Uma das maiores e mais infundadas teses que se apregoam sobre o brasileiro é que ele é um sujeito pacífico. Talvez porque nos comparemos - sempre - com países que têm comportamento mais bélico, imperialista, e que arranjam guerras para se meter a todo momento. Ou talvez porque também nos medidos com a régua de outras nações em que há protestos e reivindicações diárias, sobre assuntos os mais variados. Talvez nem uma coisa nem outra aconteça com o Brasil, nem com os seus habitantes. Mas isso não impede que sejamos, sim, muito violentos, à nossa maneira.
E nem vou entrar no mérito histórico que, na minha opinião, o Luiz Ruffato já fez isso. Mas tentar falar do presente, para que comecemos a observar o óbvio ao nosso redor. Porque basta sairmos de casa que vemos uma cena de pura violência - e nem estou falando da simbólica, porque aí seria ainda mais "fácil" de encontrar. Sempre vemos uma discussão, uma briga, uma confusão no trânsito, um assalto, um pega-ladrão, um policial fazendo nada.
Ontem uma cena me deixou bastante assustado, pela completa gratuidade. Andava na rua da Praia de Botafogo, altura da Farani, quando reparei em um taxista parado para entrar nessa rua, saindo do carro, no meio do trânsito, enquanto o sinal ainda estava vermelho, com uma barra de ferro que seria do tamanho do meu braço. Ele foi em direção a um ônibus do lado dele e, sem qualquer tipo de diálogo, quebrou o espelho lateral. Vi o vidro se despedaçando e ele, então, discutindo alguma coisa com o motorista, como se quisesse dar uma lição no outro. O motorista, a partir daí, esperou o taxista voltar para dentro do carro para jogar o ônibus de uma maneira muito bizarra contra o táxi, que, com o forte impacto, foi lançado para o canteiro central da avenida. Era a vez do motorista tentar dar uma lição no debatedor. Os dois, porém, não conversaram nada. Não vi um diálogo, uma troca - como se isso não adiantasse para nada. Só a porradaria. Em seguida, o sinal abriu e o ônibus zarpou, e o taxista foi atrás.
Eu fiquei pensando coisas banais e egoísticas: era o 512, um dos "meus" ônibus. Eu poderia estar ali dentro. E os passageiros? E se alguém quisesse descer exatamente no próximo ponto, em frente ao Edifício Argentina? E se houver gringos dentro do ônibus que vai para o Pão de Açúcar? E quem se importa com os gringos? E por que deveríamos nos importar mais com eles? Isso aconteceria em outro lugar? Por que acontece aqui? Seria o sentimento de impunidade?
Não era o sentimento de impunidade, eu consegui, finalmente, responder a alguma questão. Isso contava, claro, mas era parte, um elemento de uma questão maior. Para mim, essa violência acontece pela completa falta de confiança nas instituições brasileiras. Imagino alguém falando com o motorista: você deve ir à polícia. O motorista iria rir, porque ele não acredita que a polícia poderia resolver esse tipo de situação. A polícia serve para matar pobres em favelas. Ou, você deveria denunciar o taxista para... para quem se denuncia um taxista? Para a prefeitura? Onde? Como? E o que acontece? Alguém já viu algum taxista sendo punido por alguma razão? Aliás, e o motorista de ônibus? O que ele fez para despertar esse sentimento destruidor do taxista? Para quem denunciá-lo? Para a Fetranspor? Para a Rio-Ônibus? Para a própria empresa?
O que acontece é que não confiamos em nenhuma dessas instituições. Nenhuma. Vivemos, desde sempre, ao largo do Estado - não só o governo, mas tudo o que nos envolve - que só aparece para cobrar algo, jamais oferecer conforto ou soluções. É claro que há exceções e eu não quero generalizar nem cair numa reclamação vazia em que o Brasil seria o pior lugar do mundo. Não é nem próximo disso. O que eu estou tentando sustentar é que nossa mentalidade é um pouco a do bangue-bangue: cada um por si, e o Estado - aparentemente - contra todos.
Talvez isso explique por que gostamos das multidões. Carnaval, futebol, praia, réveillon. E talvez isso explique por que quando se junta essa montoeira de gente não ocorrem desgraças. Talvez queiramos fugir desse sentimento individual, isolacionista. Talvez nessas horas, sentimos o prazer de fazer parte de um grupo muito maior, algo tão incomum, e nos sentimos protegidos. Talvez percebemos, inconscientemente, que a massa nos dá um poder que não sabíamos que tínhamos. E as manifestações estão aí para não nos deixar mentir.
Novamente eu penso em Machado de Assis e como ele talvez tenha descrito a alma social desse ser estranho chamado brasileiro ao colocar seu defunto-autor Brás Cubas para dizer que escreveria suas memórias com a “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Nosso exterior, nosso formato é até festivo, alegre, pacífico, galhofento, portanto. Batucamos em qualquer lugar que dois ou mais brasileiros se encontram. Mas essa pena esconde uma tinta, um conteúdo que, apesar da aparência, é na verdade triste, ensimesmado, introspectivo, e que usa do extravasamento exatamente para não ter contato com o seu interior. Basta ver uma boa tradição das nossas artes e dá para enxergar isso. A própria bossa nova, tão lembrada agora com o centenário de Vinicius. Ou Goeldi [que ilustra esse post]. O resultado, porém, é que a impulsividade da galhofa, quando não utilizada para esses fins alegres, esquenta a melancolia num fogo alto que a transforma certamente em violência. A violência é a nossa melancolia que transbordou.
É mera coincidência, mas... "Flamengo, Botafogo e Centro ganham mais policiamento: Em duplas, PMs patrulharão áreas onde roubos de rua registraram aumento nos últimos meses".
Encontrei isto aqui, perdido nos arquivos deste blog. Achei, novamente, uma coincidência.
Na tarde em que eu publico isso, outra vez a violência se mostrou presente. No meio da tarde, como está virando rotina aos fins de semana, ouvi um grito de "pega, pega". Me levantei e fui para a janela, quando vi um homem forte batendo como um lutador de mma num garoto magro, negro, que carregava uma bolsa de mulher. O garoto tentava evitar os socos da maneira que conseguia, mas estava acuado. Depois de alguns segundos de socos, o homem olhou para o lado, alguma coisa chamou sua atenção. Foi o suficiente para o menino fugir. O homem foi atrás, mas, logo depois, parou novamente e olhou para trás, e viu um grupo imenso de garotos magros e negros vindo na sua direção, e decidiu voltar. Entrou no seu carro, uma pajero ou cherokee que estava estacionada na avenida, e foi embora.
Briga na cidade |
Ontem uma cena me deixou bastante assustado, pela completa gratuidade. Andava na rua da Praia de Botafogo, altura da Farani, quando reparei em um taxista parado para entrar nessa rua, saindo do carro, no meio do trânsito, enquanto o sinal ainda estava vermelho, com uma barra de ferro que seria do tamanho do meu braço. Ele foi em direção a um ônibus do lado dele e, sem qualquer tipo de diálogo, quebrou o espelho lateral. Vi o vidro se despedaçando e ele, então, discutindo alguma coisa com o motorista, como se quisesse dar uma lição no outro. O motorista, a partir daí, esperou o taxista voltar para dentro do carro para jogar o ônibus de uma maneira muito bizarra contra o táxi, que, com o forte impacto, foi lançado para o canteiro central da avenida. Era a vez do motorista tentar dar uma lição no debatedor. Os dois, porém, não conversaram nada. Não vi um diálogo, uma troca - como se isso não adiantasse para nada. Só a porradaria. Em seguida, o sinal abriu e o ônibus zarpou, e o taxista foi atrás.
Eu fiquei pensando coisas banais e egoísticas: era o 512, um dos "meus" ônibus. Eu poderia estar ali dentro. E os passageiros? E se alguém quisesse descer exatamente no próximo ponto, em frente ao Edifício Argentina? E se houver gringos dentro do ônibus que vai para o Pão de Açúcar? E quem se importa com os gringos? E por que deveríamos nos importar mais com eles? Isso aconteceria em outro lugar? Por que acontece aqui? Seria o sentimento de impunidade?
Abandono |
O que acontece é que não confiamos em nenhuma dessas instituições. Nenhuma. Vivemos, desde sempre, ao largo do Estado - não só o governo, mas tudo o que nos envolve - que só aparece para cobrar algo, jamais oferecer conforto ou soluções. É claro que há exceções e eu não quero generalizar nem cair numa reclamação vazia em que o Brasil seria o pior lugar do mundo. Não é nem próximo disso. O que eu estou tentando sustentar é que nossa mentalidade é um pouco a do bangue-bangue: cada um por si, e o Estado - aparentemente - contra todos.
Talvez isso explique por que gostamos das multidões. Carnaval, futebol, praia, réveillon. E talvez isso explique por que quando se junta essa montoeira de gente não ocorrem desgraças. Talvez queiramos fugir desse sentimento individual, isolacionista. Talvez nessas horas, sentimos o prazer de fazer parte de um grupo muito maior, algo tão incomum, e nos sentimos protegidos. Talvez percebemos, inconscientemente, que a massa nos dá um poder que não sabíamos que tínhamos. E as manifestações estão aí para não nos deixar mentir.
Novamente eu penso em Machado de Assis e como ele talvez tenha descrito a alma social desse ser estranho chamado brasileiro ao colocar seu defunto-autor Brás Cubas para dizer que escreveria suas memórias com a “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Nosso exterior, nosso formato é até festivo, alegre, pacífico, galhofento, portanto. Batucamos em qualquer lugar que dois ou mais brasileiros se encontram. Mas essa pena esconde uma tinta, um conteúdo que, apesar da aparência, é na verdade triste, ensimesmado, introspectivo, e que usa do extravasamento exatamente para não ter contato com o seu interior. Basta ver uma boa tradição das nossas artes e dá para enxergar isso. A própria bossa nova, tão lembrada agora com o centenário de Vinicius. Ou Goeldi [que ilustra esse post]. O resultado, porém, é que a impulsividade da galhofa, quando não utilizada para esses fins alegres, esquenta a melancolia num fogo alto que a transforma certamente em violência. A violência é a nossa melancolia que transbordou.
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É mera coincidência, mas... "Flamengo, Botafogo e Centro ganham mais policiamento: Em duplas, PMs patrulharão áreas onde roubos de rua registraram aumento nos últimos meses".
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Na tarde em que eu publico isso, outra vez a violência se mostrou presente. No meio da tarde, como está virando rotina aos fins de semana, ouvi um grito de "pega, pega". Me levantei e fui para a janela, quando vi um homem forte batendo como um lutador de mma num garoto magro, negro, que carregava uma bolsa de mulher. O garoto tentava evitar os socos da maneira que conseguia, mas estava acuado. Depois de alguns segundos de socos, o homem olhou para o lado, alguma coisa chamou sua atenção. Foi o suficiente para o menino fugir. O homem foi atrás, mas, logo depois, parou novamente e olhou para trás, e viu um grupo imenso de garotos magros e negros vindo na sua direção, e decidiu voltar. Entrou no seu carro, uma pajero ou cherokee que estava estacionada na avenida, e foi embora.
5 comentários:
Hum... acho que você está certo. [Estava vindo do Flamengo, confundi.]
Acho que é por aí mesmo, Ronaldão!
Só uma dúvida: a praia que fica na altura da Rua Farani não seria a de Botafogo?
Abraço!
As instituições estão ai para servir e serem cobradas. A certeza da impunidade veio com o descaso da própria população em se omitir e resolver do jeito que lhe é conveniente. O Motorista deveria ser denunciado para a empresa. O Taxista para o sindicado dos taxistas..(sei lá). Não confiam nas instituições? Pior do que não acreditar é se omitir tendo a certeza de que não fará a diferença. A Fetranspor é responsável por parte das empresas de ônibus.
Concordo totalmente, Anônimo.
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