I
Era apenas uma bola de pelo sujo, jogado no canto da rua, na
esquina de onde Camila mora. Ela passou por esta bola e o bicho fez um barulho
tão miado que ela pensou que fosse um gato. Estava indo para o trabalho,
atrasada como sempre, mexendo no cabelo, como sempre. Não gosta de cachorros,
prefere os gatos, jamais teve um bicho de estimação, a mãe não deixava, era
muito pelo, a irmã era alérgica, eles viajavam muito, quem iria cuidar dele?,
mas algo a atraiu naquele bichinho tão pequeno. Ele – depois ela descobriu que
“ele” era “ele”, mesmo – olhou para ela de um jeito que a desconcertou. Não era
o olhar, o olho, simplesmente, o glóbulo ocular, que é quase tão frio como
vidro, mas o seu ao redor, o supercílio, a sobrancelha, o focinho, estava tão
triste, tão perdido. Não, não era isso: o cachorro estava machucado, muito
machucado. Queria ajuda. Pedia por uma mão que o acolhesse, trouxesse ao colo.
Camila tinha passado diante, em frente, pé ante pé, marchando em direção ao
ponto, e em seguida ao trabalho, reta, sem pestanejar, e quando ouviu o miado
canino, virou o rosto, e a sua velocidade caiu bruscamente até que em duas
passadas ela parou, sem nem perceber que ela tinha parado. Algo a tinha feito
parar, a tinha hipnotizado, desligado o seu computador de navegação interna,
seu piloto-automático, e tocado em um pedaço lá de dentro, bem orgânico, um
sino que reverbera no restante do corpo e nos faz ser parte de um todo maior,
nos torna apenas pequenos e orgulhosos seres naturais, algo que a consciência
não alcança, apenas é, independente da forma como encaramos. Aquele olhar de
sobrancelhas arqueadas, respiração intermitente, orelhas caídas, mexeu no nervo
interno da emoção dela e a congelou de maneira quente. Tirou ela de um mundo em
que estava inserida e a trouxe para outro, em que ela não mais tinha os pés no
chão ou o horizonte à sua frente. A primeira reação, ainda viciada, foi olhar
para os dois lados. Estava com uma calça jeans e uma camisa social branca e uma
pequena echarpe azul, com detalhes em vermelho, que combinava com os sapatos
vermelhos, e na hora que ela cogitou pela primeira levar o cachorro para a
casa, para o seu pequeno apartamento, ela voltou para o mundo automático e se
lembrou da camisa, bem passada, perfumada, e será que vai sujá-la?, mas o
cãozinho fez logo um novo muxoxo, e novamente ela se desarmou e já estava com o
bichinho no colo, era tão pequenininho!, tão pequenininho, quando veio aqui
para casa, ela vai dizer sempre. Ela se agachou, perto do bichinho, antes de pegá-lo
ainda, ele que pela primeira vez colocou a língua para fora, e ela não sabia o
que fazer, será que ele morde?, será que ele tem alguma doença?, ela tinha
medo, um medo bobo, que tinha sido introjetado na sua veia, por anos de
convívio familiar, e como ela deveria ser sempre bonita, cheirosa e elegante,
para conseguir o que ela quisesse. Tomou coragem, depois que o bicho se abaixou
mais, e acariciou a cabeça do cão, qual é o seu nome?, perguntou, como se ele
pudesse responder, mas era natural, automático, espontâneo, e ela, então, riu,
e ela cogitou levá-lo para casa, ficou refletindo, e começou a discussão
interna que ela estava totalmente acostumada, e que ela sabia quem venceria,
como sempre, entre o Certo e o Errado, e o Certo dizia que ela não poderia
tomar conta desse bicho que ela estava apenas com pena, mas a pena não iria
resolver o problema, ela deu agora para ter pena de bicho, vai se transformar
em uma dessas mulheres solteironas com centenas de gatos e a casa fedendo a
mofo, ela não tem como trazer todos os bichos para casa, enquanto o Errado,
dessa vez, não falou nada, apenas se incorporou, assumiu a forma de braços,
pernas, cabeça, tronco e se transformou na própria Camila que afagava o
cãozinho e logo o segurou no colo, e viu que ele estava machucado, como se ele
tivesse sido mordido por um cão maior, e ela, talvez pela primeira vez, deixou
o Certo falando sozinho, se levantou e voltou para casa, mesmo que estivesse,
já, atrasada.
II
Gabo – em homenagem ao seu escritor preferido – estava com
vários machucados de mordidas de outros cães. Ficou em tratamento durante um
bom tempo, com pomadas cicatrizantes, bandagens, visitas ao veterinário, banho
– banho! – o primeiro banho foi uma sujeira: o bicho se mexia, não ficava
quieto, querendo se libertar daquelas mãos que o obrigavam a se molhar na água
gelada do tanque, e água com sabão e sujeira voou por toda a área de serviço, e
depois ela pisou com o chinelo da rua, o cachorrinho saiu em disparada, quando
liberado, e sua casa – tão normalmente limpa – virou uma lama. Camila ainda
gastou um dinheirão no tratamento e na compra de acessórios na pet shop – “o
mordedor é ótimo para filhotes”, aconselhou a vendedora, uma senhora velhinha
que tinha aspecto de ter tido muitos cachorros na vida – um dinheirão que ela
não estava podendo gastar, já que tinha se endividado com o pagamento do IPTU,
do IPVA e com a viagem que fez na virada do ano. Mas alguma coisa naquele
cãozinho... Ela não sabia o que era, mas tinha alguma coisa... Ela simplesmente
tinha que ajudá-lo. O primeiro dia, ou melhor, a primeira noite foi a pior.
Gabo chorava muito e insistentemente. Ela imaginava que ele estava sentindo
muita dor e se doía também, porque não sabia bem o que fazer. Pensou em pegar
um analgésico qualquer, diluir em água e dar para o bicho, mas ficou com receio
de matar o bichinho. Ouviu de um amigo químico que era possível matar uma
pessoa com paracetamol. E muita gente era alérgico a ácido acetilsalicílico.
Imagine! Gabo poderia ter um troço e ela nunca iria se perdoar.
Nos primeiros dias, nem conseguiu trabalhar direito. Era
funcionária do RH de uma empresa de petróleo. Trabalhava na área de cursos, mas
também fazia alguns eventos. Deu sorte que nesta semana não tinha nenhum curso
agendado, apenas a festa dos aniversariantes do mês, que já era parte da
rotina, e não precisava tomar muito o tempo dela. Era uma mulher razoavelmente
experiente, com seus 29 anos, e já quase dez na empresa, contando o estágio. Chegava
ao escritório e queria logo voltar para casa. Ficava com a cabeça presa em
Gabo. Naquele monte de pelos ruivos-acastanhados-cobres-marrom-vermelho... Ele
não tinha raça, mas parecia uma mistura de Labrador Retriever com Cocker
Spaniel. O porte do primeiro, a cor e os pelos do segundo. Ela queria logo
voltar para casa para ver como seu bichinho estava, para passar a pomada, para
trocar o jornal, para colocar mais comida, ver como estava a água. Pegá-lo no
colo, ficar com ele ali, enquanto assistia a mais um episódio de sua série
favorita na TV a cabo. Conseguiu escapar quase todos os dias mais cedo, para
desespero do Certo que a olhou com reprovação, prometeu parar de falar com ela,
mas logo estava de volta. Comentou com os amigos sobre o cachorrinho, ninguém
entendeu direito. “Você?”, se espantaram em uníssono. Uma, a Dóris que
trabalhava com ela no RH e almoçava junto no restaurante do seu Manel, até
comentou sobre um cara novo, da área de extração, mas Camila estava estranha. Ela apenas sorria, como uma
criança pega fazendo uma diabrura. E não explicava nada. Não saberia explicar.
Não tinha ideia do motivo por que ela estava fazendo isso. Apenas se sentia
bem, estranhamente bem. O Certo, do alto de sua pose de autoridade, olhava para
ela, fazendo tsc tsc tsc. E dizia que ela estava apenas arranjando um motivo
para se ocupar. E que ela sofreria ainda mais quando o bicho morresse, porque
ele não era eterno, ela sabia, e que isso não era a solução, mas Camila não
queria nem saber. Ela nem percebia que estava ignorando o Certo, apenas estava.
Era como se a voz do Certo tivesse se perdido entre uma cacofonia, e essa cama
de vários sons desencontrados fosse agora o seu repouso, e a única voz que
conseguia se sobressair nesse nosso ambiente, porque não era exatamente uma
voz, não era exatamente uma comunicação verbal, mas algo mais orgânico, era o
Errado, que tinha se vestido com sua própria pele e agora era ela, exatamente
ela.
III
Em questão de semanas o bichinho já estava todo saltitante
pela casa. Roendo pés de móveis, fazendo xixi e cocô nos lugares menos
apropriados, estraçalhando o jornal e o espalhando pela casa. A irmã mais nova,
que acabou comprando um cachorro quando ficou mais velha, um cão d’água
português, indicado para quem tem alergia, lhe indicou usar um jornal enrolado
para educar o cachorrinho. Todas as vezes que ele fizesse algo errado, bateria
com o jornal, que, segundo ela, faz só barulho, não machuca, e esfregaria o
focinho do cachorro no lugar onde ele deveria fazer cocô e xixi. Mas não
conseguiu. Não conseguiu bater com jornal, nem, muito menos, esfregar o focinho
dele. Ele era tão pequenininho, tão delicado, tão... Não conseguiu. E passava
um tempo limpando a casa, assim que chegava do trabalho. Era trabalho após
trabalho. Mas ela estava tão... ela não saberia denominar, nem estava
preocupada em denominar, simplesmente não pensava nisso. Estava tranquila.
Calma, feliz. Ocupava um espaço na sua estante de tempo, um espaço que ela nem
tinha reparado que estava vazio. Era bom ter alguém dependendo dela. Era bom se
sentir útil. Era bom fazer algo que ela não queria, imediatamente. Era bom se
doar, abrir mão de ser apenas ela, agir em prol dela, era bom ter alguém, além
dela. Era bom descobrir que podia gostar de alguém, mesmo que fosse um cachorrinho
minúsculo, que odiava ração e saltitava balançando o rabo desesperadamente
quando ela chegava do trabalho. Era bom ter alguém a esperando em casa, e que
se transformava, virava um cão-elétrico quando a via. Era bom ter que voltar
para casa. Era bom não apenas deitar no sofá e ver mais um episódio da série.
Não ter que comer sorvete, inventar uma receita nova. Não ter que sair com as
amigas, que nem estavam tão amigas assim, ultimamente – todas elas casadas,
todas querendo arranjar um namorado para ela, todas achando que foi uma ótima
ideia ela ter um cãozinho de companhia, mas, na verdade, acreditando que agora
ela se admitiu, realmente, como uma solteirona encalhada. Era bom não ser
julgada, não ser avaliada, nem criticada porque engordou um pouco, ou muito,
porque exagerou no doce, porque estava de TPM. Ter alguém com quem conversar,
mesmo que não a respondesse. Era bom ter alguém para amar, incondicionalmente –
e ser correspondida.
IV
Como sói acontecer, a vida conjunta de Gabo e Camila entrou na
rotina. O que não é, necessariamente, ruim, apenas repetitivo. Acordavam sempre
cedo, comiam pouco variadamente nas mesmas horas, ela ia trabalhar, ele fica
esticado, sem fazer nada, dormiam depois do filme que acabava sempre por volta
das 23h. Gabo cresceu e se tornou um cachorro muito bonito, com uma pelagem
muito sedosa, o focinho longo, porte forte, postura elegante, além de manso.
Raramente latia, raramente estranhava alguém ou alguma coisa. Era um cachorro
tranquilo, como a sua dona. Ela adorava
passear com ele pela vizinhança, vê-lo interagir com outros cachorros. Assim
que chegava à pracinha perto de casa, soltava a coleira – sempre um pouco
apreensiva, com o Certo, já um pouco resignado (não é curioso como o Certo
sempre se adapta às situações e sempre tem uma opinião sobre tudo, e sempre
sabe o que é o certo a fazer?) lhe enchendo o ouvido: e se ele fugisse? Quem
garante que ele não vai fugir? Ele é um bicho, não age racionalmente. Ele pode
correr para a rua e ser atropelado. Vai ser uma morte horrível e... – e via o
bicho zarpar em direção ao gramado louco de felicidade. Ele pulava de um lado
para outro, abaixava o focinho, levantava o quadril, rolava para lá e para cá,
se esfregava na grama, se coçava com as patas traseiras, se coçava com as patas
dianteiras, corria atrás do osso de brinquedo, trazia de volta para Camila
arremessar novamente, cheirava tudo, tudo, tudo, todos os cantos, todos os
cachorros, todos os detalhes dos cachorros que se aproximavam dele, os donos
dos cachorros, a bola que vinha quicando, a criança que vinha atrás da bola, a
moça carregando a sacola do supermercado, a sacola do supermercado, o rapaz
passando no skate, a mãe e a filha voltando do colégio... Não havia momento do
dia que Gabo ficasse mais obviamente feliz. Nem quando ela chegava em casa.
Nem... Gabo fazia uma festa com ela, sempre, cotidianamente todos os dias, mas
nada se comparava como ele ficava incontrolavelmente feliz quando ela o soltava
da coleira na pracinha. Camila até ficava, depois de um tempo, um pouco
enciumada. Não iria admitir isso jamais – e nem tinha para quem admitir – mas
ela achava estranho, ou melhor, ela sentia inveja dessa felicidade toda que ele
sentia no momento em que havia o corte de contato entre ela e ele. Ela se
sentia, um pouco, desprezada, como se não importasse o que ela fizesse, ele
ainda assim gostaria mais de ficar ali, correndo para um lado para outro, sem
qualquer razão, do que ficar com ela. Ela se sentia traída, para falar a
verdade mais íntima, que ela nunca admitira, nem para si mesma, e nessa hora o
Certo coloca as duas mãos sobre os seus ombros, sem dizer uma única palavra, e
sorria, enquanto Camila dizia que, de qualquer forma, continuaria a trazer o
bichinho para lá. Se ela pudesse lhe proporcionar essa felicidade, esse prazer
que não cabe em si, ela faria isso, sempre – e ouvia o balançar de cabeça, de
aprovação, do Certo, logo atrás dela. Era o certo a fazer, ela sabia.
V
O estágio seguinte à rotina se chama displicência. Quando os
movimentos se tornam parte integrante do dia a dia, em formato de repetição
monótona e enfadonha. Quando, novamente, a vida volta a ser gerida pelo grande
e insofismável piloto-automático, que transforma a vida em uma grande roda que
estraçalha a individualidade, e segue em frente, porque tem que seguir em frente,
porque tem que. Não que Camila estivesse achando a vida monótona, entediante –
ela não pensava sobre isso. Nesse momento, o Certo acompanhava Camila por onde
ela estivesse, como melhor amigo, enquanto o Errado tentava, de todas as
maneiras, chamar a atenção de Camila, mas ela o ignorava porque, bem, pelo
óbvio, porque ele é Errado. Em princípio. Por princípio. Não adiantava o Errado
mostrar álbuns coloridos, com toda uma gama de sabores, porque ele parecia um
traficante de desenho animado da década em que a TV não era colorida. Recusar o
Errado era o certo.
Mantinha o contato com Gabo, mas não mais deixava o cachorro
dormir com ela em cima da cama. Os pelos a incomodavam. Ela não era alérgica,
mas não queria acordar comendo pelos. Não tinha mais tanta paciência, mas ele
não era de fazer nada muito errado. Então, não brigava com ele. Aliás, era Gabo
quem ainda lhe despertava algum tipo de vontade genuína, quando trazia o osso
para que ela arremessasse, ou quando enfiava o focinho debaixo do pé dela e
fazia cócegas. Ela, agora, até achava curioso quando ele mordia e levava para
ela a coleira, numa clara indicação de que queria passear. O trabalho, para
piorar, estava lhe deixando muito estressada. Muitos cursos para organizar.
Além disso, um rapaz do departamento pessoal foi mandado embora e agora ela é
que tinha que comunicar as pessoas do procedimento burocrático, quando eram
demitidos. E ela não tinha talento para isso. Não conseguia lidar com a
tristeza das pessoas que tinham acabado de perder o emprego. Uma vez um homem
de 52 anos chorou na frente dela. Não falou nada, apenas chorou, chorou, de
soluçar. Depois, pediu desculpas, estava envergonhado. Estava perdido. Não
tinha esperança sobre o que iria fazer. Foi um corte no departamento, e ele foi
escolhido porque não tinha filhos. Só por isso. Foi o argumento que lhe deram,
ao menos. Camila engoliu a seco e tentou procurar uma palavra que pudesse fazer
com que a vida de homem, solteiro, sozinho, melhorasse, mas só pensava que se
fosse com ela, ela também estaria perdida. Sem conseguir dizer nada, num ato impensado,
esticou a mão e tocou na mão dele, que se assustou e olhou para ela,
interrompeu o choro, e o instante congelou para os dois. Houve algum tipo de
conexão ali. Eles estavam no mesmo lugar, distante do restante do mundo. Ele
não era feio. Tudo bem que ela não gostava de bigode, mas nem reparou no
bigode.
O homem foi embora, sem que ela pudesse pronunciar qualquer
palavra além de “aqui está o seu número do PIS”, ou “esse é o procedimento para
a retirada do FGTS”. Mas, assim que ele saiu, ela correu atrás do arquivo dele
e descobriu seu telefone, endereço, tipo sanguíneo, tudo. Ficou olhando para
aquela ficha se sentindo uma culpada – ela, em tese, não poderia roubar essas
informações para uso pessoal. Mas ela estava sendo muito certinha, disse no seu
ouvido o Errado. E ela aceitou, enfim, algumas palavras do Errado. Ela não
faria qualquer mal com essas informações. Ligaria para ele, só. Ligaria para
ele? Ela pegaria o telefone dela, de casa, ou celular?, e ligaria, discaria
cada um dos números para falar com ele? E o que falaria com o senhor... Jorge
Edson Silva Mendes? Não ligaria. Claro que não. Então, nem é exatamente uso de
informação restrita. Isso não é um problema, já está decido. Ela já decidiu
isso, não precisa voltar a isso. Estamos discutindo – ela falou com o Certo e o
Errado – sobre eu ligar ou não para ele. E eu não vou ligar. Disse ela, ecoando
uma sugestão do Certo. O Certo era uma figura estranhíssima. Parecia o crítico
de comida francês do “Ratatouille”, antes de ele comer o ratatouille. O Errado
não tinha uma figura tão clara. Por que o Certo era tão feio? Será que é porque
se importar com a aparência é errado? Não sabe se ela se perguntou ou se foi
uma pergunta do Certo, dando uma indireta a ela. O Certo, agora, então, estaria
incentivando a ela a ligar? Não, não é bem isso, é que... Alguém veio falar com
ela e ela se desligou desse diálogo para atender.
À noite, porém, antes de dormir, deixou o cartão onde
anotara os telefones de Jorge Edson ao lado da cama. Antes, ficou olhando para
ele, segurando na outra mão o telefone sem fio da casa. Ficou nessa posição por
alguns segundos, enquanto sua mente era o sítio de uma grande discussão que a
deixaria com dor de cabeça. Ao fim, mandou todo mundo calar a boca e ligou para
Jorge Edson, mas quando ele atendeu, desligou, com o coração sobressaltado.
Resolvera dormir. Como se conseguisse. Como se... Deveria ligar outra vez ou
não? Não tinha uma resposta clara, não tinha onde basear suas opiniões, o Certo
e o Errado estavam a confundindo na discussão deles. Ela queria, mas não
queria. Ou queria, mas não sabia se queria, mesmo. Estava dividida, e não se
escutava realmente. Quem era a sua voz, quem a representava, de onde viria a
ordem que ela deveria seguir? Qual seria o seu tom, com que palavras... havia,
novamente, uma cacofonia, só que agora, o volume era muito alto e a estava
deixando enlouquecida e ela não queria mais ouvir, queria sair, queria
silenciar isso, fazê-las parar. Sem pensar nada, num ímpeto, se levantou e ao
se levantar não reparou que Gabo estava logo embaixo, ao lado da cama, bem ao
alcance do pé dela e pisou com força na patinha dianteira do bichinho, que deu
um latido esganiçado, de quem sofreu muita dor, e que a lembrou o latido miado
de quando o conheceu, e ela, ao perceber que pisou, que pisou com todo o seu
peso na patinha de Gabo, deu um pulo de volta à cama, como se tivesse uma mola,
assustada, com medo de ter quebrado a patinha, e Gabo, Gabo correu para o canto
do quarto, e ela, coração disparado, meu deus, meu deus, eu pisei no Gabo, eu
pisei no Gabo, ela vai em direção ao cãozinho que pela primeira vez, desde que
ela o viu, pequenininho, quase só uma bola de pelo, quando cabia em apenas uma
mão sua, Gabo, aquele cachorrinho que agora é um cão grande e ferido, Gabo
rosnou para ela e avançou para ela, com os dentes à mostra, como se fosse um
lobo chefiando uma matilha, protegendo sua ninhada. “Desculpa, Gabo, desculpa,
mil desculpa, perdão, desculpa”, enfileira Camila, para o seu cachorro, na
tentativa de tirar de sobre os seus ombros as duas toneladas de saco de culpa
que se instalaram ali. Repentinamente começou a sentir ódio de si porque tinha
pensado em ligar para Jorge Edson, porque tinha ficado na dúvida, enquanto ela
não reparou em Gabo, que é quem ela deveria se importar, Gabo, que agora está
no canto, que agora a odeia, com toda a razão, porque ela pisou nele, pisou
nele, como se fosse uma barata, será que quebrou o osso? Será que quebrou? Como
se conserta, será que dá para consertar? Eu vou tratar de você, pensa ou diz,
não sabe ao certo, porque ela só repete “Desculpa, desculpa, desculpa” para o
cachorro, na tentativa de que ele parasse de rosnar para ela todas as vezes que
ela chegava perto. Decidiu, depois, que ela iria ver o que tinha acontecido, e
se ela fosse mordida, ela mereceria, ela tinha pisado na pata dele, ele pode
mordê-la, ele agora pode se vingar. Ela se aproxima e Gabo late em sua direção,
como se ela fosse sua maior inimiga, mas quando ela fica muito próxima, ele
abaixa a cabeça, como se finalmente a tivesse reconhecido, como se até então,
tivesse se confundido, como se ele não tivesse sido ele, e começa a lambê-la e
ela se abaixa, se senta do lado dele, e deixa que a lambe, a cara, o pescoço,
toda, e começa a chorar, um choro miúdo, pequeno, que não é exatamente um
choro, mas um extravasamento, uma liberação do que estava preso, e o cachorro a
lambe, a lambe, lambe-lambe-lambe e continua, e começa a explorar outras partes
da carne de Camila até que ela não percebe o que acontecia e acontece, acontece
o que ela não esperava que aconteceria e acontece, acontece, acontece mesmo.
VI
A pata não se fraturou, Camila pisou muito na pontinha, que
tem muitas articulações e se adaptaram, à medida do possível, ao seu peso. Mas
machucou muito. A veterinária teve que raspar o pelo em volta, e foi difícil
controlar Gabo, que se mexia muito, ela teve que aplicar uma injeção para
acalmá-lo à força, e fazer um curativo grande, que deixava Gabo com uma espécie
de botinha.
“Você vai ficar bem”, dizia Camila, ao saírem, ele no colo
dela, da veterinária, “Você vai ficar bem. Lembra de quando você veio aqui para
casa? Quando você era pequenininho, e também estava todo machucado, lembra?” O
cachorro parece ignorá-la, com a língua para fora, olhando para um horizonte
canino em preto e branco, enquanto ela vai falando, para si mesma, sem perceber
que falava sozinha.
Em casa, Gabo experimenta a nova patinha e manca muito. Não
tem qualquer confiança naquela bota de esparadrapos que protege a pata ferida.
Camila, ainda carregando os dois sacos de culpa, troca a água do cachorro,
coloca mais comida, a comida que ele mais gostava, uma mistura de feijão, arroz
e carne seca, e tenta procurar algo a mais que pudesse fazer. Quando ela
percebe que não há mais nada, fica olhando para ele, numa ternura grande, que
não tinha mais espaço dentro dela e explode num sorriso, que se transfere para
um riso, e quase termina numa gargalhada. De alguma maneira, ela tinha voltado
ao início, ela tinha novamente vontade de só ficar em casa cuidado do cãozinho.
Vai para o trabalho, culpadíssima, por deixar Gabo sozinho,
mas, como no início, consegue uma desculpa para sair mais cedo. Quando ela
chega em casa, uma surpresa: não há qualquer festa para ela. Aliás, Gabo nem
aparece. Ela vai atrás dele, o chamando pelo nome, e vai encontrando pedaços da
bandagem pelo caminho. No quarto, sobre a cama, está Gabo. Ele havia arrancado
todo o esparadrapo e arranhado toda a cicatrização, com os dentes ou com a
outra patinha. Ele estava sangrando sobre a cama e sujando tudo. “GABO!”, ela
grita revoltada, “O que você fez!? Olha a bagunça que você fez!?” Ela volta à
área de serviço, enrola um jornal e volta para bater nele. É a primeira vez que
ela bate nele, mas ela não se dá conta disso, apenas quer bater naquele
cachorro que sujou todo o quarto dela, que ainda acabou com todo o curativo. E
ela bate com toda a força que tem, várias e várias vezes. Gabo se encolhe todo,
fica acuado, vai para a cabeceira, e suja o travesseiro de Camila, e ela fica
ainda mais revoltada: “GABO!”, ela continua a bater, e o cachorro se espreme,
até ela se cansar. Decide dormir na sala e resolver o quarto no dia seguinte.
VII
Nos dias que se seguiram, Gabo insiste em tirar todos os
dias a bandagem e comer a pata. Não adiantava ela bater nele. Ele simplesmente
não ficava com a bandagem. Tentou deixar sem o esparadrapo e foi pior: Gabo
comeu um dos seus dedinhos. Levou na veterinária, que fez um curativo grande, que
parecia impenetrável, mas aconteceu exatamente a mesma coisa. Gabo não queria
ficar com a proteção. Era uma retaliação, ela imaginava, era uma forma de me
punir. Gabo agora, também, insistia em arranhar a porta com a pata boa. Passava
todo o seu tempo à porta, ignorando sua cama, ignorando Camila, apenas
arranhando a porta. Não adiantava Camila tentar colocá-lo em outro lugar: ele
voltava para a porta. Não adiantava brigar com ele. Ele ficava no mesmo lugar.
Não mudava. Era um protesto pacífico, insistente, que minava as forças de
Camila, como se fosse uma pequena infiltração que ia crescendo de pressão.
Camila tinha que tomar cuidado, quando abria a porta porque, todas as vezes que
ela abria a porta, ele saía correndo, mancando. Desde que ele se machucou, ela
não o tinha levado à praça. Principalmente agora, sem a bandagem, tinha medo de
que a situação piorasse, que o machucado inflamasse mais. Mas parecia que não
haveria alternativa. Ficou quieta, prendendo a respiração, como se tivesse
entrado num vácuo mental. Escutou um zumbido, como o som de espera de telefone,
mas algumas oitavas acima.
Ela teria que tirá-lo de casa. Ela sabia qual era o risco que
corriam – ela e ele. Sabia o que provavelmente iria acontecer. Isso amoleceu um
pouco suas pernas. Respirou fundo, tentou escutar algo dentro de si, mas há
muito só ouvia o eco do silêncio. Ar que entra, ar que sai. Fechou os olhos.
Abriu os olhos. Olhou para frente, para o nada, para a parede em branco. Não
tinha alternativa. Era acompanhar o autoflagelo ou isso. Pegou a coleira. Gabo
não abanou o rabo, mas ficou desperto, bem mais que em todos os últimos dias.
Acompanhava cada movimento dela, como se pudesse sentir o cheiro do medo dela.
Respirando fundo, ela foi até ele. Viu que a pata estava bem inflamada. Colocou
a coleira num canto, pegou Gabo no colo e saiu.
A praça estava estranhamente vazia. Como se estivesse se
preparando para ficar mais sinistra, para apertar mais o coração de Camila,
para deixá-la ainda mais na dúvida. Sentou-se no banco que ela sempre sentava,
com Gabo em seu colo. Segurou o focinho do cachorro e se aproximou do seu
rosto. Olhou nos olhos do bichos, tentando desvendar algo que passava dentro da
cabeça daquele cachorro. O bicho, entretanto, desviou o olhar, puxando a cabeça
para olhar para o outro lado. Algo já tinha sido rompido há muito tempo. Ela
parou de segurar a cabeça dele, o deixou solto, mas ele ficou parado. Ela o
colocou no gramado, ele capengando deu dois passos à frente. Ela voltou para o
banco, quando o primeiro soluço tremeu todo o seu corpo. O bicho testou dois
passos adiante. Parou, virou a cabeça, como se pedisse autorização. Ela não fez
nada. Ele deu mais dois, e outros dois, e mais, e não virou mais, até que
entrou numa sombra no canto da praça, e passou a grade e sumiu por completo.
O choro convulsionou Camila que gritava em lágrimas.
VIII
Depois de se recompor, Camila voltou para casa, arrastando
os pés, abraçada, de cada lado do corpo, pelo Certo, à direita, e o Errado, à
esquerda.
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