Houve uma terça a noite, no início da madrugada que me sentia completamente entediado. Era janeiro e todos os meus amigos haviam viajado, e eu tinha ficado, sem nada para fazer. Passei o final de semana inteiro praticamente dentro do meu quarto.
Na maior parte do tempo, ficava deitado na cama, muitas vezes com a televisão ligada, mas com o meu pensamento longe. A tv funcionava diretamente como um hipnótico para mim. Não pensava na mesma coisa sempre, mas esbarrava a todo o momento com a idéia de que não tinha nada para fazer, e que ficaria assim por um bom tempo ainda. Viajava, voava, mudava, imaginava, mas sempre encontrava esse bloqueio, esse quebra-mola que me devolvia ao chão duro.
Aluguei três filmes para ajudar o tempo passar. No entanto, assim que cheguei em casa, os vi em seqüência. Terminava um, voltava a fita, colocava na caixa e substituía por outro no vídeo. Ligeiro como se eu estivesse atrasado para algo. No final, ficaram vagas lembranças das histórias. Sei que não gostei de um em específico. De outro tenho menos lembrança ainda, nem sei se me agradou. O terceiro foi o único que ainda consegui pescar alguma coisa. Foi o que conseguiu ultrapassar, mesmo que de maneira tímida, a barreira da minha inércia e hoje consigo repetir uma de suas frases: “Você tem todos os sintomas, menos a doença”.
Tanto percebi o efeito do último filme que tentei revê-lo no dia seguinte na parte da tarde. Só que durante a projeção pude perceber que não adiantaria nada, o filme que passava na minha frente era a prova mais do que concreta da minha total falta do que fazer. E saber disso era, talvez, ainda mais torturante do que não fazer nada. Desisti de assisti-lo assim que passou de uma hora de fita.
Com o tempo em profusão, decidi terminar de ler uma novela que comprei há muito tempo. Antes de recomeçar, porém, já tinha a minha opinião formada sobre ela: era extremamente chata. Nada além disso. Na segunda, sem nenhum motivo aparente, acordei cedo e o peguei em cima da tv que tem em frente a minha cama. Passei os olhos nas últimas quarenta páginas que faltavam e acabei ainda antes de comer alguma coisa. Elas não fizeram nenhuma diferença para a trama e tive certeza que foram completamente desnecessárias.
No final de semana, eu esgotara todas as possíveis visitas em sites e quando segunda chegou, ia rever meus e-mails com extrema culpa por gastar pulsos telefônicos. Reli e re-folheei um livro de poesias que ganhei no meu último aniversário. Sabia as poesias de cor e muitas vezes fechava os olhos para ver se conseguia enxergá-las sem nem mesmo vê-las. Essa brincadeira me ajudou a passar algumas horas, se contabilizarmos todos os dias, mas, em determinado momento, ela também ficou chata.
A terça foi o pior dia de todos. Tinha decorado cada pedaço do meu quarto e ele parecia que estava diminuindo de tamanho aos poucos. Pensei em sair de casa, mas tinha medo de parecer louco andando sem nenhum motivo nem destino. Levantei várias vezes e fui no banheiro me olhar no espelho, tomei alguns banhos durante o dia, que também me ajudaram a combater o calor de dentro de casa. Minhas costas doíam de tanto ficar deitado na cama. Sentei, então, por horas. Olhava a parede vazia, ali na minha frente, a poucos metros, sem nenhum barulho em toda a casa, só o de um raro carro que passava na rua, com o único intuito de ver se ela se aproximava de mim.
Certo momento, decidi começar a ler alguma coisa nova. Levantei num pulo, como se tivesse descoberto o remédio para o marasmo. Sentei no piso, ao lado da caixa de papelão em que meus livros ficavam e comecei a tirar um por um de dentro. Contos de suspense, policiais, romances épicos, livros dos meus autores favoritos, crônicas, algumas poesias, três peças de teatro, e cheguei a conclusão de que já tinha lido tudo. Não havia nenhuma novidade para mim. Já sabia o início, o meio e o fim de praticamente todas as obras. Tinha o costume de, ao gostar de uma obra, lê-la por vezes seguidas até que eu ficasse bastante íntima. E, fora essas, não tinha nenhuma vontade de reler as que não tinha gostado da primeira vez. Principalmente aquelas que tinha sido complicado até terminar.
Havia apenas um livro que não conhecia, um dos últimos da caixa. “Obras completas”, dizia sua lombada, de um autor que não reconheci, nem o nome, nem o sexo, nem a nacionalidade, pois não havia a página que deveria informar isso. Era um completo desconhecido. Não me considero nem próximo do que é usualmente chamado ‘pessoa informada’, mas raramente encontrava algum autor, principalmente dentro de minha casa, que eu nunca tivesse ouvido falar nem do nome. E não me lembrava de ter visto o livro alguma outra vez aqui. Ele não me parecia novo, e pude comprovar que não o era, ao encontrar uma dedicatória cordial, nada emotiva, para uma moça pelo seu aniversário, que não tinha a mínima idéia de quem fosse, e uma assinatura ainda mais estranha ao final do pequeno texto.
Fiquei com o tijolo na mão, tinha mais de quinhentas páginas mais a capa dura, e imaginei que fizesse parte do espólio de meu pai, e que ele comprara em algum tipo de sebo. Sentei na minha cama com as pernas para fora, numa empolgação que não me assaltava há muito tempo. Sempre tive vontade de comprar, nessas feirinhas de livros que atravessam a cidade dentro de barraquinhas verdes, livros que eu não tivesse nenhum tipo de informação sobre a história. Pegar até mesmo os de autores considerados menores e ler todas, até achar alguma que fosse boa. Achava impossível que todas, sem exceção, fossem ruins. Essa minha idéia sempre ficava para depois porque nunca tinha tido nem dinheiro nem tempo de sobra para gastar com essas escavações. Com esse livro, desse tal Gerlu Auska, teria a oportunidade de me aventurar num livro completamente inesperado.
Algumas pessoas dizem que os escritores são mais racionais, sendo as escritoras mais emotivas. Isso tem tantas exceções que é impossível propor uma regra. Mas, se mesmo isso fosse verdade, no caso dessas ‘Obras Completas’ seria complicado classificá-lo.
O primeiro livro que a coleção comporta é de poesias, com poemas sobre angústia, sufoco, desespero diante da vida. Não há nenhuma preocupação aparente com formatos, rimas, métricas. Há um, em específico, que encontrei declarações de amor tanto por homens como por mulheres, de maneira bem parecida, e concluía afirmando que o poeta admirava realmente o ser humano de uma maneira ampla.
O segundo, porém, é diametralmente oposto. Se o anterior se chamava ‘Poemas’, este possui um nome, também simples, porém bem mais definido: ‘Sonetos da Razão’. Toda a emotividade foi substituída por respeitos às regras, como diz o próprio título da obra.
Ao terminar de ler, supus que ele poderia ter mudado de opinião sobre suas posturas literárias e optado virar radicalmente de estética. Porém o terceiro livro, também de poesia, chamado por um variável ‘Coletâneas’, fez embaralhar todas as minhas expectativas. Ele misturava ora poemas com um rigor técnico, ora de versos livres. Às vezes seus poemas eram carregados de emotividade, falando de coisas simples da vida, como observar a chuva, porém totalmente rimadas e com um ritmo impressionante. Ou eram racionais e quase lacônicos, rápidos e práticos.
A única conclusão a que cheguei após ler todos os três livros de poesias da coletânea era vaga demais. Apenas que eu tinha gostado da grande maioria dos poemas. Na sua fase emotiva, se é que posso chamá-la assim, cada verso parecia vivo e com destino certo. Eram universais e qualquer um que lesse se identificaria. Os mais racionais possuíam uma beleza quase visual. Era, da mesma maneira, impossível não gostar deles ao recitá-los em voz alta. E dessa forma, eles pareciam sair quase prontos para uma canção.
O quarto livro era de contos. É muito difícil tentar traçar algum tipo de linha comum entre todos. São tão diferentes entre si que falar do livro como se fosse unitário seria ignorar as diversas arestas que separam uns dos outros. Um possui um protagonista completamente improvável, um monte de pedras. Outros dois não possuem protagonistas únicos, mas diversos durante toda a narrativa. Sua prosa é, assim como a poesia foi, múltipla. Ora bem seca, apenas informando, quase jornalisticamente, o que acontece, ora dando detalhes e informações que me fizeram visualizar completamente a imagem a que queria se referir. Talvez o único elemento em comum a todos os contos seja o ritmo, altamente irregular em todos eles. Como se ele dirigisse um carro que evoluísse as marchas normalmente até que, de repente, sem ao menor aviso, ele diminuísse e você fosse pego de surpresa. Não chega a ser desagradável, apenas, parece-me, ele tenta inovar demais, o que no início causa algum estranhamento.
O quinto, e penúltimo da coleção, é outro de contos, bem parecidos, pela falta de unidade ao anterior. Diferentemente do que aconteceu com a poesia, os contos parecem, de certa forma, não terem sido modificados com o passar do tempo. Porém, ao considerar que dentro do próprio livro é difícil criar uma certa unidade, fica fácil alentar para sua capacidade de se metamorfosear. O que vale ressaltar nesse volume é uma preocupação maior com jogos, armadilhas e surpresas finais. Assim, ele poderia ser considerado um pouco mais racional que o anterior. Porém, essa afirmação deve ser considerada apenas como uma sugestão na interpretação. Está longe de ser a verdade absoluta, vista por qualquer olho.
Terminei de ler o quinto livro da coletânea e olhei para o relógio, marcava 4:30 da manhã. O livro me prendera de tal maneira que nem sentira o tempo passar. Ajudava também o fato de ter passado um final de semana inteiro sem fazer quase nenhum esforço, estava bem descansado. Fiz as contas das páginas para o último livro. Ele era um romance curto, de cento e oitenta e poucas páginas. Levantei, fui na cozinha, preparei um café expresso para mim e resolvi encará-lo numa talagada só. Sabia que era muita informação para um dia só, mas há tanto tempo não encontrava um autor que fosse tão versátil, que me surpreendesse tanto, que eu tivesse tanta vontade de devorá-lo quanto esse tal de Gerlu Auska, que decidi o terminaria o mais rápido possível. Assim, releria sua obra quando acordasse, para fixá-la bem, já que também não teria nada para fazer no dia seguinte.
O romance, um pouco diferente dos contos, era razoavelmente tradicional. Falava no início do nascimento de um garoto e contava sucintamente a história da infância do menino. Continua narrando o crescimento do protagonista e em certo momento senti, como acontece em dezenas de outras ocasiões, uma certa identificação com ele. Exatamente quando isso acontece, acredito que eu me empolgo mais, sempre me colocando no lugar dele para saber quais seriam minhas atitudes.
Lá para a página 20, 25, já percebi que tinha entrado em completa sintonia com a narração. Às vezes precisava apenas de passar o olho pelas linhas e sabia exatamente o que acontecia. Passaram mais dez, quinze páginas e foi então que eu comecei a achar algo de estranho naquele menino que era o fio condutor da história. Todas as minhas pretensas atitudes em relação à trama era demasiadamente similares ao do protagonista. Em nenhum momento ele tomava posições que eu não tomaria. Houve casos de ainda mais impressionantes, ele narrava situações exatamente iguais às que eu tinha passado. Falou, por exemplo, de um briga no colégio que havia presenciado quando ainda bem pequeno, a primeira vez que vi sangue voando. Depois atentei que a história não se situava em nenhum tempo, tampouco em nenhum lugar, mas me era muito familiar. Suas duas irmãs mais velhas, o aspecto físico carrancudo do seu pai, o comportamento alegre da mãe. Praticamente não tínhamos diferenças táteis. Parecia, e a cada página que virava eu tinha mais uma comprovação, que o menino era eu.
Li a história como que escravizado, mas ao mesmo tempo completamente assustado. Até agora, quando digito essas linhas, fico arrepiado, olhando para os lados a cada barulho. Porém não conseguia tirar os olhos do livro. Parecia que ele era o meu dono, tinha a minha vontade, me guiava para onde quisesse. Falava do colégio, da época da natação, das minhas primeiras namoradas, as minhas primeiras alegrias, várias das minhas derrotas, tudo estava lá, quando entrei para a faculdade, os meus amigos, os problemas com a saúde, a minha saída de casa, as mortes na família, ele não esquecia de nada.
Um capítulo começava falando sobre como o garoto se sentia entediado num final de semana porque todos os seus amigos tinham viajado. Ele passa quatro dias sem sair direito de casa e no quarto dia encontra um livro velho dentro da caixa de papelão que guardava os livros. Nesse momento, fechei as tampas do livro de súbito. Olhei para frente e dei duas respiradas fundas para tentar me acalmar, mas minha pulsação estava muita acima do normal e meus olhos estavam extremamente arregalados. Respirei novamente e abaixei a cabeça vagarosamente para olhar para a capa do livro. Cor marrom, com o nome do autor e “Obras Completas” em letras douradas, apenas. Fiquei alguns instantes sem poder raciocinar nada direito. Não tinha a mínima idéia do que estava acontecendo, e não queria ter. Levantei e dei um passo depois do outro bem devagar até chegar na caixa de papelão. Algumas obras que tinha tirado ainda estavam fora do lugar, assim o fundo da caixa ainda podia ser visto. Joguei o livro da minha mão lá dentro e nem dei tempo para observar a maneira como ele caiu, joguei outros em cima dele para soterrá-lo. E prometi para mim mesmo nunca mais mexer naquele livro.
Na maior parte do tempo, ficava deitado na cama, muitas vezes com a televisão ligada, mas com o meu pensamento longe. A tv funcionava diretamente como um hipnótico para mim. Não pensava na mesma coisa sempre, mas esbarrava a todo o momento com a idéia de que não tinha nada para fazer, e que ficaria assim por um bom tempo ainda. Viajava, voava, mudava, imaginava, mas sempre encontrava esse bloqueio, esse quebra-mola que me devolvia ao chão duro.
Aluguei três filmes para ajudar o tempo passar. No entanto, assim que cheguei em casa, os vi em seqüência. Terminava um, voltava a fita, colocava na caixa e substituía por outro no vídeo. Ligeiro como se eu estivesse atrasado para algo. No final, ficaram vagas lembranças das histórias. Sei que não gostei de um em específico. De outro tenho menos lembrança ainda, nem sei se me agradou. O terceiro foi o único que ainda consegui pescar alguma coisa. Foi o que conseguiu ultrapassar, mesmo que de maneira tímida, a barreira da minha inércia e hoje consigo repetir uma de suas frases: “Você tem todos os sintomas, menos a doença”.
Tanto percebi o efeito do último filme que tentei revê-lo no dia seguinte na parte da tarde. Só que durante a projeção pude perceber que não adiantaria nada, o filme que passava na minha frente era a prova mais do que concreta da minha total falta do que fazer. E saber disso era, talvez, ainda mais torturante do que não fazer nada. Desisti de assisti-lo assim que passou de uma hora de fita.
Com o tempo em profusão, decidi terminar de ler uma novela que comprei há muito tempo. Antes de recomeçar, porém, já tinha a minha opinião formada sobre ela: era extremamente chata. Nada além disso. Na segunda, sem nenhum motivo aparente, acordei cedo e o peguei em cima da tv que tem em frente a minha cama. Passei os olhos nas últimas quarenta páginas que faltavam e acabei ainda antes de comer alguma coisa. Elas não fizeram nenhuma diferença para a trama e tive certeza que foram completamente desnecessárias.
No final de semana, eu esgotara todas as possíveis visitas em sites e quando segunda chegou, ia rever meus e-mails com extrema culpa por gastar pulsos telefônicos. Reli e re-folheei um livro de poesias que ganhei no meu último aniversário. Sabia as poesias de cor e muitas vezes fechava os olhos para ver se conseguia enxergá-las sem nem mesmo vê-las. Essa brincadeira me ajudou a passar algumas horas, se contabilizarmos todos os dias, mas, em determinado momento, ela também ficou chata.
A terça foi o pior dia de todos. Tinha decorado cada pedaço do meu quarto e ele parecia que estava diminuindo de tamanho aos poucos. Pensei em sair de casa, mas tinha medo de parecer louco andando sem nenhum motivo nem destino. Levantei várias vezes e fui no banheiro me olhar no espelho, tomei alguns banhos durante o dia, que também me ajudaram a combater o calor de dentro de casa. Minhas costas doíam de tanto ficar deitado na cama. Sentei, então, por horas. Olhava a parede vazia, ali na minha frente, a poucos metros, sem nenhum barulho em toda a casa, só o de um raro carro que passava na rua, com o único intuito de ver se ela se aproximava de mim.
Certo momento, decidi começar a ler alguma coisa nova. Levantei num pulo, como se tivesse descoberto o remédio para o marasmo. Sentei no piso, ao lado da caixa de papelão em que meus livros ficavam e comecei a tirar um por um de dentro. Contos de suspense, policiais, romances épicos, livros dos meus autores favoritos, crônicas, algumas poesias, três peças de teatro, e cheguei a conclusão de que já tinha lido tudo. Não havia nenhuma novidade para mim. Já sabia o início, o meio e o fim de praticamente todas as obras. Tinha o costume de, ao gostar de uma obra, lê-la por vezes seguidas até que eu ficasse bastante íntima. E, fora essas, não tinha nenhuma vontade de reler as que não tinha gostado da primeira vez. Principalmente aquelas que tinha sido complicado até terminar.
Havia apenas um livro que não conhecia, um dos últimos da caixa. “Obras completas”, dizia sua lombada, de um autor que não reconheci, nem o nome, nem o sexo, nem a nacionalidade, pois não havia a página que deveria informar isso. Era um completo desconhecido. Não me considero nem próximo do que é usualmente chamado ‘pessoa informada’, mas raramente encontrava algum autor, principalmente dentro de minha casa, que eu nunca tivesse ouvido falar nem do nome. E não me lembrava de ter visto o livro alguma outra vez aqui. Ele não me parecia novo, e pude comprovar que não o era, ao encontrar uma dedicatória cordial, nada emotiva, para uma moça pelo seu aniversário, que não tinha a mínima idéia de quem fosse, e uma assinatura ainda mais estranha ao final do pequeno texto.
Fiquei com o tijolo na mão, tinha mais de quinhentas páginas mais a capa dura, e imaginei que fizesse parte do espólio de meu pai, e que ele comprara em algum tipo de sebo. Sentei na minha cama com as pernas para fora, numa empolgação que não me assaltava há muito tempo. Sempre tive vontade de comprar, nessas feirinhas de livros que atravessam a cidade dentro de barraquinhas verdes, livros que eu não tivesse nenhum tipo de informação sobre a história. Pegar até mesmo os de autores considerados menores e ler todas, até achar alguma que fosse boa. Achava impossível que todas, sem exceção, fossem ruins. Essa minha idéia sempre ficava para depois porque nunca tinha tido nem dinheiro nem tempo de sobra para gastar com essas escavações. Com esse livro, desse tal Gerlu Auska, teria a oportunidade de me aventurar num livro completamente inesperado.
Algumas pessoas dizem que os escritores são mais racionais, sendo as escritoras mais emotivas. Isso tem tantas exceções que é impossível propor uma regra. Mas, se mesmo isso fosse verdade, no caso dessas ‘Obras Completas’ seria complicado classificá-lo.
O primeiro livro que a coleção comporta é de poesias, com poemas sobre angústia, sufoco, desespero diante da vida. Não há nenhuma preocupação aparente com formatos, rimas, métricas. Há um, em específico, que encontrei declarações de amor tanto por homens como por mulheres, de maneira bem parecida, e concluía afirmando que o poeta admirava realmente o ser humano de uma maneira ampla.
O segundo, porém, é diametralmente oposto. Se o anterior se chamava ‘Poemas’, este possui um nome, também simples, porém bem mais definido: ‘Sonetos da Razão’. Toda a emotividade foi substituída por respeitos às regras, como diz o próprio título da obra.
Ao terminar de ler, supus que ele poderia ter mudado de opinião sobre suas posturas literárias e optado virar radicalmente de estética. Porém o terceiro livro, também de poesia, chamado por um variável ‘Coletâneas’, fez embaralhar todas as minhas expectativas. Ele misturava ora poemas com um rigor técnico, ora de versos livres. Às vezes seus poemas eram carregados de emotividade, falando de coisas simples da vida, como observar a chuva, porém totalmente rimadas e com um ritmo impressionante. Ou eram racionais e quase lacônicos, rápidos e práticos.
A única conclusão a que cheguei após ler todos os três livros de poesias da coletânea era vaga demais. Apenas que eu tinha gostado da grande maioria dos poemas. Na sua fase emotiva, se é que posso chamá-la assim, cada verso parecia vivo e com destino certo. Eram universais e qualquer um que lesse se identificaria. Os mais racionais possuíam uma beleza quase visual. Era, da mesma maneira, impossível não gostar deles ao recitá-los em voz alta. E dessa forma, eles pareciam sair quase prontos para uma canção.
O quarto livro era de contos. É muito difícil tentar traçar algum tipo de linha comum entre todos. São tão diferentes entre si que falar do livro como se fosse unitário seria ignorar as diversas arestas que separam uns dos outros. Um possui um protagonista completamente improvável, um monte de pedras. Outros dois não possuem protagonistas únicos, mas diversos durante toda a narrativa. Sua prosa é, assim como a poesia foi, múltipla. Ora bem seca, apenas informando, quase jornalisticamente, o que acontece, ora dando detalhes e informações que me fizeram visualizar completamente a imagem a que queria se referir. Talvez o único elemento em comum a todos os contos seja o ritmo, altamente irregular em todos eles. Como se ele dirigisse um carro que evoluísse as marchas normalmente até que, de repente, sem ao menor aviso, ele diminuísse e você fosse pego de surpresa. Não chega a ser desagradável, apenas, parece-me, ele tenta inovar demais, o que no início causa algum estranhamento.
O quinto, e penúltimo da coleção, é outro de contos, bem parecidos, pela falta de unidade ao anterior. Diferentemente do que aconteceu com a poesia, os contos parecem, de certa forma, não terem sido modificados com o passar do tempo. Porém, ao considerar que dentro do próprio livro é difícil criar uma certa unidade, fica fácil alentar para sua capacidade de se metamorfosear. O que vale ressaltar nesse volume é uma preocupação maior com jogos, armadilhas e surpresas finais. Assim, ele poderia ser considerado um pouco mais racional que o anterior. Porém, essa afirmação deve ser considerada apenas como uma sugestão na interpretação. Está longe de ser a verdade absoluta, vista por qualquer olho.
Terminei de ler o quinto livro da coletânea e olhei para o relógio, marcava 4:30 da manhã. O livro me prendera de tal maneira que nem sentira o tempo passar. Ajudava também o fato de ter passado um final de semana inteiro sem fazer quase nenhum esforço, estava bem descansado. Fiz as contas das páginas para o último livro. Ele era um romance curto, de cento e oitenta e poucas páginas. Levantei, fui na cozinha, preparei um café expresso para mim e resolvi encará-lo numa talagada só. Sabia que era muita informação para um dia só, mas há tanto tempo não encontrava um autor que fosse tão versátil, que me surpreendesse tanto, que eu tivesse tanta vontade de devorá-lo quanto esse tal de Gerlu Auska, que decidi o terminaria o mais rápido possível. Assim, releria sua obra quando acordasse, para fixá-la bem, já que também não teria nada para fazer no dia seguinte.
O romance, um pouco diferente dos contos, era razoavelmente tradicional. Falava no início do nascimento de um garoto e contava sucintamente a história da infância do menino. Continua narrando o crescimento do protagonista e em certo momento senti, como acontece em dezenas de outras ocasiões, uma certa identificação com ele. Exatamente quando isso acontece, acredito que eu me empolgo mais, sempre me colocando no lugar dele para saber quais seriam minhas atitudes.
Lá para a página 20, 25, já percebi que tinha entrado em completa sintonia com a narração. Às vezes precisava apenas de passar o olho pelas linhas e sabia exatamente o que acontecia. Passaram mais dez, quinze páginas e foi então que eu comecei a achar algo de estranho naquele menino que era o fio condutor da história. Todas as minhas pretensas atitudes em relação à trama era demasiadamente similares ao do protagonista. Em nenhum momento ele tomava posições que eu não tomaria. Houve casos de ainda mais impressionantes, ele narrava situações exatamente iguais às que eu tinha passado. Falou, por exemplo, de um briga no colégio que havia presenciado quando ainda bem pequeno, a primeira vez que vi sangue voando. Depois atentei que a história não se situava em nenhum tempo, tampouco em nenhum lugar, mas me era muito familiar. Suas duas irmãs mais velhas, o aspecto físico carrancudo do seu pai, o comportamento alegre da mãe. Praticamente não tínhamos diferenças táteis. Parecia, e a cada página que virava eu tinha mais uma comprovação, que o menino era eu.
Li a história como que escravizado, mas ao mesmo tempo completamente assustado. Até agora, quando digito essas linhas, fico arrepiado, olhando para os lados a cada barulho. Porém não conseguia tirar os olhos do livro. Parecia que ele era o meu dono, tinha a minha vontade, me guiava para onde quisesse. Falava do colégio, da época da natação, das minhas primeiras namoradas, as minhas primeiras alegrias, várias das minhas derrotas, tudo estava lá, quando entrei para a faculdade, os meus amigos, os problemas com a saúde, a minha saída de casa, as mortes na família, ele não esquecia de nada.
Um capítulo começava falando sobre como o garoto se sentia entediado num final de semana porque todos os seus amigos tinham viajado. Ele passa quatro dias sem sair direito de casa e no quarto dia encontra um livro velho dentro da caixa de papelão que guardava os livros. Nesse momento, fechei as tampas do livro de súbito. Olhei para frente e dei duas respiradas fundas para tentar me acalmar, mas minha pulsação estava muita acima do normal e meus olhos estavam extremamente arregalados. Respirei novamente e abaixei a cabeça vagarosamente para olhar para a capa do livro. Cor marrom, com o nome do autor e “Obras Completas” em letras douradas, apenas. Fiquei alguns instantes sem poder raciocinar nada direito. Não tinha a mínima idéia do que estava acontecendo, e não queria ter. Levantei e dei um passo depois do outro bem devagar até chegar na caixa de papelão. Algumas obras que tinha tirado ainda estavam fora do lugar, assim o fundo da caixa ainda podia ser visto. Joguei o livro da minha mão lá dentro e nem dei tempo para observar a maneira como ele caiu, joguei outros em cima dele para soterrá-lo. E prometi para mim mesmo nunca mais mexer naquele livro.
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