Um tempo depois da morte de seu amigo David Foster Wallace, o também escritor americano Jonathan Franzen resolveu encarar a realidade: o autor de pérolas literárias como Infinit Jest realmente tinha se matado, em casa, sem dar nenhum aviso prévio mais claro. Após uma longa reflexão, analisando diversas nuances da personalidade de Wallace, Franzen consegue admitir: havia sido uma atitude wallaciana.
Esse processo de reflexão é narrado em um longo ensaio publicado na New Yorker em 2011, em que Franzen fala também sobre uma viagem que ele fez para as ilhas onde teria vivido o homem que inspirou Daniel Defoe a criar seu Robinson Crusoé. Daí o grande tema desse excepcional texto não seja, portanto, apenas a morte de Foster Wallace, mas algo que também engloba isso: o individualismo.
É complicado marcar a data, a hora e o lugar onde se nasce uma ideia, principalmente se ela for compartilhada por uma sociedade inteira, ainda mais se ela se tornar hegemônica em todo o mundo. Mas num exercício literário ou poético, poderíamos sugerir - e é o que muita gente boa faz - que o famoso livro de Defoe, considerado o primeiro novel do mundo anglo-saxão, seria esse símbolo que precisamos.
Robinson Crusoé está ilhado e só depende dele e da fortuna para sobreviver. A sociedade, como a conhecemos, está a milhas de distância, e ele pode ignorar os padrões morais estabelecidos. Ali, o homem estava de volta à natureza, quase antecipando as ideias de Rousseau - que, como nos fala Franzen, era um grande fã do livro. O homem, neste livro, e a partir de então, está sozinho, livre, independe do outro. Não há mais um Deus que possa impor suas vontades. E Franzen lembra que a obra nasceu dentro do contexto de uma Inglaterra muito bem economicamente, além de ter já uma tradição de quase 200 anos de um protestantismo estranho e exótico, que não tem igual em nenhum lugar. Robinson Crusoé é o indivíduo elevado ao máximo da sua potência - e com todas as consequências que isso pode trazer.
Ao ler o artigo de Franzen, me lembrei de uma palestra do Roberto DaMatta na British Library ano passado falando sobre Jorge Amado. Bastante exaltado, ele chegou até a dizer que “vocês [europeus] é que deveriam estar discutindo Jorge Amado, não nós [brasileiros]”. O ponto dele era claro. Se Crusoé marcou o início da literatura como nós a conhecemos na Inglaterra, teria sido Jorge Amado quem fez esse papel no Brasil.
Exageros à parte, o grande argumento seria que se Defoe mostraria o arquétipo da civilização anglo-saxã como sendo individualista, Jorge Amado, com sua dona Flor e os seus dois maridos, teria mostrado que, no Brasil, a ideia do individualismo não tinha pego. Para começar pelo óbvio, Flor não estava sozinha, ao contrário: tinha dois maridos. Dois maridos antagônicos, que são os arquétipos do trabalhador e do malandro. Ou seja, nossa sociedade era, por definição, relacional, e fora dos padrões estabelecidos pelos países europeus. Para usar o exemplo mais à mão, nosso casamento era oficialmente monogâmico, mas arranjávamos um jeito de burlar essa regra. Essa e qualquer outra. Inclusive caindo no famoso dilema da dosagem desta informalidade: qual é a diferença entre o remédio e o veneno?
O que, aliás, pode ser uma das causas do forte movimento de negação que nasceu daí. Um sentimento que os anglo-saxões chamam de backlash, e que não dá para ser traduzido simplesmente como "retrocesso". Talvez a imagem da onda do mar indo e voltando, como uma repetição que vai acontecer sempre, seria o melhor. Um movimento que acompanhou o deslocamento da importância da produção cultural do Rio para São Paulo, e, como uma cópia em larga escala dessa prática, do Nordeste para o Sul.
Além disso, essa interpretação do Brasil via Jorge Amado poderia ser possível até um tempo em que as fronteiras dos mundos eram mais claras e havia uma distinção mais acentuada entre as identidades nacionais. Ou, ainda: nós nunca nos importamos, realmente, verdadeiramente, com o outro, independentemente do fenômeno da globalização. Como escreve Luiz Ruffato no excelente texto de abertura da Feira de Frankfurt, "a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença". Além disso, se todos os países se acham no direito de ser exemplos de grandes contrastes, o Brasil realmente tem fatos e números que nos fazem vergonhosamente campeões nesta categoria: "75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país". Não seria mais um caso de contraste, mas de paradoxo.
Como se dissesse que sempre fomos individualistas, mas de uma maneira ainda mais cruel que o caso anglo-saxão. Em vez de um egoísmo disfarçado de altruísmo, como diria Nietzsche, o exacerbamento do ideal marcado pelo ditado de "farinha pouca, meu pirão primeiro". Se as classes dominantes querem perpetuar o sistema para manter seus privilégios, sem perceber que esse caminho é uma bomba relógio, as classes médias e baixas têm como ideal se tornar elite para ter os mesmos privilégios. Ninguém quer interromper esta ordem para chegar ao progresso - individual.
Ou como muito melhor disse Ruffato: "Voltamos as costas ao outro - seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual - como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo, e nos negamos a nós mesmos".
Talvez a saída para esse dilema do "indivíduo" esteja dormindo na famosa e muito citada - por mim - última entrevista de Heidegger, quando ele diz que apenas um Deus pode nos salvar. Claro que ele não está pedindo a volta de uma religião como a católica que nos dizia o que era certo ou errado, mas que nós - seres humanos, que ele chamava de Dasein - tenhamos um objetivo para além da nossa individualidade. Que consigamos transcender esse limite do "um" que nos destina de maneira irrefutável, como muito bem explicou Casanova, ao tédio, ao enfado. Exatamente o que Franzen fala sobre Foster Wallace: David died of boredom.
Esse processo de reflexão é narrado em um longo ensaio publicado na New Yorker em 2011, em que Franzen fala também sobre uma viagem que ele fez para as ilhas onde teria vivido o homem que inspirou Daniel Defoe a criar seu Robinson Crusoé. Daí o grande tema desse excepcional texto não seja, portanto, apenas a morte de Foster Wallace, mas algo que também engloba isso: o individualismo.
É complicado marcar a data, a hora e o lugar onde se nasce uma ideia, principalmente se ela for compartilhada por uma sociedade inteira, ainda mais se ela se tornar hegemônica em todo o mundo. Mas num exercício literário ou poético, poderíamos sugerir - e é o que muita gente boa faz - que o famoso livro de Defoe, considerado o primeiro novel do mundo anglo-saxão, seria esse símbolo que precisamos.
Robinson Crusoé está ilhado e só depende dele e da fortuna para sobreviver. A sociedade, como a conhecemos, está a milhas de distância, e ele pode ignorar os padrões morais estabelecidos. Ali, o homem estava de volta à natureza, quase antecipando as ideias de Rousseau - que, como nos fala Franzen, era um grande fã do livro. O homem, neste livro, e a partir de então, está sozinho, livre, independe do outro. Não há mais um Deus que possa impor suas vontades. E Franzen lembra que a obra nasceu dentro do contexto de uma Inglaterra muito bem economicamente, além de ter já uma tradição de quase 200 anos de um protestantismo estranho e exótico, que não tem igual em nenhum lugar. Robinson Crusoé é o indivíduo elevado ao máximo da sua potência - e com todas as consequências que isso pode trazer.
Franzen e Wallace, ainda novinho, e um sujeito à esquerda que eu não sei quem é [daqui] |
Exageros à parte, o grande argumento seria que se Defoe mostraria o arquétipo da civilização anglo-saxã como sendo individualista, Jorge Amado, com sua dona Flor e os seus dois maridos, teria mostrado que, no Brasil, a ideia do individualismo não tinha pego. Para começar pelo óbvio, Flor não estava sozinha, ao contrário: tinha dois maridos. Dois maridos antagônicos, que são os arquétipos do trabalhador e do malandro. Ou seja, nossa sociedade era, por definição, relacional, e fora dos padrões estabelecidos pelos países europeus. Para usar o exemplo mais à mão, nosso casamento era oficialmente monogâmico, mas arranjávamos um jeito de burlar essa regra. Essa e qualquer outra. Inclusive caindo no famoso dilema da dosagem desta informalidade: qual é a diferença entre o remédio e o veneno?
O que, aliás, pode ser uma das causas do forte movimento de negação que nasceu daí. Um sentimento que os anglo-saxões chamam de backlash, e que não dá para ser traduzido simplesmente como "retrocesso". Talvez a imagem da onda do mar indo e voltando, como uma repetição que vai acontecer sempre, seria o melhor. Um movimento que acompanhou o deslocamento da importância da produção cultural do Rio para São Paulo, e, como uma cópia em larga escala dessa prática, do Nordeste para o Sul.
Além disso, essa interpretação do Brasil via Jorge Amado poderia ser possível até um tempo em que as fronteiras dos mundos eram mais claras e havia uma distinção mais acentuada entre as identidades nacionais. Ou, ainda: nós nunca nos importamos, realmente, verdadeiramente, com o outro, independentemente do fenômeno da globalização. Como escreve Luiz Ruffato no excelente texto de abertura da Feira de Frankfurt, "a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença". Além disso, se todos os países se acham no direito de ser exemplos de grandes contrastes, o Brasil realmente tem fatos e números que nos fazem vergonhosamente campeões nesta categoria: "75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país". Não seria mais um caso de contraste, mas de paradoxo.
Luiz Ruffato lá em Frankurt |
Ou como muito melhor disse Ruffato: "Voltamos as costas ao outro - seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual - como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo, e nos negamos a nós mesmos".
Talvez a saída para esse dilema do "indivíduo" esteja dormindo na famosa e muito citada - por mim - última entrevista de Heidegger, quando ele diz que apenas um Deus pode nos salvar. Claro que ele não está pedindo a volta de uma religião como a católica que nos dizia o que era certo ou errado, mas que nós - seres humanos, que ele chamava de Dasein - tenhamos um objetivo para além da nossa individualidade. Que consigamos transcender esse limite do "um" que nos destina de maneira irrefutável, como muito bem explicou Casanova, ao tédio, ao enfado. Exatamente o que Franzen fala sobre Foster Wallace: David died of boredom.
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