sábado, 3 de maio de 2003

Madrugadas

Bêbado com os pés sobre o asfalto morno da madrugada outonal. O lugar era dos mais propícios, em frente ao bar que havíamos bebido, acabado com toda a cerveja que possuía. Conversava com um desses seres que as esquinas possuem sobre alguma das maravilhas que certos chás podem proporcionar. Num momento impreciso, uma camisa florida azul aparece no meio da chuva que transformava tudo em cinza rodeado por meninas que esbarram nos dezessete anos. Podem ser percebidos cumprimentos formais entre todos os habitantes, para demonstrar que ainda há respeito por certas normas de convívio. Como dizia, o chá de boldo era a maneira mais aconselhável de melhorar as ressacas dos dias que seguem diariamente. Nada mais emocionante, apenas espremer o tempo para que ele não acabe de uma hora para outra. A camisa florida interrompe as divagações com súplicas modernas por um punhado de notas, para as derradeiras bebidas. Dei a menor de todas e diretamente fui inquirido sobre o motivo disso. Sorri de volta com toda a ignorância irônica que habita meu coração. A camisa foi-se na tentativa de conseguir mais e melhores notas.

Os olhos já não estavam mais brancos, pois se conservavam abertos apesar de todas as petições para o descanso. Escutava-se de tudo que tinha no bolso. Um pequeno compartimento que carregava uma variada gama de sons surpreendentes e diferentes. Os sorrisinhos e os gritos agudos em volta da camisa florida volvem seus pequenos olhos nas mais variadas direções, inclusive a nossa. A camisa, cheio de si, nem percebe o detalhe.

Dança-se no meio da rua sem constrangimento. O álcool impedia a ciência do ridículo. Empurrava-se para mais para dentro da madrugada a recolhida com o intuito único de manter-se acima da sensatez. Lembrei-me que gostava muito de chá preto, mas não tinha idéia de para que servia.

Almas conhecidas passavam diante dos olhos que já não entendiam muito bem. Ao fundo, pude distinguir a camisa florida argüindo por uma carona. O intuito era levar os dezessete anos embora. Engoli mais um pouco do amarelo amargo e morno e ri de alguma piada sem nenhum motivo. Tocava algo que era bom, vinha do fundo da alma, escutava Kurt cantar e tentava ainda concatenar sobre os motivos que o levaram. Um pouco depois, todos os drogados do mundo estavam ao redor. Muitos, para ser eufêmico, com suas mentes a uma distância segura. Estavam ali por estar. Chá mate é o meu preferido, e dá ligadeira, disse e tive que explicar o vocabulário dos gaúchos.

A noção de tempo havia abandonado meu corpo para voltar só quando acordasse, longas horas depois. A camisa florida retorna com o que lhe deu carona e só. Logo somos apenas uma grande e disforme roda. Murmura-se pelos cantos pelos mais diferentes motivos. É facilmente identificável a sujeira que acompanha cada um. Uns ainda tentam disfarçar, mas estão fadados ao fracasso nessa empreitada. O cheiro de carne podre invade cada narina dali. Não me importo porque não tenho nada para me preocupar. Minha madrugada era aquela e não tinha nada além daquela. Sorria com a maior das paciências possíveis para todos. Produzia pequenas gafes contornáveis que eram motivos de constrangimentos rápidos, mas completamente plausíveis. Fico ao lado do dono da carona e falamos sobre algo que já ficou para trás, em algum lugar perdido no meio da minha memória. A camisa florida retorna e pede, quase ordena, um novo favor para o dono do carro. Digo que a camisa florida só abre a boca para pedir dinheiro ou para pedir carona. É a vez dele de ignorar o que eu digo e repete o anseio pela carona, que diz, meio encorajado por mim, acredito um pouco, não voltará no momento. Digo que a camisa florida só abre a boca para pedir dinheiro ou para pedir carona. Novamente. E rio, gargalho muito alto, surpreso com a minha sapiência, e sabendo que a camisa florida nada mais podia fazer além de tornar a pedir, seria um eterno pedinte, quase um mendigo. E eu me debruçando sobre a barriga, com caretas e espasmos. E com olhos atentos para todas as expressões de raiva que passavam no rosto da camisa que transparece sua insatisfação com a realidade sendo posta as claras. Com certeza era mais fácil para a camisa florida enquanto todos os seus pedidos eram apenas encarados como favores que um dia seriam retribuídos, não como ordens que deveriam ser acatadas. A camisa florida parecia um general impotente que os homens riem das suas ordens. E eu ria, para ajudar na figura de linguagem, eu ria. Foi-se embora em seguida despedindo-se de longe para demonstrar sua cordialidade. Ficamos uns poucos segundos a mais apenas. Tínhamos em mente a demonstração de um certo tipo de vitória, mesmo que pequena e boba. Com certo exagero, uma desmistificação de uma camisa florida azul e ordinária. Dessas que ninguém tem por receio de parecer exagerado, ou ridículo em demasia.

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