A sugestão, bem humorada, é que o melhor formato seria a autobiografia, já que ninguém saberá tanto de si quanto você mesmo - claro, com a exceção de você não estar aqui após a sua vida, e não poder falsear algumas passagens em prol de uma melhor compreensão por parte dos outros da sua própria história, a.k.a. cair na tentação de não mostrar os próprios podres.
É, portanto, um problema sem solução. Se um personagem for biografado por outrem, ele pode até ser visto objetivamente [no sentido de se tornar algo o mais distante possível dos humores], mas quem disse que isso é bom? E como ele vai saber o que o biografado pensa, sente, quer?
Estava pensando nisso quando me atentei para a solução. Ela está na, provavelmente, maior obra literária brasileira: as "Memórias póstumas de Brás Cubas" [incrível como eu estou, nesse momento de estudo, confundindo esta com a seguinte: "Quincas Borba", que, aliás, cabe um ps. no fim], onde o "defunto autor" também é "autor defunto". Isso quer dizer que ele é a pessoa que mais sabe de si, não tem nenhum problema de se expor e ainda tem a vantagem de poder bisbilhotar sua vida, em perspectiva e em retrospectiva. Solução literária, sim, mas qual não o é?
ps. Diferentemente das "Memórias póstumas", "Quincas Borba" não tem um narrador em primeira pessoa. Estou pensando, teorizando, divagando, que, considerando que há uma relação muito clara entre as duas obras, uma sendo citada na outra, com personagens se repetindo, histórias interligadas, o narrador de uma é o mesmo de outra. Ou seja, é Brás Cubas quem narra "Quincas Borba" [esqueça o Machado, ele não tem nada a ver com isso]. Apenas se mantém incógnito para não atrapalhar o desenrolar da história.
pps. Encontrei no capítulo 24 das "Memórias..." o trecho abaixo que exemplifica a teoria do texto desse post:
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto.Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, a força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, log que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá o exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.
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