No primeiro - e excepcional - capítulo do novo livro de Sérgio Rodrigues, "O drible" (que será lançado na noite desta quinta-feira no Shopping Leblon), um dos personagens, que ainda não está totalmente exposto, fala sobre uma das cenas mais famosas da Copa de 1970, da Seleção, e, talvez, de toda a história do futebol: o não-gol de Pelé contra o goleiro uruguaio Mazurkiewicz, em que o nosso camisa 10 dá um drible da vaca, deixa passar a bola por um lado do guarda-balisa e chega nela pelo outro e chuta para a meta - mas erra, milimetricamente. Realmente é um lance impressionante [como se pode ver abaixo] - e a narração no livro desse lance não fica muito atrás de sua origem.
O personagem que narra o drible explica o seu fascínio por este momento específico: "Pelé desafiou Deus e perdeu. Imagine se não perdesse. Se não perdesse, nunca mais que a humanidade dormia tranquila. Pelé desafiou Deus e perdeu, mas que desafio soberbo. Esse gol que ele não fez não é só o maior momento da história do Pelé, é também o maior momento da história do futebol."
Ao ler essa frase, e todo o capítulo, fiquei pensando que, talvez, nosso maior adversário, nosso maior rival, não seja a Argentina. A Argentina talvez seja famosa hoje em dia porque teve Maradona, que os nossos vizinhos insistem em dizer que era maior que Pelé. Nossa questão com eles, tendo a sugerir, é mais de aversão, por conta do que nós consideramos como soberba. Todavia, não consigo lembrar um jogo tão importante que tenhamos disputado com eles. Já contra o Uruguai... Há, ao menos para a minha geração, três marcos históricos, três pontos que nós lembramos e somos lembrados sempre, como aqueles em que nós nos construímos. E em todos eles há ligação com o Uruguai.
O primeiro, e o mais óbvio, seria o Maracanazo. O maior estádio do mundo. Um time até então imbatível. Uma torcida de milhares de pessoas. Apenas a necessidade de um empate. E aí...
Esse primeiro momento marca o que foi chamado por Nelson Rodrigues de "complexo de vira-lata", nossa pré-história, aquele momento que nós éramos cidadãos de segunda-classe, nós não éramos nós mesmos. Ainda não tínhamos descoberto nossa brasilidade, nosso jeito de ser e agir. O Maracanazo é quase a demonstração prática de que "não vamos dar certo". Não adianta ser o melhor, temos que ganhar. O 2x1 para eles, de virada, foi, provavelmente, a maior humilhação que nossa seleção tomou.
Já o segundo momento seria exatamente esse jogo nas semifinais da Copa de 1970, o tal "maior momento da história do futebol", como descreve o personagem do Sérgio. É o ápice da superação desse complexo de inferioridade, o momento em que o futebol virou uma das nossas principais características, nossa principal afirmação, nossa identidade. O processo que tinha se iniciado em 1958, com a primeira conquista, chegava ao cume na melhor das copas, vencida pelo melhor dos times. Vencemos a partida contra o Uruguai por 3x1, em um jogo em que Pelé não marcou na copa do México. Não precisava. Já tinha se imortalizado.
Depois de 1970, o Brasil entrou num jejum de títulos mundiais que durou 24 anos. É uma fase de depressão, quase revisitando o momento "vira-lata". Era a ressaca de uma ditadura que aterrorizou os brasileiros de diversas maneiras por 21 anos. Não podíamos mais ser nós mesmos, porque isso era ser contra o que se determinou ser Brasil.
Já na década de 1990, após passar por Sarney e Collor, o Brasil começava a se reerguer. E, para ir para a Copa dos EUA, em 1994, teria que enfrentar, pela última rodada das eliminatórias exatamente ele, o nosso maior adversário, Uruguai, em uma outra oportunidade. Mas por que esse jogo deve figurar como um dos mais importantes do Brasil de todos os tempos? Talvez não seja exatamente um clássico no mesmo nível dos anteriores, já que, para começar, nem de Copa era. Mas para mim, para a minha geração, esse jogo representou exatamente a volta da esperança. Uma ideia de que podíamos, de novo, ganhar uma copa, não era mais algo tão inacreditável.
Além disso, esse jogo "final" foi aquele em que Romário, finalmente, tinha sido convocado para a seleção, após uma campanha imensa que só faltou o presidente Itamar Franco se meter. Foi o jogo que fez Parreira aceitar que Romário era imprescindível. Que ele era um supercraque indiscutível. E foi importante para ele, Romário, mostrar para o técnico que não era tão indisciplinado, como sua fama o anunciava.
A partida foi eletrizante. Para os brasileiros, principalmente. Foi o típico jogo de um time só. Era ataque contra defesa. Nossa superioridade, nossa vontade, não deixaram o drama de 43 anos antes se instalar novamente no Maracanã. Romário também contribuiu. Sempre foi um perigo, conseguindo meter uma bola no travessão logo de cara. Mas o gol, apesar da grande pressão brasileira, não saiu no primeiro tempo.
Na metade final, o gol ainda fez um pouco de doce. Mas era questão de tempo, mesmo. E saiu numa jogada que, apesar dos oficiais 1,68 m de Romário, acontecia com razoável frequência: um gol de cabeça do Baixinho. Por fim, para fechar o caixão, uma jogada que, por uma dessas coincidências que o Deus do futebol gosta de aprontar, lembra bastante o de Pelé, 23 anos antes.
Romário é lançado e sai correndo. Está cara a cara com o goleiro Siboldi, exatamente como Pelé estava com Mazurkiewicz no México. Romário joga o corpo para dar o drible da vaca, assim como Pelé havia feito, mas, 23 anos depois, o guarda-metas uruguaio já esperava essa reação e vai se encaminhando para, esquecendo a bola, fazer a falta no atacante brasileiro; Romário, por sua vez, também, já esperava a reação à sua ação, e consegue entortar o corpo para o lado oposto de onde tinha ameaçado primeiramente ir e, em vez de fazer o drible em que ele passa por um lado e a bola pelo outro do arqueiro, decide continuar seguindo a bola, driblando o goleiro pela obviedade. Assim, ele alcança a bola e, diferentemente de Pelé, faz o gol.
Poderíamos gastar páginas e mais páginas sobre a discussão do que é mais importante, o drible ou o gol. Se foi mais importante Romário ter feito um lance menos bonito, mas mais eficiente, ou a jogada Pelé foi tão perfeita que ele quase errou ao fim, só para dar um caráter de incompletude, mais ou menos como Michelangelo afirmava sobre suas esculturas que ele deixava sem terminar. Melhor que essa discussão quantitativa, é pensar como a história de um lance pôde enriquecer o outro e que, sem querer comparar os gênios da bola, estamos falando de jogadores fora-de-série, que conseguiam tomar decisões em milissegundos, "tão rápidas são essas operações mentais, chamamos de instinto", como escreve Sérgio, via seu personagem, no livro. Um privilégio para nós brasileiros que ambos tenham vestido a Canarinho.
Em nosso principal clássico, portanto, nos jogos mais marcantes - para mim - estamos vencendo. De 2 x 1. Nesse caso, porém, o juiz nunca vai apitar o fim da partida.
O personagem que narra o drible explica o seu fascínio por este momento específico: "Pelé desafiou Deus e perdeu. Imagine se não perdesse. Se não perdesse, nunca mais que a humanidade dormia tranquila. Pelé desafiou Deus e perdeu, mas que desafio soberbo. Esse gol que ele não fez não é só o maior momento da história do Pelé, é também o maior momento da história do futebol."
Ao ler essa frase, e todo o capítulo, fiquei pensando que, talvez, nosso maior adversário, nosso maior rival, não seja a Argentina. A Argentina talvez seja famosa hoje em dia porque teve Maradona, que os nossos vizinhos insistem em dizer que era maior que Pelé. Nossa questão com eles, tendo a sugerir, é mais de aversão, por conta do que nós consideramos como soberba. Todavia, não consigo lembrar um jogo tão importante que tenhamos disputado com eles. Já contra o Uruguai... Há, ao menos para a minha geração, três marcos históricos, três pontos que nós lembramos e somos lembrados sempre, como aqueles em que nós nos construímos. E em todos eles há ligação com o Uruguai.
O primeiro, e o mais óbvio, seria o Maracanazo. O maior estádio do mundo. Um time até então imbatível. Uma torcida de milhares de pessoas. Apenas a necessidade de um empate. E aí...
Esse primeiro momento marca o que foi chamado por Nelson Rodrigues de "complexo de vira-lata", nossa pré-história, aquele momento que nós éramos cidadãos de segunda-classe, nós não éramos nós mesmos. Ainda não tínhamos descoberto nossa brasilidade, nosso jeito de ser e agir. O Maracanazo é quase a demonstração prática de que "não vamos dar certo". Não adianta ser o melhor, temos que ganhar. O 2x1 para eles, de virada, foi, provavelmente, a maior humilhação que nossa seleção tomou.
Já o segundo momento seria exatamente esse jogo nas semifinais da Copa de 1970, o tal "maior momento da história do futebol", como descreve o personagem do Sérgio. É o ápice da superação desse complexo de inferioridade, o momento em que o futebol virou uma das nossas principais características, nossa principal afirmação, nossa identidade. O processo que tinha se iniciado em 1958, com a primeira conquista, chegava ao cume na melhor das copas, vencida pelo melhor dos times. Vencemos a partida contra o Uruguai por 3x1, em um jogo em que Pelé não marcou na copa do México. Não precisava. Já tinha se imortalizado.
Depois de 1970, o Brasil entrou num jejum de títulos mundiais que durou 24 anos. É uma fase de depressão, quase revisitando o momento "vira-lata". Era a ressaca de uma ditadura que aterrorizou os brasileiros de diversas maneiras por 21 anos. Não podíamos mais ser nós mesmos, porque isso era ser contra o que se determinou ser Brasil.
Já na década de 1990, após passar por Sarney e Collor, o Brasil começava a se reerguer. E, para ir para a Copa dos EUA, em 1994, teria que enfrentar, pela última rodada das eliminatórias exatamente ele, o nosso maior adversário, Uruguai, em uma outra oportunidade. Mas por que esse jogo deve figurar como um dos mais importantes do Brasil de todos os tempos? Talvez não seja exatamente um clássico no mesmo nível dos anteriores, já que, para começar, nem de Copa era. Mas para mim, para a minha geração, esse jogo representou exatamente a volta da esperança. Uma ideia de que podíamos, de novo, ganhar uma copa, não era mais algo tão inacreditável.
Além disso, esse jogo "final" foi aquele em que Romário, finalmente, tinha sido convocado para a seleção, após uma campanha imensa que só faltou o presidente Itamar Franco se meter. Foi o jogo que fez Parreira aceitar que Romário era imprescindível. Que ele era um supercraque indiscutível. E foi importante para ele, Romário, mostrar para o técnico que não era tão indisciplinado, como sua fama o anunciava.
A partida foi eletrizante. Para os brasileiros, principalmente. Foi o típico jogo de um time só. Era ataque contra defesa. Nossa superioridade, nossa vontade, não deixaram o drama de 43 anos antes se instalar novamente no Maracanã. Romário também contribuiu. Sempre foi um perigo, conseguindo meter uma bola no travessão logo de cara. Mas o gol, apesar da grande pressão brasileira, não saiu no primeiro tempo.
Na metade final, o gol ainda fez um pouco de doce. Mas era questão de tempo, mesmo. E saiu numa jogada que, apesar dos oficiais 1,68 m de Romário, acontecia com razoável frequência: um gol de cabeça do Baixinho. Por fim, para fechar o caixão, uma jogada que, por uma dessas coincidências que o Deus do futebol gosta de aprontar, lembra bastante o de Pelé, 23 anos antes.
Romário é lançado e sai correndo. Está cara a cara com o goleiro Siboldi, exatamente como Pelé estava com Mazurkiewicz no México. Romário joga o corpo para dar o drible da vaca, assim como Pelé havia feito, mas, 23 anos depois, o guarda-metas uruguaio já esperava essa reação e vai se encaminhando para, esquecendo a bola, fazer a falta no atacante brasileiro; Romário, por sua vez, também, já esperava a reação à sua ação, e consegue entortar o corpo para o lado oposto de onde tinha ameaçado primeiramente ir e, em vez de fazer o drible em que ele passa por um lado e a bola pelo outro do arqueiro, decide continuar seguindo a bola, driblando o goleiro pela obviedade. Assim, ele alcança a bola e, diferentemente de Pelé, faz o gol.
Poderíamos gastar páginas e mais páginas sobre a discussão do que é mais importante, o drible ou o gol. Se foi mais importante Romário ter feito um lance menos bonito, mas mais eficiente, ou a jogada Pelé foi tão perfeita que ele quase errou ao fim, só para dar um caráter de incompletude, mais ou menos como Michelangelo afirmava sobre suas esculturas que ele deixava sem terminar. Melhor que essa discussão quantitativa, é pensar como a história de um lance pôde enriquecer o outro e que, sem querer comparar os gênios da bola, estamos falando de jogadores fora-de-série, que conseguiam tomar decisões em milissegundos, "tão rápidas são essas operações mentais, chamamos de instinto", como escreve Sérgio, via seu personagem, no livro. Um privilégio para nós brasileiros que ambos tenham vestido a Canarinho.
Em nosso principal clássico, portanto, nos jogos mais marcantes - para mim - estamos vencendo. De 2 x 1. Nesse caso, porém, o juiz nunca vai apitar o fim da partida.
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