O elevador apertado e antigo do prédio na Rua Prado Júnior o
deixava ainda mais desconfortável. Era como se ficasse mais evidente que ele
não tinha onde se esconder. Ficava mais claro que não havia rota de fuga. Se
alguém entrasse ali, o enxergaria. Não havia dúvidas. E ele não teria o que
dizer, como explicar que ele estava em um prédio em uma rua conhecida por ter
puteiros em todos os quitinetes? Nem adiantava tentar começar a dizer que ele
não estava ali por isso, para isso, porque ele também não poderia explicar –
não tinha como – o que ele estava fazendo, sem cair também no julgamento moral
das pessoas. Era errado, era ilegal. Ficava exposto. Ele poderia ir preso.
Nilton preferia quando tinha que ir aos morros. Era, ao menos, e por um lado,
mais discreto. Apesar de ficar claro para os moradores da favela o que ele
estava fazendo ali – já que ele claramente não pertencia ao ambiente – ao menos
era improvável – ele sempre imaginou – que encontrasse um conhecido.
Bem, ele achava isso até que o improvável, que sempre dá um
jeito de acontecer, aconteceu. Era uma quarta, de noite, estava quente do verão
mais quente. Desesperado, em casa, numa ansiedade que não tinha televisão,
filme ou caminhada na rua aleatoriamente que diminuísse, que ele subiu o morro.
Ele precisava de um pouco, só um pouco nada demais. E aí, ele encontrou a mais
improvável das pessoas na mais improvável das situações – que, depois, se
mostrou ainda mais improvável. Era a sua
vizinha de porta: uma senhorinha de cabelos azul-claro, que, no prédio,
aparentava ter dificuldade de se locomover e, lá no morro, se esgueirava como
uma gatuna profissional. Pelo que Nilton pôde perceber, ela também estava
tentando se esconder, passar despercebida num ambiente que não era fácil ser
discreto. Os dois se viram, fingiram que não se viram, depois admitiram que se
viram, e se cumprimentaram, mas não conversaram na hora. Ele subiu, ela desceu,
os dois sabiam o que o outro fazia ali, mas passaram em branco.
Meses depois, foi ela, dona Lourdes, quem lhe indicou o
endereço de Copacabana, esse endereço, deste elevador que ele sobe agora, assim
que começaram as pacificações. Foi ela quem tomou a iniciativa do diálogo,
quebrou a falsa moralidade com delicadeza e cuidado, e colocou debaixo da porta
de Nilton um bilhete perguntando se ele já sabia onde poderia comprar mais. À
negativa de Nilton, ela dizia que já estava velha para continuar se expondo
assim e pedia para ele lhe fazer o obséquio de, caso ela lhe entregasse um novo
contato, comprar para ela também. Ela lhe entregaria, sempre que necessário,
uma lista de compras. Ele, com uma espécie mais sutil de pena, e porque estava
sem qualquer contato – e a fissura estava aumentando fortemente –, aquiesceu.
Subia no elevador quase rezando para que ninguém conhecido
entrasse ali. Morava perto, no Flamengo, e não seria improvável que alguém
pudesse passar por ali. Mas... o que essa outra pessoa estaria fazendo ali?,
pensou e isso lhe deu uma espécie de segurança. Por que alguém conhecido
estaria subindo um elevador na Prado Júnior? Ao mesmo tempo que esse raciocínio
o deixou mais aliviado, pensou que ele poderia ser visto na saída do prédio.
Alguém poderia passar em frente. Não adiantava. Nilton estava no grau máximo da
fissura: a neurose. Qualquer barulho atraía sua atenção. Qualquer movimento em
falso. Imaginou que suas pupilas estivessem dilatadas como as de um gato. Seu
coração, em disparada. Décimo-primeiro andar. O elevador faz um “plim” e ele
empurra a porta para respirar. Sem perceber, tinha segurado a respiração por
todo o trajeto, como se o ar ali dentro fosse contaminado. Era sempre assim
quando ia “visitar” o Beto. Sempre ficava nervoso. Não melhorava em nada o fato
de metade das lâmpadas do corredor estarem queimadas. O ambiente lúgubre o
lembrava que ele estava fazendo algo errado. Que ele poderia ser pego. Que ele
deveria se envergonhar.
Um dia encontrou um galã de novelas no hall de entrada do
prédio. Um desses de quase 50 anos, que fazem os protagonistas, tem uma família
feliz e que você nunca iria desconfiar de encontrar num ambiente como esse. Mas
ele estava. E agia como se nada fosse estranho. Quando chegou o elevador ao
térreo, Nilton ainda tentou manter a esportiva, entrar no jogo teatral do ator
e perguntou se ele – o ator – não iria subir. O ator, sorrindo aquele sorriso
que ele já tinha visto num comercial de banda larga, disse que não, que estava
bem ali. Certamente também ficou preocupado. Certamente. Será? E se alguém
tirasse uma foto dele no prédio? Mas não poderiam associar ele ao prédio. Não
dava para enquadrar ele e o prédio. E se desse, ele – o prédio – ficaria muito
pequeno. Além disso, o prédio não tem nada demais, exteriormente: como provar que
ele estava na Prado Júnior? Enfim, enfim, enfim...
Tocou a campainha e Beto não demorou a recebê-lo.
“Niltinho! Quanto tempo! Tá querendo me deixar pobre? Entra,
entra, não fica aí na porta que a gente nem consegue conversar direito.”
Beto era assim, uma tempestade de palavras. Um sujeito
estranhamente extrovertido, principalmente para um negócio que, em tese, exigia
perfis menos públicos.
“Oi, Beto” – diz apenas, Nilton, quieto, tentando aparecer o
mínimo possível.
“Diz aí, Niltinho, quer uma água, uma cerveja, uma provinha,
alguma coisa?” – dá uma pausa, meio forçada, para fazer a sua piada de sempre: “Uma
maçã? Rá!” – diz e dá a mesma gargalhada de sempre.
“Não, não, Beto, não vou me demorar” – diz apressado Nilton,
na tentativa de parar aquele sorriso exagerado.
“Senta aí. Take it
easy, tá?” – Beto mostra do sofá – “Mi
casa, su casa. Se você não se sentir à vontade aqui, estou ferrado. Não vou
me sentir bem” – fala e, de repente, está num monólogo: “Nilton, um dos meus melhores clientes, Ce n’est pas possible!” – e voltando a
falar com Nilton: “Aqui, Niltinho, é tutti
buona gente.”
Nilton ficava extremamente entediado com essa exibição
gratuita de Beto. Ficou em silêncio, esperando que ele acabasse, e logo Beto
foi ao assunto.
“Então, Beto, já que você não está muito para conversa hoje,
vamos direto ao assunto: o que vai querer?”
Nilton mostra a lista que dona Lourdes lhe havia entregue,
num papel de alta gramatura, dentro de um envelope que parecia, quase, de
casamento.
“Essa dona Lourdes... Ela é mó barato, né, Niltinho?”
“Eu... eu não a conheço direito. Ela é minha vizinha, mas
nós nunca falamos muito.”
“Sugiro você filar uma das pamonhas que ela faz. São
divinas. Ela é do interior de São Paulo. Veio para o Rio quando o marido foi
transferido. Desde que o marido morreu, ela virou minha cliente. Cliente
preferencial. Sempre pede do melhor. E você? O que vai ser hoje?”
“Eu... eu não sei direito. To meio perdido. O que você me
deu na última vez não bateu direito. Fiquei muito agressivo, muito
desorientado...”
“Nietzsche? Poisé. Ele tem esses efeitos colaterais, mesmo.
Você começa a achar que é o verdadeiro super-homem. Acha que o mundo inteiro
tem que se curvar à sua vontade. É complicado. E cria-se um paradoxo: é como se
devêssemos tomar doses muito homeopáticas, mas aí, ao ser mais cuidadoso, o
efeito de Nietzsche não seria o efeito de Nietzsche: para ser Nietzsche, não
pode haver meio termo. É uma bomba.”
“Fiquei muito inseguro, como um adolescente.”
“Imagino, imagino.”
“O que a dona Lourdes pediu dessa vez?”
“Dona Lourdes é uma senhora mais velha, né, gosta dos
grandes clássicos: Sócrates, Platão e Aristóteles. Quatro de Sócrates-Platão [os dois vêm juntos, numa embalagem dois em um] e quatro de Aristóteles.”
“Quatro de cada? Quatro?”
“Ela é uma mulher forte, e com bastante tempo livre.”
“Dá até um pouco de inveja.”
“Quer tentar um deles? Tenho aqui um pedacinho de Sócrates –
eu considero o máximo, mesmo que tenha algumas ressalvas. Elegante, cínico,
ácido, afiado. Para aqueles dias em que você precisa abalar numa balada.”
“Queria algo mais calmo...”
“Hum, mais calmo... aqui... vai ser complicado... mas,
deixe-me ver... Que tal, então, algo completamente diferente do de sempre? Que
tal um santo Agostinho? Hein? Se não, se achar muito radical, ao menos um
escolástico? E aí não temos como fugir: teria que ser são Tomás de Aquino.
Hein, que tal? Dão sempre segurança, certeza, verdades, um porto para atracar
quando o mar tá tão revolto. Sai muito, sabia? Por mais que, hoje, eles tenham
ficado fora de moda, que as pessoas, em geral, não falem muito deles, ainda
circulam bem. E, eu acrescentaria: acho que tendem a crescer mais. Aliás, o que
acha de Kierkegaard? Segurança, quase contemporâneo, quase vintage. É cool ser
retrô, hoje em dia.”
“Acho que não dá... Me disseram que há um problema grave com
eles...”
“Que problema?”
“Um problema grave... íntimo...”
“Ah, a impotência? Bem, é verdade. Eles não são muito,
assim, potentes. E você, que vem de Nietzsche... é melhor não, mesmo.”
“Descartes, me falaram que Descartes é legal.”
“Hum... eu acho que é muito... como direi... cerebral. Você
vai ficar lá, parado, viajando, pensando, dentro da sua cabeça, e não vai fazer
nada mais, e se esquece que há um mundo aí fora.” [Silêncio.] “Já sei: Kant!”
“Quem?”
“Kant. Ele vai te mostrar o que você sabe – e o que você não
pode saber. E a partir daí, vai ficar muito claro para você o que é
categoricamente imperativo.”
“Pô, gostei, hein.”
“Só tem um problema.”
“Qual?”
“Ele é muito crítico.”
“Voltamos à estaca zero.”
Toca o telefone. Beto se levanta.
“Niltinho, dá um minuto? Fica aqui com o cardápio, que eu já
volto.”
Nilton começa a ler. Apesar de falastrão, Beto era totalmente organizado. Parecia
que Nilton estava fora do país. Galileu: Corpo científico, notas de empirismo,
leve traço de experiências em geral, ceticismo profundo, e alto grau de dificuldade
em lidar com questões ligadas à autoridade. Heidegger: sentimentos controversos
com relação a instituições infinitamente deploráveis, sensação de retorno a um
passado remoto, mergulho em busca incessante pelo Ser, raspas do tacho da metafísica,
pensamentos autorreferentes sobre o pensamento. Possibilidade de bad trip.
Marx: sociabilidade extremada, toques revolucionários de... “Não.” Diógenes:
aumento de cinismo a níveis pré-pós-modernidade, antissociablidade exagerada,
busca em si pelo homem verdadeiro... Volta Beto.
“Niltinho, é isso aqui, não tenho dúvida” – e lhe entrega o
pacote.
“Baruch Spinoza” – lê Nilton.
“Isso. Origem na península ibérica – alguns dizem Portugal,
outros Espanha, quem vai saber de verdade? – mas desenvolvido na Holanda. Onde
é o melhor para se crescer que a Holanda, hein? Foi proibido entre os judeus, era
mal-visto pelos cristão, mas era um gente fina. É ter contato com ele e sentir
que tudo faz parte do todo.”
“Interessante... Mas, cara... eu não sei bem o que eu quero...”
“Aí, complica, Niltinho, aí, complica...”
“Faz o seguinte: me vê 200 gramas daquele Nietzsche, 200
desse Baruch, 200 do Diógenes, gostei dele...”
“... Ótimo, Diógenes é pouco conhecido, mas ótimo. Muitas
boas histórias...”
“... E 200 do Kant.”
“Faz o seguinte, leva mais 200 do Heráclito, que está saindo
muito pouco nesses dias, que eu te faço um abatimento. E você sabe: aqui, tudo é original, direto da fonte. Nada batizado.”
“Demorô.”
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