O consultório pareceria comum para quem não fosse muito
detalhista. Não era o caso de Mário. Um grande sofá dividido entre pessoas com
cara de poucos amigos. Um quadro na parede de uma gravura com um anjo apoiando
o rosto na mão e olhando para o horizonte. Uma atendente atrás da mesa que
parecia entediada. Um atraso de horas para ser atendido. Mas as semelhanças
acabavam no primeiro parágrafo.
Se dizem que o psicólogo é aquele que observa os homens que
observam a mulher bonita que passa, Mário era aquele que observava o psicólogo,
os homens que observam a mulher bonita que passa e certamente a mulher bonita
que passa. Não era muito de falar, mas compensava essa sua falha moderna por um
olhar muito atento ao que existia ao seu redor. Ele começou a notar alguns
ruídos nesse cenário tão familiar. Primeiro, a atendente não estava se lixando
as unhas. Ou lendo alguma revista de fofoca. Sua cara de tédio era acompanhada
da leitura de um livro – ele conseguia vislumbrar. Ela estava segurando o livro
de uma maneira que ele não conseguia enxergar o título até que... ela mudou de
página e ele percebeu que era um desses novos autores gringos que são incensados
como a grande novidade e que ele, ao tentar lê-los, percebe que a insônia é
pretensão de quem fica querendo parecer preocupado.
Outro detalhe intrigante foi o cesto de revistas. Para
começar, não era de vime. E, novamente, nada de fofocas, nem publicações
semanais da direita, que não diz seu nome. Havia “Piauí”, “Bravo” [a última edição,
inclusive] e até, perdida, um exemplar de “Revista de História da Biblioteca
Nacional”. Na capa, “Sexo e poder no Brasil”. Olhou ao seu redor, assustado. As
pessoas – os doentes, os pacientes – não pareciam estar muito confortáveis
naquele ambiente – pudera, ninguém fica, mesmo, satisfeito de visitar um
médico. Mas elas também liam as revistas. Mário trocou a perna cruzada e
começou a acariciar a própria barba.
Perdido em suas confabulações – ele também era conhecido por
se desligar da realidade e mergulhar completamente em pensamentos que o levavam
para lugares muito distantes – ele não percebeu quando o seu nome foi chamado
pela atendente: “Mário Arruda? Mário Arruda?” Só despertou quando o paciente
que estava sendo atendido passou na sua frente. Era muito ruído para um momento
único e nem Mário, o desligado, conseguiu passar incólume. “Sim?”, responde
ele, como se não soubesse o que estava fazendo ali. À sua frente, está a
atendente, uma moça morena, de quase 40 anos, um pouco roliça demais, com cara
de tédio ainda maior que quando lia o livro, apontando o consultório: “Você
pode entrar, já.” – Cara-de-pau, ele pensa, ao ouvir o “já”, mas não diz nada –
“Obrigado”, responde.
O consultório, em si, não tinha, igualmente, nada demais –
mesmo. Mário ficou esquadrinhando, para tentar enfim descobrir algo que o
denunciasse como um charlatão para o conselho médico, algo como um livro de
Eduardo Galeano, uma reprodução do Diego Rivera ou um CD do Ibrahim Ferrer. Nada.
Era tudo feito na cor branco-médico, o mais clean
possível. Sobre a mesa, um corpo humano de brinquedo, em miniatura, que lhe
lembrou Eva, a mulher gigante, que existia nos parques de diversão de sua
infância. Um relógio. Um computador. Um receituário. Uma tampa de vidro. Uma
mesa de madeira escura, meio vagabunda, que destoava completamente do ambiente.
Um médico, atrás da mesa, forçando um sorriso para tentar ser cordial.
Estranho, muito estranho.
“Pois não?” – o médico estava ali tentando criar o primeiro
contato, a primeira esfera de intimidade.
“Bem, doutor Ernesto, eu... eu nem sei bem por onde começar...”
“Comece pelo início.”
Mário dá uma olhada para ele, quase de reprovação, mas o
médico parecia que tinha falado a frase anterior com a maior espontaneidade que
possuía. Mário resolveu relevar.
“É que... está doendo tudo.” Ficou em silêncio, como se isso
já resolvesse sua questão, como se, então, a partir de então, o médico já
soubesse o que deveria fazer.
“Doendo tudo...?” – ele faz um movimento com as mãos como se
mostrasse o quanto essa frase não queria dizer absolutamente nada. “Você
poderia ser mais específico?”
“Dói tudo. Às vezes é aqui” – e aponta para o estômago – “Uma
acidez que não tem tamanho. Queima tudo, tudo. Como se eu tivesse engolido Nero
ainda vivo, na sua fase mais piromaníaca, ou simplesmente comido duas pimentas Jalapeño
no café da manhã.”
“Sei”, diz, enigmaticamente, o doutor, anotando algo em seu
bloco. Quando Mário fica em silêncio, ele o incentiva: “O que mais?”
“Em outras vezes eu fico sem respiração. Sem ar, como dizem.
Tento puxar o ar e é como se eu não tivesse força para isso. Ou como se não
houvesse mais ar no mundo. Como se eu estivesse vivendo constantemente numa
estação espacial, sem os privilégios de poder flutuar ou a pressurização
constante.”
“Entendi” – agora ele já olha diretamente para Mário. “Só
isso?”
“Não. Tem aqui, também” e aponta para o meio do peito. “Em alguns
momentos, o meu coração parece disparar como se fosse o cavalo do J. Ricardo em
dia de Grande Prêmio. Em outros, parece que é a reencarnação de Macunaíma e
fica dizendo apenas ‘Ai, que preguiça’, de tão lento. Não se decide. E eu vou
para cima e para baixo, sem qualquer aviso, como se eu trafegasse normalmente
numa montanha-russa e epiléptica como Dostoiévski à guisa de vida.”
O médico voltou a escrever: “À guisa de vida... OK. Vamos
dar uma olhada?”
Os dois vão para a maca, que fica ao lado da mesa, mas com
uma divisória de hospital improvisada para dar mais privacidade para os
pacientes. “Alguma coisa a mais?” – pergunta enquanto Mário está se deitando.
“Tiro a camisa?”
“Pode tirar.”
Um silêncio, antes que Mário continuasse.
“E uma tristeza imensa. Uma vontade de fazer nada. Um apenas
quero ligar a TV e ficar mudando de canal a cada cinco segundos.”
O médico dá umas pancadas com os dedos no abdômen de Mário. Faz
um “hum” que ecoa por alguns segundos. Ausculta o coração. Pede para respirar
fundo e, antes dele expelir o ar, já está pedindo para inspirar novamente, e
fica meio confuso – é para inspirar fundo ou o mínimo? Diz outro “hum”. Olha as
pupilas. “Hum.” Pede para abrir a boca e usa um palito de sorvete. “Hum.”
Coloca uma luz no ouvido. Tira pressão. “Hum.” Vê os reflexos dos joelhos –
quase nulos em alguns momentos, chutes dignos do Roberto Carlos – o jogador –
em outros. “Hum.”
“Tá ok. Pode vestir a camisa”, diz, enquanto volta para a
sua mesa.
Mário demora 36
segundos a mais e volta em seguida.
“Buraco existencial”, diz o doutor, à queima-roupa, antes que
Mário pudesse se sentar confortavelmente.
“Oi?”
“Isso, buraco existencial. Você sofre do que chamamos de ‘a
crise do buraco existencial’.”
“Mas... o que é isso? Tem cura?”
“É uma doença crônica, que existe há muito tempo. Hipócrates
nunca falou sobre isso porque, acreditamos, ele também sofreu do problema. Mas
vemos essa síndrome – é uma síndrome – aparecer de tempos em tempos, com mais ou
menos intensidade. Há picos em momentos de grande agitação, de grande
insegurança, de grandes acontecimentos.”
“Então, não tem cura?”
“Eu percebi logo que era isso na hora que eu bati no seu
abdômen. Percebi um som oco, típico da ausência de algo que deveria estar ali e
não estava. Isso acarreta exatamente os sintomas que você tem apresentado. Na
ausência da existência, o baço acaba produzindo a bílis negra, fria e seca, e que
controla o humor melancólico. Quando você falou que ficava desanimado ao mesmo
tempo que inquieto, achei tudo muito complexo. Indicava que poderia ser isso.
Mas quando ouvi a ausência, soube que faltava aí uma existência. O baço está
nitidamente sobrecarregado.”
”Doutor? E a cura?”
“Não se inquiete. É possível conviver com esse problema.
Ninguém até hoje...”
“Cura, doutor Ernesto? Há cura?”
“Não. Quer dizer. Há tratamentos.”
“Que tipo de tratamento?”
“O transplante de
existência.”
“Como assim?”
“Bem, geralmente se pega um homem ou mulher – até agora, o
mais comum, até por questões históricas, foi aparecer mais em homem, mas isso é
uma tendência que não se confirma mais – bem, se pega um homem ou mulher e você
tira um pedaço da existência deles e transplanta para o paciente que sofre de
Buraco da existência. O bom é que, assim como o fígado, a existência cresce
sozinha, se se adaptar bem ao novo hospedeiro. Assim, dá para transplantar uma
existência para várias pessoas. O procedimento é até razoavelmente comum. Mas
pode acarretar em alguns efeitos colaterais.”
“Efeitos colaterais? Tipo o quê?”
“Bem, com a existência de outra pessoa, você acaba sem a
própria falta de existência, que era a sua existência, de alguma maneira,
entende?”
“Mais ou menos. Estou confuso.”
“Bem. É confuso mesmo. Imagine que o Buraco da existência
seja a sua forma de existir. Se você preencher esse buraco, você não é mais
você.”
“Mas eu sou, então, um buraco?”
“Eu prefiro o verbo ‘estar’. Você está em um buraco.”
Mário se encosta na cadeira. O diagnóstico era, de certa
forma, pior que o câncer. Ao menos, com o câncer ele teria alguma coisa. Coisa
demais, aliás. No caso, faltava algo a ele. E não era como não ter o rim, por exemplo,
que você normalmente tem dois e um pode compensar o outro. Era a própria existência que lhe
tinha escolhido como incapaz de recebê-lo, a si próprio.
“Vamos fazer o seguinte”, disse o médico, “Vou lhe passar um
remédio, paliativo, para este momento. Vamos marcar um segundo encontro, daqui
a uma semana. E aí, você pensa melhor sobre o transplante. Temos ótimas
existências no mercado, hoje em dia. Você pode escolher entre várias profissões
e ideais. De esportistas, engenheiros, artistas, médicos, por que não?,
políticos, advogados, arquitetos - empresário, empresário tá saindo bem. As opções vão de anarquistas a neoliberais.”
“Mercado?”
“Sim, infelizmente isso tem um custo e nenhum plano de saúde
cobre. Infelizmente.” – O médico entrega a Mário uma receita em que ele pôde
enxergar escrito “Sentidorol - gotas –
30, pela manhã, ao acordar”. Mário se levanta e vai em direção a porta, em
silêncio, atordoado. O médico o acompanha, segura a maçaneta e, antes de abrir a
porta, lhe diz:
“Não é o fim do mundo. Você, afinal, existe.”
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