos nos olhos para desembaça-los e teve a certeza que toda a área que ele sentiu o prurido na noite anterior, tinha um pontinho extremamente preto, exatamente como o da ferida maior. Em toda a perna, ainda na virilha, levantou-se foi para frente de um espelho grande do armário e viu as nádegas, tinha os mesmos pequenos pontos negros. Foi olhar para elas e sentir a coceira começar a se apoderar de todo o corpo. A razão fugiu e ele se coçava como um animal com sarna, completamente enlouquecido, não fazia distinção na parte ferida e passava as unhas violentamente por toda a extensão das duas pernas. Não satisfeito, puxou as pernas para próximo do rosto e mordeu a região mais afetada, arrancando um pedaço da pele com a boca e cuspiu do lado. Sentiu uma dor e a ignorou completamente, continuando a morder e arranhar-se com as garras, sangue brotava por toda a perna, manchando o lençol branco, e as mãos começaram a coçar, o rosto, no interior da boca, ele se coçava e sangrava. Parou somente quando desfaleceu completamente em cima da cama. Ao seu lado, pedaços de sua carne misturados com sangue e vários pequenos insetos ainda se mexendo no chão.

2 comentários:

Anônimo disse...

Coçar é muito bom, tenho o mesmo problema que o Luiz, só espero não acabar como ele...

Anônimo disse...

Que horror !!!!!!!!!!!!!!!!