Saramago era a piada temida por jornalistas que lidam com literatura, assim como o Michael Jackson, para a música, e Roberto Carlos, Pelé, e Niemeyer para todo mundo em redações.
Por isso, imaginava que ele teria entrado na categoria das unanimidades - mesmo quem não o conhece, nutria uma certa admiração. Não é o caso. Vi muita gente falando mal. E gente que se absteve de aparecer e comentar a morte do velhinho, argumentando que nunca tinha lido nada dele. Dignidade é isso aí.
Das pessoas que comentaram, o escritor Sérgio Rodrigues levantou uma questão interessante: há um flaxflu na literatura portuguesa, que deixa o Saramago em segundo plano, porque ele seria "fácil", em comparação ao Lobo Antunes - esse sim, o grande escritor português. "Coincidentemente", o mais underground - como se só a marginália daria legado à literatura. Em seguida, inclusive, Rodrigues, com clareza e inteligência, acaba com esse engano: "só os pedantes igualam acessibilidade a inferioridade estética".
Outros, como o João Paulo Cuenca, lembraram como Saramago, apesar de ser encarado por muitos como um vanguardista - simplesmente por abolir símbolos de pontuação, o que é uma simplificação do termo - era um sujeito tradicional. E seu encantamento pela esquerda mais conservadora é um exemplo claro, mas parcial sobre isso.
Sua prosa era oral. Sempre o li pensando que ele contava uma história para mim. Colocava sua voz - a voz dele mesmo, do velhinho, com sotaque português e tom firme - em cada uma das longas frases de seus livros. Assim o que no início era difícil ou estranho, foi se transformando em algo natural, como uma conversa, ou uma aula.
Dos que livros que li (não foram tantos assim), gostei do óbvio: "Ensaio sobre a cegueira". É uma obra que, sozinha, merecia ganhar a eternidade.
"A caverna" me trouxe o mito platônico numa época em que mal sabia o que era filosofia - e serviu apenas para isso. "Evangelho..." tem uma proposta simples, até intuitiva, mas é bastante rancoroso, mostrando alguém que quer incomodar necessariamente o outro lado,no caso a Igreja. "Memorial..." tem a personagem Blimunda, que me marcou para a vida, e uma narrativa que muda de posição no meio do caminho.
Não li livros que, dizem, ser os melhores dele: "O ano da morte de Ricardo Reis", "Jangada de pedra", "Cerco de Lisboa". Talvez um dia o faça. Ele merece.
Certamente, o melhor texto de homenagem ao homem José Saramago ficou por conta de seu editor e amigo Luiz Schwarcz.
Escreve ele:
"Agora só quero me despedir mais uma vez de José. Com as melhores lembranças, o amor, e minha saudade. Maldita palavra, tão portuguesa, que agora ficará associada ao meu amigo. Mas saudade não tem remédio, não é, José?"
O restante do texto, aqui.
Um comentário:
maravilha. três observações. primeiro que a frase do sergio rodrigues foi a que mais chamou a atenção naquele apanhado do g1. ela vale para a literatura de uma forma geral. segundo que eu tinha a mesma sensação de "ouvir" as histórias do saramago e era isso que me encantava nos livros dele. era cativante. e por fim, sobre sua personalidade polêmica, podemos comparar grosseiramente o saramago ao pelé. ambos foram geniais em seus ofícios e tiveram enorme importância para duas coisas que nos são tão queridas: nosso futebol e nossa língua. da mesma forma, os dois sempre falaram muito besteira, o que não anula o valor dos respectivos trabalhos. na história, ficam os gols e os livros. as idiossincrasias e as ideologias desaparecem com o tempo, sobra apenas o personagem mitificado. a partir de hoje, saramago começou a se transformar em mito.
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