O céu estava branco e os primeiros flocos de neve já gelavam
seu rosto. À sua frente, o Huascarán, com suas duas pontas, e seus 6768 metros.
Era a primeira vez que o via. João estava com medo. Não sabia muito bem do quê.
Ficou parado em frente a uma das pequenas lagoas, imobilizado, e só saiu do
transe hipnótico quando uma senhora vestida com roupas que pareciam ter séculos
de existência trouxe um bebê lhama para ele segurar e tirar fotos, em troca de
um trocado. Ele não queria segurar lhama alguma. Não estava feliz. Não queria
compartilhar nada, não queria interagir. Estava com medo, um medo que não sabia
dizer bem o que era.
Atrás dele, estava o guia. “Me llamo Pablo”, ele disse
secamente, em uma das poucas vezes que abriu a boca para se comunicar. Era um
índio, baixo, atarracado, forte, com o rosto largo e nenhum sorriso, que
parecia estar totalmente à vontade apenas por estar ali. Assim que a mulher com
o lhama apareceu e insistiu, falando um espanhol muito quebrado, Pablo disse
algo para a mulher, em quéchua, em um tom mais grosseiro que o normal, e ela
saiu, sem se virar. Ele mascava algo e entregou para João, “És para el
soroche”, umas raspas do que parecia ser uma raiz, enrolada em uma folha que
ele reconheceu ser de coca. João pegou sem pensar muito aquela combinação e
colocou na boca.
Não sabia bem o que fazer. Por que ele tinha chegado ali?
Tentou fazer o percurso mental: foi uma prima, meio maluquinha, que tinha ido
antes para o Peru e dito que Cuzco era ótimo, mas que ela tinha gostado mesmo
foi de conhecer Huaraz, Chavin de Huántar e, principalmente, o Huascarán. As
fotos dela eram incríveis. Além de ela ser uma ótima fotógrafa, o céu estava
azul. Bem diferente do que ele via agora. A prima, empolgadíssima, disse que
era ali que se conhecia os verdadeiros peruanos, não na versão para a
exportação que todo mundo conhece quando vai visitar as ruínas de Machu Picchu.
Nada disso o empolgou. Ele só ficou com vontade de ir quando ela disse que
Huascarán era o quarto ponto culminante da América do Sul e que tinha sido
muito difícil para ela subir. Mesmo com o tempo bom, havia muito vento, a
temperatura estava muito baixa e, principalmente, a altitude, com o ar
rarefeito, fez com que ela vomitasse muito ao chegar no ponto culminante. Mas,
para ela, que adorava se meter nessas hippongagens,
já tinha tomado chá de santo Daime e não se sabe mais de quais outros santos,
esse processo serviu como uma espécie de purificação. “Mudou a minha vida”,
disse ela, séria, olhando para ele, após mostrar as fotos no computador.
João não queria mudar de vida. Estava satisfeito com o
esquema que montou para si, de acordar ao meio-dia, investir na bolsa pela
tarde-noite, e varar a madrugada jogando pôquer valendo dinheiro pela internet.
Estava bom assim, não tinha o que reclamar. Já tinha comprado um apartamento,
seu carro era do ano, saía aos fins de semana com os amigos de infância, com
quem nunca perdeu contato. Ao ouvi-la, ele queria, ele ficou tentado, ficou com
vontade de enfrentar a quarta montanha mais alta do continente. Mas por quê? Por que ele queria enfrentá-la?
Ele agora se pergunta olhando para a montanha, logo à frente dele, com o medo
subindo junto com o frio, por suas pernas em direção ao coração. Ele não era um
homem de se questionar muito. Muito menos de viajar para lugares não urbanos.
Só tinha saído do Brasil para ir aos EUA, Argentina, e na Europa fez as
capitais mais famosas: Paris, Londres, Roma. Viajava sempre para o Nordeste do
Brasil e gostava muito de praias. O lugar menos óbvio a que tinha ido era o
Pantanal e Bonito. Por que, então, resolveu ir para uma cidade praticamente
desconhecida no interior do Peru para subir uma montanha? Ele, que jamais tinha
feito uma trilha na vida?
“Vamos nos quedar un poco acá, ¿si?”, ele pediu para Pablo,
que, fez uma cara de contrariado, mas, sem demorar um segundo, se sentou no
chão de grama úmida e gelada.
Tinha chegado via Lima e, depois de três dias na capital,
sem achar particularmente nenhuma graça na cidade que vive quase sempre
nublada, foi para Huaraz, onde fica o parque nacional de Huascarán. Ele tinha
vindo para cá, ele acredita, porque queria fazer algo diferente. Estava
entediado com o seu cotidiano. Estava? Acha que estava. Mas ele gosta do cotidiano,
mas se entediou. Começara a malhar numa academia e também decidira correr na
praia, na tentativa de aumentar sua endorfina, e foi nessa época, em que ele
estava experimentando esse novo formato de vida, que ouviu a história da prima.
Ele queria fazer algo diferente do que ele tinha feito sempre. Tentou arranjar
companhia entre os amigos e os que não olharam para ele com cara de surpresa e
reprovação disseram que não conseguiriam tirar férias em tão poucos meses, como
ele havia planejado. Iria sozinho, então. Como tudo o que fez na vida, até ali.
Lembra-se de estar empolgado com a viagem. Estava empolgado com a viagem. Ele,
que conseguiu comprar o apartamento com 28 anos, com o dinheiro do próprio
suor, com sua inteligência matemática, como dizia, com apenas sua visão
empresarial e seu faro para negócios e jogadas, não seria parado por uma
montanha, mesmo que ela tivesse mais de 6 mil metros. Lembrou-se do pai, fiscal da receita. Sempre
fora contra a sua vida, o seu estilo de vida. Quando começou a viver do jeito
que vive e gosta de viver, o pai lhe disse que não daria um centavo para ele,
se ele não optasse por uma profissão de verdade. A mãe ficou dividida, mas não
conseguiu convencer o pai a mudar de ideia. João, para começar nessa nova
carreira, nessa fase da vida, teve que fazer algumas concessões. Vendeu o carro
que tinha, parou de sair, de viajar, parou tudo. E investiu na bolsa. Todo dia,
o dia todo, loucamente. Depois, percebeu que o pôquer poderia ser mais que um
hobby, e fazia jornadas duplas. Houve semanas que ele praticamente não dormiu,
trocando de mercado, indo de Shangai, para Hong Kong, depois Tóquio, Nova York,
Londres, Paris, Frankfurt, aí ia para o pôquer e acordava em Shangai novamente
e o ciclo continuava. Investia em petróleo, commodities, novas empresas de tecnologia,
blue chips. Sua carteira era variada, mas sua atitude era bem agressiva. Foram
seis anos de luta, de trabalho profundo para se estabelecer, após a faculdade
de administração que largou faltando apenas o trabalho final. Ele tinha orgulho
de ter dado certo. De poder mostrar para o pai que ele deu certo. A mãe ajudou.
Deu uma grana para alugar o primeiro apartamento. Emprestava o próprio carro,
quando ele precisava. O início foi complicado, mas ele agora se sente orgulhoso
de ter vencido. Sim. Nunca chegou a discutir de verdade com o pai, mas guardou
uma mágoa forte dele. Como se o pai não tivesse
estado lá quando ele mais precisava. O pai ainda não entende como o filho, já
com 35 anos, quer continuar numa vida tão insegura, sem qualquer garantia. E
como ele vai se aposentar? Como ele vai criar os filhos? Aliás, nunca vai se
casar? A mãe, sem que nem o filho nem o pai saibam, paga escondido um plano de
saúde para João. Não aguentaria ver o filho num hospital público, caso algo de
errado – bate na madeira – acontecesse. Então, o que mudou dentro dele? Por que
esse medo, agora, ao ver os cumes brancos da montanha? Onde está a empolgação
que ele tinha, de mostrar que ele poderia enfrentar qualquer problema?
No dia anterior, tinha ido conhecer Chavin de Huántar.
Ficou, pela primeira vez na viagem, impressionado. Algo dentro dele tinha se
movimentado. Conseguiu visualizar, enquanto o guia da excursão que ele tinha
contratado falava, o encontro de civilizações, de peregrinos com locais há milênios
naquele descampado. Conseguiu ver o sacerdote que exercia também o poder
político discursando e dizendo que eles deveriam fazer sacrifícios aos deuses
em prol de boas colheitas e para afugentar os maus espíritos. Viu o homem jovem
subindo os degraus da pirâmide em direção ao sacerdote para tomar um chá de
cacto de são Pedro, enquanto inúmeros músicos tocam instrumentos rústicos, que
imitam o som dos ventos, dos animais, da vida. O homem que é colocado dentro da
pirâmide – e João também entra na pirâmide e está quase em transe com a
descrição – e segue pelos corredores estreitos, úmidos e frios, com pouquíssima
ventilação, e iluminação precária, mas que as pupilas dilatadas pelo chá o
fazem enxergar razoavelmente bem. Escuta os sons de jaguares, do lado de fora,
e continua, assustado, com medo do que vai encontrar, mas sabendo que ele tem
que se sacrificar pelo seu povo, para que todos pudessem viver melhor, vai
tateando as paredes, evitando os buracos no chão, percebendo que os caminhos
são labirínticos, que ele já perdeu a noção de para onde deve seguir, todos os
lados parecem o mesmo lado, e com esses sons, ele não consegue se concentrar
direito, ele deve ir, mas está apavorado – e se encontrar com algum deus? E se
o deus o matar? – ele tem que continuar, mas para onde? Deve ir, vai, anda,
continua, a música e os jaguares na cabeça, ele está perdido, continua, está
desesperado, começa a rezar baixinho, repetir palavras pedindo proteção, quando
encontra o monolito de cinco metros de altura: É deus, deus, deus! Volta
correndo, tropeçando, gritando, caindo no chão, até que é derrubado por um
buraco que ele não viu e, sem que tivesse tempo de saber o que estava
acontecendo, sua cabeça é decepada. Lá fora, o sacerdote mostra a cabeça para a
multidão que esperava ansiosamente por
isso e festeja. Eles continuam protegidos, os deuses estavam saciados.
“No podemos demorar mucho”, diz Pablo, já de pé, impaciente,
olhando para o lago, de costas para João.
“Solamente un poco más, Pablo”, comenta João, “por favor”.
Abraça
os próprios joelhos trazendo as pernas para o encontro do corpo. Sente uma
ternura imensa pelo homem sacrificado que nem sabia que existia dentro dele.
Pobre homem, diz de si para si. Enquanto Pablo joga pedrinhas no lago, percebe
que não queria fazer nada. Não queria subir a montanha, não queria descer o que
já tinha subido. Queria ficar apenas parado. Ficar ali, com esse nada, esse
vazio que tinha dentro de si. Isso era ele. Não o homem que investia na bolsa,
jogava cartas na madrugada, como forma de ganhar mais dinheiro. Era esse homem
ali, parado, isolado do mundo, perdido, se não fosse esse índio que quer abandoná-lo.
Quanto mais ele ficava parado, mais ele queria ficar parado.
Mais ele se sentia com frio. Pablo se afastou, foi para perto do lago, deixando
sua sensação de solidão infinita ainda maior. Sua cabeça começou um caminho de
desligar-se. Ele ficou com vontade de deitar, apenas dormir um pouco, só para
descansar. Depois ele veria o que iria fazer. Colocou a mochila do lado e
deitou, enrolado nas próprias pernas, ali.
Acordou com Pablo à sua frente, nervoso como ele imaginou
que o índio não poderia ficar: “¡Levantate, hombre, levantate!”, gritava Pablo,
enquanto dava tapas na cara de João, que tinha desligado completamente. Quando
conseguiu se sentar, Pablo puxou uma garrafa térmica, que João nem tinha
percebido que existia, abriu, colocou o líquido num copo plástico e esticou a
mão: “¡Bebe!” João, sem pensar muito tomou o chá, que percebeu ser de coca.
“Esto és el soroche”, disse Pablo, enquanto insistia para João tomar todo o
chá, que parecia de hortelã.
“Vamos volver” “Não”, “Não”, ele disse e já não se importava
de fingir falar espanhol. Tinha que seguir adiante, tinha que subir até o cume,
tinha que completar a caminhada. Os dois ficaram se encarando, sem falar nada.
Era a primeira vez que Pablo o olhava não com um olhar de condescendência, nem de
tédio, mas de uma mistura de revolta com respeito.
“Tu estás mal, Joan-o, tienes que volver.”
“Você pode voltar, se quiser, eu tenho que continuar.”
“¿Se quedó loco, Joan-o? Estabas dormindo hace dos minutos.
¿Que piensas que va a lograr con eso?”
“Pablo”, falou e esperou o ar entrar, inflar o pulmão, e
sair antes de continuar. “Eu vou subir.”
Terminou de dizer e começou a caminhar em direção ao
Huascarán. Estava determinado. Não importava o que acontecesse. Ele iria subir.
Vislumbrava a trilha. Ele iria conseguir subir. Não deve ser tão difícil, o
pensamento ocorreu na sua cabeça, como se fosse ele tentando se convencer de
que tinha sido a escolha certa. Foi a única escolha possível, disse para si
mesmo, como se tentasse abafar as vozes que pudessem acordar e duvidar de si
mesmo. Ele tinha que seguir. Não iria se perguntar as razões, os motivos, os
quereres, as vontades, ele simplesmente tinha que seguir porque tinha que
seguir porque tinha que seguir. Iria subir nem que ele congelasse. Nem que ele
ficasse preso lá em cima. Nem que ele virasse um fóssil. Não vou pensar nisso,
tentou novamente controlar o raciocínio que insistia em amedrontá-lo, como se
estivesse boicotando sua caminhada, como se duvidasse da própria capacidade.
Ele tinha que continuar. Começou a repetir mentalmente: Tenho que ir, tenho que ir, tenho que ir. Um
passo depois do outro, um passo e outro.
Pablo deixou João seguir uns 100 metros na esperança que ele
desistisse e voltasse. A nevasca aumentava de intensidade. Os flocos cresciam.
João pisa em falso, escorrega e quase cai no chão. Chega a colocar o joelho
direito no chão, e impede a queda com a mão direita. Pablo balança a cabeça de
um lado para outro, contrariado de uma maneira que ele não era nem pelo próprio
filho. Esse brasileiro quer se matar? Ele pensou em quéchua. Por que isso
acontece comigo? Por que eu não pego os turistas mais comuns? Se ele morrer,
não vai ser bom. Eu vou ser amaldiçoado. Eu vou ser preso. Para sempre o
espírito dele vai frequentar os meus sonhos. Nunca mais vou dormir direito. Espírito
de louco. Ele é capaz de fazer tudo. Será que ele consegue? - Sem perceber, Pablo já estava, balançando a
cabeça, seguindo João.
A neve começa a se acumular no casaco de João, que tenta espantá-la,
como se fosse bichos. Percebe, então, que o seu casaco não é tão impermeável
quanto imagina. O bicho vai penetrando entre as fibras que, desgastadas,
permitem o ataque. O chão é de cascalho grosso, que faz os pés afundarem, e
perde o apoio. Vai se sentindo úmido. O ar rarefeito atrapalha sua respiração.
Caminha vagarosamente, respira pela boca. Ofega. Para, coloca as mão na
cintura, olha para o alto. Sente a pressão baixando, força a inspiração. Segura
o ar dentro dos pulmões. Tenho que continuar. Tenho que continuar. Pega uma
barra de cereal, come, mesmo sem fome. Come a segunda. Bebe água. Chega Pablo.
Os dois se entreolham, em silêncio. Ficam assim. João nitidamente cansado,
Pablo inteiro, como se caminhasse no calçadão de Copacabana. Entrega a João
dois bastões de caminhada e uma banana.
“¡Vamos!”, diz o índio e segue em frente. João vai atrás,
agora com os bastões.
Após a parte com o cascalho mais fino, começa,
verdadeiramente, a subida. Não é excepcionalmente íngreme, o que o faz pensar
sobre o quão alto ele está. É um caminho cheio de chicanas, com pedras maiores,
e não muito bem assentadas. Estão inseguras. A cada passo, João testa o peso antes
de colocar todo o corpo, com medo de escorregar. Isso faz com que ele, que já
não caminhava em uma frequência rápida, demore ainda mais. Pablo anda um pouco
e para, para esperá-lo. Não parece ansioso, mas um pouco entediado, como
sempre. Está preocupado, à sua maneira. Está, de certa forma, se sentindo
conectado com aquele homem, estranho, tão diferente de si. Acha curiosa a força
de vontade do brasileiro. Por que ele quer ver isso aqui em cima? O que tem de
tão incrível? Lembra que vinha para Huascarán desde que era muito jovem,
rapazinho. Vinha com as lhamas de uma fazenda, onde ele trabalhava como pastor.
Gostava do lugar por sua tranquilidade. Agora, tinha muita gente.
Em uma pisada errada, João quase escorrega. Muitas pedras se
soltam e caem. Ele olha para baixo e vê que já subiu bastante. Parecia que não
tinha andado quase nada, mas já tinha percorrido um bom espaço. Fica empolgado,
mas a empolgação dura pouco: olha para cima e percebe o quanto ainda tem que
percorrer. Quanto mais ele anda, mais ele descobre caminhos que ainda não
conseguia enxergar e que agora vai ter que andar. Respira fundo, toma outro
gole d’água. Resolve comer a banana. Pede para Pablo esperar um pouco. Se senta
em uma pedra ao lado da trillha. O corpo já está molhado, numa mistura de suor
com a neve que cai. Não sente frio. Parece que há uma usina dentro de si, queimando
lenha em quantidades imensas e fazendo uma caldeira ferver. Depois de comer a
banana, se sente melhor.
“Vamos?” – e parte na frente. Pablo dá um riso e vai atrás.
Não demora muito e o índio o ultrapassa novamente, quase
como se não fizesse esforço. João está sentindo os joelhos doer - “rodillas”, a palavra surge, sem
querer, em sua cabeça. Como ele se lembrou dessa palavra? Nunca estudou
verdadeiramente o espanhol, apenas no colégio, em umas aulas a que ele não
gostava de assistir. A professora era uma mulher de uns 30 e muitos anos, que
nunca tinha sido bonita, mas que estava especialmente acabada. Parecia ter
engordado recentemente, os cabelos sem vida, o rosto sem cor, os lábios
tristes, os olhos cansados. A turma implicava com ela bastante. Não era uma
turma fácil – João nunca foi de se deixar mandar, sempre organizou o grupo da
balbúrdia – mas implicavam especificamente com essa professora. Qual era o nome
dela? Um dia, a algazarra estava tão grande, que a professora, num ataque de
raiva, sem perceber o que estava fazendo gritou um “¡Carajo!”. A turma se
silenciou imediatamente, olhando para ela. Nunca um professor tinha dito um
palavrão em sala, assim. Ainda mais um palavrão de cunho sexual, e pior: que
não era dito em tom de humor, ao contrário. Os alunos olhavam a professora, que
os olhava de volta, em silêncio. Estavam todos estupefatos. Todos pensavam a
mesma coisa, aparentemente. João, ao menos, estava muito surpreendido com
muitas coisas. Entre elas, que aquela professora pudesse falar um palavrão. Que
ela fosse capaz de dizer “carajo”. Ela parecia encalhada. Mas não deveria ser.
Por outro lado, ele também pensou que essa era uma ótima oportunidade de fazer
uma denúncia contra ela para a coordenadora pedagógica. Mas ele não poderia ir
direto. Se não, a denúncia não teria tanta força. Ele era apenas um aluno
indisciplinado, com péssimas notas, que estava reclamando de uma professora,
que nunca teve qualquer reclamação. Qual era a chance de isso dar certo? O
plano surgiu inteiro em sua cabeça: ele iria falar com a Rafaela, que era amiga
da representante da turma. A Rafaela gostava dele, e ele a ignorava
completamente. Nesse caso, ele iria pedir um favor para ela. Saberia que ela
faria o que ele quisesse. Daí, ele iria dizer que eles eram menores, não
poderiam ser expostos a esse tipo de palavreado. Era hipócrita, claro. Ele mesmo
era o maior desbocado do mundo, mas valia a pena jogar com o regulamento, para
que essa professora – qual era o nome dela? – fosse tirada. Por que ele
implicava tanto com ela? A professora, depois de uns instantes em silêncio,
voltou a si: “Vocês sabem que em espanhol essa palavra que eu usei não é
palavrão, não sabem?” João ficou impressionado. Era muita cara-de-pau da
professora. Começou, muito de leve, a gostar dela. Resolveu levantar a poeira.
“Professora, mas para a gente é, sim.” O resto da turma começa a cochichar
entre si, o tumulto volta a se instalar, a professora está nitidamente perdendo
o controle de si. Começa a chorar baixinho, os olhos se avermelhando, o rosto
pegando fogo, até que ela sai de sala, batendo a porta com delicadeza. Por que
eu estou lembrando disso agora?
Os dois chegam em um momento em que a subida é bem mais íngreme.
Uma área que não dava para ser vista lá de baixo. João desperta dos seus
pensamento nessa hora. Sente-se decepcionado. Sente-se fraco. “Retroceder
nunca, render-se jamais”, lembra do filme do Van Damme. Uma porcaria. O primeiro
filme que o Van Damme tinha feito – ele tinha feito pontas em outros filmes,
mas nenhum com essa projeção. João tinha visto primeiro “O grande dragão
branco”. Em “Retroceder...”, Van Damme faz o capanga do vilão. Ele, depois, só
fez mais um vilão em toda a sua carreira. Ou em todos os outros filmes que João
acompanhou. Por que ele tinha gostado tanto de Van Damme? Gostava muito de “O
grande dragão...”. Um clássico da “Sessão da tarde”.
As pedras são mais altas que o seu próprio joelho. Pablo
pega os bastões de volta e dá a mão para puxar João nas pedras maiores. Ele diz
que esta é a pior parte e João agradece, intimamente, que ele estava
conseguindo passar pela pior parte. Já não se sentia mal. Apenas cansado. Um
cansaço imenso, que o abraçava como um urso. E como vamos voltar? Nunca se
pensa na volta, durante a ida. Lembrou desse conselho de um amigo ainda dos
tempos da faculdade, que morava longe. Para baixo todo santo ajuda. Sua mãe
sempre usava todos os ditados e bordões que pudesse usar. Gostava
especificamente dos envolvendo, direta ou indiretamente, culinária. Meter o pé na jaca. Mamão com açúcar. Sopa no mel.
Quer moleza, senta no pudim. Senta no pudim.
“¡Cuidado!”
As pedras estavam escorregadias. Parecia que ele estava
andando sobre o gelo. E, na verdade, estava mesmo. Todo o seu entorno estava
branco. A neve agora já tinha tomado tudo. Estava difícil até olhar para cima,
com a intensidade da nevasca. Nunca tinha visto tanta neve na vida. Era como se
estivesse sendo metralhado por infinitas armas que disparam flocos de gelo.
Depois da parte de pedregulho, pararam novamente para
descansar. João vê Pablo abrindo a boca e colocando a língua para fora, para
beber a água do gelo derretido. Ele faz igual. Percebe que não funciona muito
bem. Quando abaixa a cabeça, percebe que Pablo o observa rindo, rindo, que vai
crescendo até uma gargalhada. João não imagina que Pablo pudesse rir. Nem
imagina o que era assim tão engraçado, mas não se importa de ser o motivo da
piada. Após gargalhar, o índio se vira e começa a andar.
“Falta pouco?”
O índio balança a cabeça, misteriosamente.
Ao menos, planície. Os dois estão andando sobre a neve, que
afunda os tênis de João que, claro, não são impermeáveis e ficam molhados
rapidamente. Pablo se distancia, como ele não fez em nenhum momento até então e
logo João o perde de vista. A visibilidade é muito ruim. Não dá para enxergar
um palmo na frente dos olhos – João pensa na mãe, para logo a imagem cair na do
Mestre dos magos – ele sempre sumia nas horas decisivas. Seria Pablo uma versão
peruana do Mestre dos magos? Mais calado, mais taciturno, tão enigmático
quanto. Para um pouco. Para onde ir? A trilha não é clara. Sente um pânico se
instalando dentro de si. Não fique em pânico – repete para si mesmo, sem falar
nada. Não entre em pânico agora. Agora, não. Antes que ele se desesperasse,
porém, enxerga a trilha deixada pelas pegadas de Pablo. Suspira metaforicamente,
aliviado. Dá uma corridinha, para tentar alcançar Pablo e, antes de ele
perceber, já está lá: Huascarán. O lago que fica no centro, entre os dois cumes
da montanha. A visibilidade é horrível e João não consegue ver quase nada.
Pablo está lá, debaixo de uma rocha, comendo algo que João não consegue
identificar o que é. Vai para perto do índio, se senta. E olha para frente.
Fica um pouco decepcionado. É isso? O que ele via não lembrava em nada as fotos
da prima. Aquela lagoa, ali, parada, era a mesma. Mas na foto da prima parecia a
afirmação da força do mundo. O sol, o céu azul, a claridade. Emanava felicidade.
Ali, a mesma lagoa, os mesmos picos pareciam o fim – ou o início do mundo. Ou o
lugar onde o fim e o começo se encontravam. O vácuo, que puxava toda a luz do
mundo. Como se o caos ainda estivesse instalado, estivesse puxando o mundo como
o redemoinho, e após uma digestão, devolvesse um novo mundo a partir dele.
Estava tão escuro, tão nevando, tão branco. Parecia que havia um túnel que
ligaria esse mundo com um outro, um outro qualquer, um próximo mundo, um mundo
paralelo, algo diferente, outro – e a sua entrada era o epicentro da
tempestade. Era ali, logo acima do cume que estava mais longe de si. Era
naquele ponto escuro, nebuloso, indecifrável. Era um lugar onde a luz não
penetrava, onde, apesar de estar no alto, mais próximo do sol, parecia que nunca
tinha recebido um raio de quentura na vida. Era a tristeza absoluta. Era o fim,
o fim.
João está completamente encharcado, mas ainda sem frio.
Calmo como talvez nunca tenha estado. Como se ali, no fim de todas as coisas
que ele conhecia na vida, os problemas dele tivessem perdido importância. Ali,
naquele lugar horrível, que suga todas as energias do mundo, que impede do ar de
existir, ele percebeu que não havia diferença entre ele existir ou não. Diante
dessa imensidão, desse buraco negro infinito, ele se tornava completamente
desimportante. O mundo era desimportante. O mundo existia apesar dele, apesar
de todo o restante da humanidade. Não havia nada nem ninguém que pudesse
controlar aquela força, que arrastaria até o mais forte dos homens.
Essa ideia não trouxe um desespero, ou uma impotência para
João. Ao contrário: lhe deu liberdade. Lhe proporcionou uma certeza de que ele
poderia tentar fazer, ser qualquer coisa. Ele percebeu seu tamanho, sua
pequeneza, e isso o fez saber também seus limites. O jogo estava claro para
ele. Sabia que jamais sentiria essa mesma sensação novamente. Jamais
conseguiria ver o início e o fim do mundo ao mesmo tempo. E foi a única coisa
que ele queria guardar para si. Esse abismo, esse sublime, que o tomava por em
cada recanto do próprio corpo, como se fosse um líquido viscoso dentro de um
recipiente vazio com várias reentrâncias. Virou-se para Pablo e falou: “¿Vamos
volver?”
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