traição
Faz dez anos. E só por isso já há duas coisas que povoam a minha cabeça. Primeiro a idéia de que as cenas ainda estão excepcionalmente recentes. Cores, posições, traços, tudo tem o seu lugar dentro de mim. Nem sei se o que me lembro é a verdade absoluta, pois não tenho o distanciamento pessoal mínimo exigido, mas a riqueza de imagens, tantas e tão boas, fazem-me crer que é bem provável que aquilo mesmo aconteceu. Não teria tamanha imaginação.
A outra é uma questão. Aonde foi parar aquele menino cheio de coragem e curiosidade? Lembro dele, mas ele é outra pessoa hoje em dia, muito distante daquele. Ele não existe mais, serve-me apenas como personagem.
Tinha doze anos, idade que sabemos tão pouco de tudo que ainda esquecemos por vezes de sermos falsos, e tinha uma namorada, que ganhara com sorte, numa daquelas oportunidades semelhantes a apostas em cavalos azarões e que ele se mostra vencedor, para surpresa de todos, principalmente do leigo que apostou nele. É, eu sei, sempre fui meio precoce.
Namorava como por esporte de entretenimento, para ocupar espaço na minha estante temporal. E, depois de um tempo, já estava enjoado do cotidiano da relação, se é que posso usar tal expressão para uma vida tão jovem. Nessa época, houve uma festa onde a minha namorada não iria.
O lugar tinha tão poucas pessoas que era possível conversar com todas ao mesmo tempo. E estava absurdamente maçante. Sentar numa cadeira e olhar a paisagem era o meio mais aconselhável de se divertir. No entanto, uma das convidadas era uma menina loirinha da minha idade que eu conhecia há pouco tempo, e que sabia, tinha um certo interesse por mim.
Tinha doze anos e com doze anos, não temos nenhuma noção das conseqüências de nossas atitudes. Pedi para um amigo meu, primo da lourinha, ir falar com ela. O que mais queria era experimentar a sensação de trair. Saber se sentiria alguma culpa, ou apenas se me tornaria vitorioso. O que aconteceria de diferente comigo ao cometer um dos pecados na vida cotidiana, e um dom dos galãs da tv.
Ele demorou horas na conversa. Na época estava com o braço quebrado e tomava água mineral apoiado numa pilastra, em copo de plástico. Quando ele saiu, fez sinal para mim que deveria entrar. Ela estava de costas para mim, colada na pia da cozinha, com sua blusa branca de um tecido leve. Segurava um outro copo de plástico e o rasgava em tiras finas. E tremia. Seus braços, seus ombros, o corpo inteiro chacoalhava levemente num nervosismo impossível de se esconder.
Oi. Eu disse quando me aproximei. Ela não respondeu. Estaria estática, caso não se mexesse tanto por causa da intranqüilidade. Tentei puxar do fundo da minha alma alguma coisa que a acalmasse, mas acredito que nessas horas a experiência é essencial. Realmente algo que não tenho, até hoje. Resolvi, então, ser pelo menos direto, para que o sofrimento acabasse logo. Perguntei, da maneira mais clássica, e indelicada, se ela queria ficar comigo. “E sua namorada?”, foi a resposta dela que ouvi. Ela sabia da minha namorada, e eu não tinha pensado que essa hipótese houvesse. Fui pego de surpresa. “Estamos mal. Amanhã, vou acabar tudo”. Pareceu que ela se confortou um pouco, pois levantou os olhos pela primeira vez e procurou os meus. Ou apenas queria saber se o que dizia era a verdade ou se eu a estava enganando. Não sei ao certo, até hoje, qual foi a minha intenção real. Talvez fosse apenas isso, dar um conforto para ela, naquele momento. Peguei o copo de plástico das mãos dela e, num gesto altamente latino, a beijei.
Em poucos segundos, percebi que tinha sido a maior furada que tinha me metido em toda a minha vida, até aquele momento. Não por causa da traição, a idéia ainda nem passava na minha cabeça, mas porque ficar com a menina era, da mesma forma como ficar na festa, muito monótono. Fomos para o lado das pilastras e só torcia para que aquele sofrimento acabasse logo. Da mesma maneira como ela estava antes, me sentia deveras desconfortável. Descobri anos depois, que fui o primeiro menino que ela beijou e isso fez esquecer todo o enfado do momento e acrescentou uma pitada a mais de santidade naquela noite.
II
No outro dia, no clube, onde encontrava religiosamente a minha namorada, me sentia um homem quase completo. Já tinha até traído. Passara a noite empolgado com a novidade, ávido para contar para alguns amigos meus e me transformar numa espécie de desbravador. Seria uma referência, o experiente do grupo, aquele que todos procurariam caso precisassem saber como deveriam se portar diante das adversidades da vida.
Encontrei um camarada meu que crescera comigo e detalhei, até à invenção, o que tinha feito. Ele me olhava com uma certa inveja, podia perceber. Sentia-se como uma virgem ao lhe contarem como é na prática o sexo. Eu falava para ele de um mundo que ele não conhecia e só eu tinha estado lá. Despedimo-nos e a sensação de bem-estar, de autoconfiança, me fez procurar o primo desse meu camarada. Também meu amigo, contudo um pouco mais distante. As feições de apalermado se repetiram. Procurei outro amigo, ainda mais distante para contar novamente e sentir, mais uma vez, a sensação de estar por cima da situação. Já me sentia líder de um clã, com uma legião de seguidores, eu estava a frente deles, era visível. Contei a história para mais um colega. Não o conhecia há muito, menos de um ano, mas pensei que poderia confiar nele, como acontecera com os outros. E ele reagiu de maneira bem semelhante aos outros, na minha frente.
A noite engoliu a tarde e era a hora de encontrar a minha namorada. Fui para o lugar de sempre. No caminho, entretanto, a avistei de cabeça baixa, apoiada em uma de suas amigas. Achei estranho, mas pensei que poderia ser alguma coisa que eu pudesse ajudar e me aproximei ainda mais depressa. Ela passou direto por mim, com o rosto desfigurado pelo choro convulsivo. Eu era o culpado, percebi ali.
Com o braço quebrado, fiquei fora do treino de natação. Olhava para todo mundo dentro d’água, dando braçadas e mais braçadas, e voltava a cabeça para o final do parque aquático, onde a minha namorada estava com a amiga, com choro e mais choro. Pela primeira vez senti que tinha estragado alguma coisa bonita.
Certo momento, um outro amigo, o único que conversei que era mais velho, parou ao meu lado e contei toda a história, sem literatices e com o adendo mais recente. Contava tudo como num descarrego, sendo o mais sincero que poderia ser, retirando todo o peso das minhas costas e a vi passando, minha namorada passou no exato momento por nós. Num ímpeto de coragem que eu não tenho idéia até hoje de onde veio, gritei seu nome. Ela parou e me olhou de longe. O rosto inteiro vermelho, os ombros mortos, os olhos caídos. Pedi para que ela viesse até onde eu estava. Sua amiga a soltou e ela andou cambaleante. O caminho era curto, mas sentia todo o seu peso tocando no chão a cada passo. Meu amigo mais velho se levantou e nos deixou sozinhos. Ela sentou ao meu lado e não sabia nem por onde começar. Não tinha tomado decisão nenhuma até aquele momento e não suspeitava do porquê a tinha chamado para conversar. Na maior frieza, no maior distanciamento, na maior cara-de-pau, como se não fosse o meu destino que estivesse sendo decidido, eu perguntei para ela o motivo dela estar chorando. Engasgando, entrecortado por soluços involuntários, ela me respondeu que haviam contado para ela que eu a havia traído. Fiz cara de indignado e neguei toda a história com a maior veemência que se pode fazer com palavras. Tinha ido, sim, para a festa, mas nunca faria algo dessa natureza com ela. Em seguida perguntei gaguejando quem tinha inventado tal história sórdida. Queria saber quem tinha sido o delator, o Judas, o filho da puta. Ela me contou que tinha sido o último camarada que contara a história. Eu falei com ele, ele se levantou e correu atrás dela para me alcagüetar.
Falei com tanta vontade, com tanta certeza do que eu estava dizendo, que ela parecia realmente ter acreditado em mim. Tinha parado de chorar, de tremer e levantara os olhos para mim. Parecia, por ironia, as atitudes da menina do dia anterior. Ficamos em silêncio por alguns instantes. Eu não pensava nela, mas na apunhalada que tinha tomado. Na decepção de ter confiado em alguém e esse alguém ter preferido o cortejo à amizade. Ela me olhava com olhos de “está bem, agora só me leva para casa. Já confio em você novamente, vamos esquecer tudo e começar mais uma vez”. Foram poucos segundos, mas como todos os instantes decisivos, o tempo se flexibilizou. “Nós temos que terminar”, comecei outra frase. Os olhos dela se encheram d’água no exato momento posterior. Não tinha motivo e não tinha cabeça para inventar algum, então não dei motivo. Disse apenas que deveríamos terminar e ela voltou a chorar. No início, apenas lágrimas rolavam, mas logo o rosto inteiro ficou molhado e vermelho. “Podemos ser amigos, a partir de agora”, e me levantei.
Sentia-me ainda mais traído que ela. Tinha, por certo, mais experiência em amizades que em namoros. Não entendia a atitude do garoto. Em nenhum momento suspeitei que alguém pudesse fazer algo parecido. Foi quando senti o peso da culpa pelo que tinha feito. E, quanto mais eu pensava no assunto, percebia o quanto canalha tinha sido, e quanto tinha piorado todas as coisas mentindo ao final para ela. Para piorar, a amiga da minha, agora, ex-namorada, veio falar comigo depois. Veio me parabenizar pela minha atitude corajosa ao enfrentar a situação. Tinha sido um calhorda e ainda recebia elogios por isso. Minha cabeça dava nós.
Fui para casa com uma preocupação incomum para alguém da minha idade. Entretanto, exatamente como um comportamento comum de alguém de doze anos, em pouco tempo já achava a história parte de um passado muito anterior. Hoje já acho engraçada. Acho que até tem uma moral implícita, uma dica de comportamento. Algo como: seja canalha até não agüentar mais, e receba congratulações por isso. Sei que é uma piada. Mas também, uma prova de que uma história pode ser contada de maneiras completamente antagônicas. Tornando uma história de crianças, por exemplo, em um drama.
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