sábado, 9 de julho de 2011

Bergman como fã de Allen

Na reportagem do Lichote do "Segundo Caderno" hoje, há um trecho que passa quase despercebido, em meio às revelações de que o mestre Ingmar Bergman assistia a "Duro de matar" e outros filmes longe de seu universo típico. Na entrevista com outro sueco que conheceu de perto Bergman, há a informação que o cineasta autor de "Morangos silvestres" gostava de Woody Allen. Chamou-me* a atenção pelo motivo óbvio:  normalmente vemos declarações elogiosas no sentido inverso: do nova-iorquino ao nórdico. Esse novo caminho das frases favoráveis, portanto, são raras, menos conhecidas, ou até novidades. E também por uma questão pessoal: já escrevi uma monografia exatamente comparando as influências de Bergman em Allen.

Não quero dizer que o sueco era influenciado por Allen - mas, quando é que podemos controlar as influências? Como dizer onde o que é você termina e começa o outro? De qualquer maneira, não é essa intenção, apesar de achar que seria bem interessante pensar sob esse viés, se não na prática, ao mesmo na teoria: como seria uma relação entre pupilo e mestre em que houvesse a construção criativa de ambos os lados?

De qualquer maneira, a situação me lembrou de minha monografia, feita para conclusão da segunda faculdade, de jornalismo, chamada de "Woody Allen: a paródia do cinema de Bergman". Resumidamente, digo que a paródia é a [ou uma] proposta original [repare na contradição dos termos] dos artistas americanos [do norte, do centro e do sul]. A paródia, a "arte de segunda-mão", aquela que sabe que não produz o original, que se sabe periférica, que se sabe como regurgitante, apenas. Pense em Oswald de Andrade, que está em voga, por exemplo.

No livro "Woody Allen por Woody Allen", longamente citado no meu trabalho, o jornalista - sueco e amigo de Bergman - Stig Björkman faz uma longa entrevista com o nova-iorquino sobre a sua produção artística. Talvez o melhor momento para demonstrar como os dois se admiravam tão intensamente está numa passagem descrita por Allen do primeiro e - aparentemente, ou até o momento - único encontro dos dois.


Nunca tive contato com ele (Bergman) até filmar “Manhattan”. Liv Ullmann, que eu já tinha encontrado e sabia o quanto eu gostava de Bergman,, me avisou que ele estaria na cidade dentro de uma semana. Sugeriu que ela, eu, Bergman e a mulher dele jantássemos juntos. Liv me assegurou que ele também gostaria de se encontrar comigo. Assim, lá fui eu ao apartamento do hotel onde Bergman estava e jantamos. Tivemos uma conversa longa, bastante longa, que foi muito agradável. Conversamos sobre muitas, muitas coisas. Surpreendeu-me o fato de muitas coisas corriqueiras que me aconteceram também terem acontecido com ele, exatamente na mesma época. E ficamos conversando. Porém, na última vez que fui a Estocolmo, não pude estar com ele porque estava com as crianças. Contudo tivemos uma longa conversa pelo telefone que durou, provavelmente, umas duas horas. Ele tem uma conversa muito divertida. Mantivemos vários conversas telefônicas como esta, mas a única vez que tive contato, contato pessoal com ele, foi naquela noite no hotel em Nova York, aliás, uma noite das mais agradáveis. Engraçado como tantas coisas tolas acontecem com todos os cineastas, creio que é algo universal. Ele me contou que quando um filme dele entra em cartaz, o pessoal da produção telefona, imediatamente, contando tudo. E dizem: “Olha, a primeira exibição estava repleta e podemos predizer que o filme vai render mais dinheiro do que qualquer outro que você fez antes”. Isto também acontece comigo. As previsões são as mesmas. Tudo parece fantástico, mas depois, em cinco dias, todas as previsões otimistas desaparecem. Com ele é a mesma coisa (Björkman, 1992: 88).


O que é bom e sempre foi bom para mim sobre as criações dos dois - sem me alongar mais nesse já longo texto - é a capacidade de produzir filmes que são facilmente entendidos por qualquer pessoa. Talvez o espectador menos acostumado com o cinema mais calmo e contemplativo tenha dificuldades de se manter parado, apenas olhando todas as cenas e diálogos de Bergman, por exemplo. Ou não ache engraçado as piadas de Allen. Mas os dois não são artistas herméticos, que dificultam a entrada em seus mundos. Lá dentro, você pode se embrenhar e ir se aprofundando e captando detalhes e comentários mais e mais complexos. Mas a primeira leitura, aquela que podemos ter despreocupadamente, eles permitem a todos. A questão é que, após vê-los, essa despreocupação desaparece.

* essa construção me lembrou a primeira frase de "Moby Dick", sempre citada como uma das melhores da literatura em língua inglesa, mas que cuja tradução sempre me intrigou. A sentença é simples e qualquer pessoa com o menor domínio do inglês consegue entender: "Call me Ishmael". Agora, como traduzir isso? "Call me", sem considerar o contexto, pode ser tanto "Me chamo" ou "Me chamam". O problema é que a expressão começa a frase: devemos colocar o pronome antes, então, e desrespeitar uma das regras mais controversas da ortografia da língua portuguesa? E, ao colocar o pronome no lugar "correto" não estaria optando por uma "formalidade", que não é nem de perto o tom de todo o romance? Bom, deixo as questões sem resposta, propositalmente - porque não as tenho.

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