domingo, 4 de maio de 2014

'Festa' - in 'Desironia'

Qual é a vantagem de se escrever mal? Poder escrever o que quiser, sem se importar com os eventuais e exigentes leitores. Aproveito essa minha sorte para recomeçar a contar uma ficção, que foi iniciada há anos, ou muito antes disso, porque eu preciso terminá-la. Esse trecho abaixo é um pedaço do capítulo chamado "Festa". Para ler outros trechos, clique aqui.

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Que difícil contar uma história que dói por dentro só de revisitá-la. Será que eu vou ter forças para continuar?

Me deixe, então, antes de continuar, me deixe acrescentar aqui uma ideia para que a fumaça camufle um pouco o caminho principal: quando eu era criança, pequeno, menos de cinco anos. No máximo cinco anos... Não tenho essas lembranças tão frequentemente, mas estava lendo um livro que me disse uma frase que me lembrou disso. Estava mexendo na minha biblioteca e li essa frase, que eu não anotei, que eu perdi para sempre, que voltou para o silêncio dentro de um livro perdido no meio de outros. A frase desencadeou um pensamento em mim, me trouxe uma memória, e essa lembrança me fez encadear raciocínios, não sei se exatamente racionais, mas com alguma lógica, não necessariamente mundana, não necessariamente. Humana... Quando era pequeno... eu sempre me via, num futuro imaginado, utópico, sempre me projetava como um homem que teria contato com os grandes eventos – do planeta, do país, da minha rua, não importa, eram os grandes eventos, aqueles por que somos lembrados, aqueles que introduzem pontos-parágrafos, ou ao menos pontos, na história da humanidade – eu estaria presente nesses eventos, em eventos desse porte, em, ao menos, um evento assim, eu seria uma figura comum nesses momentos mágicos que são fotografados pela memória coletiva, que se torna referência para o futuro, que é lembrado, ensinado, repetido, decorado, eu estaria lá, seria uma testemunha ocular, mas, curiosa ou lamentavelmente, eu jamais seria – eu jamais me via como o principal ator desse teatro da vida real. Jamais. Seria o segundo em comando, o conselheiro, aquele que ajuda, que sempre recebe os agradecimentos, jamais quem recebe o prêmio. Eu seria o Robin, o doutor Watson, o Magro, o Dedé. Talvez porque eu sempre fui criado numa relação de orgulho e cobrança, bem a cara das forças armadas, que o mima quando você tem algum resultado positivo, mas corta qualquer esperança de se pensar fora da caserna, quiçá substituir o regime interno, ou acabar com a hierarquia. Não importa os motivos, ambas as atitudes – o mimo e a cobrança – podem ser, caso não acompanhados de perto, bastante decepcionantes. No meu caso, eu apenas os esqueci. Os esqueci para hoje, por meio dessa frase que eu não registrei, de um livro que eu perdi, ela, essa ideia, esse pensamento infantil brotou novamente: eu seria o segundo, o número dois de uma liderança. E o que foi a minha vida, se não isso? E o que é esse meu esforço, praticamente inútil, de escrever essa história em que sou no máximo um efeito colateral? E o que é a prática de escrever ? (Foi isso que eu pensei?) O que é escrever senão apenas diminuir a sua própria vida para contar a de outros? Você se tornar o número 2 – ou o número mil, pouco importa a diferença numérica – de um personagem notável – real, imaginário, isso fica a critério de qualquer um leitor. Você se torna o seu Sancho Pança, são João Batista, o escudeiro, o antagonista, o escada, aquele que está lá, mas que a sua presença não é essencial. Você é apenas um privilegiado. E, tendo tido esse privilégio, eu tento, talvez de maneira vã, reproduzir para o máximo de pessoas possível. Talvez seja inútil, porque eu posso me tornar, numa hipótese otimista, aquele livro que fica na livraria até um ser qualquer tropeça nele, o abre, lê uma frase boba, que o faz pensar em tantas coisas, que esse ser largue o livro de qualquer jeito e corra para um lugar para anotar o turbilhão que lhe invadiu a cabeça. Mas essa é a hipótese otimista. A verdade é que somos apenas coadjuvantes, quando muito, de um filme sem diretor, caótico, em que todos pensam que são protagonistas. Essa é uma metáfora batida, mas, vá lá, pode ser reutilizada, após uma bela lavada, uma adaptação aos nossos tempos em que o ego cada vez é maior, e a nossa representatividade beira a de extras num filme de animais da sessão da tarde.

Ah, as memórias. São peças de uma engrenagem que é puxada todas as vezes que um gatilho é disparado – e esse gatilho pode ser disparado por qualquer razão, qualquer dos nossos sentidos, qualquer citação, ou mesmo outra memória. Ela pode – e deve ser adestrada – mas jamais é inteiramente domada. Ela sempre tem espaços escuros, buracos negros onde guardamos o lixo, aquilo que consideramos, por algum momento, que não precisaremos no futuro, ou aquilo que não queremos ver novamente, ou aquilo que, de tão confortável, não merece fundir uma placa alegórica, que é onde as suas informações são guardadas. É nesse buraco-negro que está a maior parte de nossas memórias. É esse buraco-negro que é a regra da nossa memória, não a sua exceção. É esse buraco-negro que chupa o restante das nossas memórias, aquelas que foram momentaneamente iluminadas, para dentro, logo em seguida de serem utilizadas. E, essas partículas de lembrança, que ficam sempre em suspensão, que flutuam, como no espaço escuro lá fora, porque não há qualquer gravidade grave o suficiente para determinar um caminho óbvio, se perdem, ficam perdidas, como palavras dentro de um livro esquecido na prateleira mais alta da estante de uma empoeirada biblioteca trancada a chave, que sumiu. A memória armazena essas partículas e, quando o nosso processador precisa delas, joga luz para um determinado lado da memória, como se elas pudessem se agrupar automaticamente. Às vezes enxerga o que não quer. Às vezes, percebe associações surpreendentes. Às vezes, descobre bastante sobre si mesmo.

Não terá jeito. Terei que falar sobre Luísa. Tenho que admitir que essa minha postergação, essa minha justificativa, é apenas metade da verdade. A outra metade, uma metade que é mais pessoal, menos social, demonstra o quanto eu era naquela época. Terei que falar um pouco sobre mim – e isso não estava nos meus planos anteriores. Mas parece que será importante - para eles. Como se eu fosse, de alguma forma, o reflexo, eu tivesse algumas marcas dos outros personagens, esses sim, os protagonistas, em mim. Como se eu fosse a forma que fundasse, fundisse todos, que eu fosse o diapasão das suas vozes, que eu fosse o observador, o que registra, o sismógrafo, aquele que fica espantado e decide, porque percebe a exceção, deixar um relato para que as pessoas no futuro saibam – saibam, apenas saibam, saber, na sua mais simples forma.

Parece que estou dando voltas, voltas e jamais aumentando o meu raio. Não pense que eu escrevo isso tudo cronologicamente. Não consigo. Não traço uma linha depois da outra, como um relógio que só anda para a frente. Eu escrevo como a vida caminha: desordenadamente.

Mas... escrever sobre mim? Não vou nem prosseguir nessa questão, nem me delongar, vou enunciar a minha proposta: ser o mais simples possível. Me ater aos fatos – essas substâncias meio molengas, meio pegajosas, que se adaptam para entrar em qualquer espaço, tão maleáveis a ponto de não ter uma forma predeterminável. Ou aos fatos que eu me lembre. Ou aos fatos, do jeito que eu me lembre.

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