quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Odisseias diárias

Tenho o costume [mania?] de procurar a segunda [e a terceira, a quarta...] leitura de qualquer objeto [dito] artístico que me venha às mãos [ou aos olhos]. Isso é normal [espero]. Sempre há uma interpretação óbvia, externa, clássica, e, à medida que você vai relendo, repensando, digerindo e ruminando, as outras começam a aparecer. Assuntos um pouco escondidos, detalhes laterais, informações menores, cenários de outras épocas, comportamentos datados, enfim, pedaços de um todo que ao se somar tornam a obra maior que ela aparenta ser à primeira vista.

Outras vezes, nem é preciso rever, reler ou revisitar a obra. Um detalhe salta sozinho ao primeiro encontro e a ideia fica na cabeça. Às vezes, vários detalhes saltam e se misturam e escondem a leitura primária. Às vezes, a leitura primária é influenciada pela história, por tudo o que aconteceu entre o escritor [ou artista] escrever [produzir sua obra] e quando você está lendo [apreciando, etc.]. Outras, é o inverso: você percebe que mesmo que se tenha passado séculos, milênios [literalmente], o ser humano se comporta praticamente igual aos seus primórdios, à imagem e semelhança dos primeiros humanos, correspondem à forma original. [E olha que eu sou ateu, hein...]

Foi mais ou menos o que aconteceu quando li a "Odisseia". No pedaço final, quando Odisseu volta para Ítaca, ele é transformado em um mendigo para observar os "pretendentes" que querem se casar com Penélope, sua mulher que está há 20 anos esperando pelo marido e aguentando os pretendentes que lhe comem [opa] as provisões [ah, bom].

Já mancomunado com Telêmaco, seu filho, Odisseu tem acesso ao seu próprio palácio, entrada incomum para outros mendigos. Entretanto, um dos comentários que lhe dirigem parece saído de alguém do hoje em dia, demonstrando que no fundo repetimos as mesmas ideias eternamente, apenas mudando as palavras e a entonação. Um dos personagens diz que o mendigo Odisseu continuava naquela situação por completa falta de vergonha na cara [bem, não foram exatamente essas as palavras, mas o sentido, sim]. Que, ele queria aproveitar a oportunidade para comer e beber das provisões dos outros porque não queria trabalhar, não queria pegar no pesado.

Um raciocínio típico da meritocracia, que dá ao homem o controle de todas as suas ações, quando, na verdade, o homem é apenas um ser perdido dentro da natureza do mundo e usa de seu intelecto para tentar se guiar rumo a um destino que ele se auto-impõe ou é lhe-se é imposto por uma espécie de líder. O homem é um ser dividido entre três forças, que o puxam para lados opostos, como em três margens de um mesmo rio [obrigado, Rosa], forças que, claro incluem a força de vontade e o livre-arbítrio do sujeito das ações, mas que é sempre subjulgado pela sorte e pelo aleatório. Essas duas forças, apesar de parecidas, têm detalhes [na minha cabeça, claro] que as diferenciam. A sorte me remete à questão do destino, o que está escrito, mas não de um jeito religioso [pelamordedeus], mas em estar na hora certa no lugar certo, em como não há uma explicação para determinadas ações e que, bem, acontecem, mesmo assim... por sorte. Ou pelo seu inverso, o azar. Já o aleatório é, como o nome diz, aleatório. Nada influencia, nada se prevê. A sorte pode ser narrada, pode ser adivinhada, pode ser traduzida em palavras. O aleatório só pode ser vivido.

***

Enquanto lia a "Odisseia", pensei que seria uma ótima ideia fazer um spin-off do livro. Até que eu descobri que já fizeram, claro. No século xvii.

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