Logo nas primeiras linhas de "Human condition" (1958), talvez seu livro mais famoso, Hannah Arendt descreve o lançamento do Sputnik, o satélite russo que foi conhecido como o primeiro objeto feito pelo homem a entrar propositalmente na órbita da Terra, em 1957. Argumenta que esse evento, que seria o mais importante da humanidade, mais importante até que a fissão atômica, não teria sido recebido com alegria por conta da disputa política da guerra fria, mas com uma ideia de salvação do planeta - no sentido de o homem se salvar deste planeta - como se, na verdade, estivéssemos aprisionados à Terra. E essa reação, diz ela, não respeitaria cores ideológicas, acontecendo tanto entre os americanos-capitalistas, como entre os soviéticos-comunistas.
Nove anos depois do livro de Arendt, seu principal mentor, o intragável Martin Heidegger, muito provavelmente sem lê-la, faz um comentário sobre o tema de maneira que lembra a sua ex-pupila - o "enraizamento" era um de seus principais temas - na famosa entrevista para Der Spiegel: "Eu não sei se não os assusta - seja como for, a mim assusta-me - ver agora as fotografias da Terra feitas da Lua. Não é preciso nenhuma bomba atômica: o desenraizamento do homem já está aí. Nós já só temos relações puramente técnicas. Já não é na Terra que o homem hoje vive".
O repórter, então, retruca: "E quem sabe se o homem está destinado a estar nesta Terra? Seria pensável que o homem não estivesse destinado mesmo a coisa nenhuma. E também se poderia ver sempre como uma possibilidade do homem o lançar-se a outros planetas, a partir desta Terra. Com certeza que já não estamos longe disso. Onde é que está escrito, afinal, que o sítio do homem seja este?"
Mas Heidegger, como sempre, não dá o braço a torcer: "Se estou bem informado, de acordo com a nossa experiência e história humanas, tudo o que é essencial, tudo o que é grandeza surgiu do homem ter uma pátria e estar enraizado numa tradição. A literatura contemporânea, por exemplo, é excessivamente destrutiva."
Há um componente claramente conservador nas palavras de Heidegger. Vide a crítica à literatura contemporânea, que não respeitaria exatamente essa ligação com uma nação. Um tom que pode ser interpretado como de quem quer interromper o caminho do progresso, e retornar a um mundo anterior a isso, não necessariamente idílico, mas que ao menos em que haja uma ligação maior com a terra e com a Terra.
Qual foi a minha surpresa, portanto, quando começaram a anunciar Interstellar, o novo filme de Christopher Nolan, com a frase dita pelo personagem de Matthew McConaughey, Cooper:“Humanity was born on earth, but it was never meant to die here”. Não poderia estar mais em desacordo com Heidegger.
Se o filme peca excessivamente por seu caráter meloso, com um final "feliz" totalmente irreal, não podemos tirar o valor de suas cenas de ação - aquela onda no planeta água é de impressionar. Mas a minha proposta aqui não é analisar o filme, em si, mas pensar além dele, a partir da premissa em que ele se baseia: o homem deveria sair da Terra? Devemos desistir deste planeta e procurar outro? Nosso instinto de sobrevivência nos leva a abandonar tudo e tentar recomeçar do zero?
Contrariando Heidegger, podemos imaginar que mesmo que o homem não tenha produzido nada de grandioso - aos olhos dele - sem ligação com as suas raízes, isso não assegura uma regra geral e irrestrita. Não há nada que nos garanta essa verdade, como mostra o repórter. E, mesmo se fosse o caso, poderíamos estabelecer raízes em outros destinos. Os escritores que escreveram em outras línguas que não as suas primeiras, Nabokov, Conrad, Beckett, etc., dão argumentos para se pensar assim - apesar de Heidegger juntar toda a literatura do seu tempo no mesmo saco da "destruição".
Portanto, isso daria respaldo para a pergunta do repórter e a resposta de Interstellar a Heidegger: precisamos sobreviver antes de viver. Se essa Terra não nos dá mais condições de nos enraizarmos, que procuremos outra terra para vivermos. O problema do filme, me parece, e aí se juntam Heidegger e Cooper, é propor uma saída em que o homem - e não qualquer homem, mas o americano médio ou o Dasein cotidiano - isoladamente está no centro do mundo, das decisões.
Interstellar deixa algumas questões que eles dão for granted, como se diz lá na terra deles, ou, em língua de cristão, dão como certo, óbvio, não são respondidas. A primeira e mais urgente: quem garante que todo mundo quer sair da Terra? Tal pergunta se desdobra em muitas outras: quem vai sair da Terra? Todo mundo? Qual é o critério para essa saída? E quem quiser ficar? Este vai ser abandonado ou terá ainda acesso a recursos? O personagem de Michael Caine chega a dizer em certo momento que eles deveriam esconder as pesquisas porque não seriam aprovadas pela opinião pública. Então, eles estariam acima da opinião pública - quem os colocou lá?
Neste mundo criado pelos irmãos Nolan, a única saída da crise ambiental é, literalmente, sair da Terra. Ou, pior, recomeçar do zero a civilização em outro lugar. E novamente me ficou a questão: Por quê? Por que recomeçar? O que nos faz tão imprescindíveis no universo que não podemos simplesmente desaparecer? O sentimento de preservação é o da espécie ou o do indivíduo?
Sabe-se que a pior forma de se criticar um filme é propor saídas que a obra não assumiu, fazer perguntas que o longa não se propõe a responder. O filme é - ou deveria ser - uma obra fechada que compramos com as suas qualidades e seus defeitos. Se quisermos algo diferente, deveríamos então arregaçarmos nossas mangas e fazermos nós mesmos a carpintaria. Portanto, ou eu aceitaria esse mundo de Nolan, com essas regras e suas lógicas, e isso não é garantia para gostar da obra, ou eu poderia também partir para a minha própria criação.
Mas fiquei com a impressão, e isso não é exatamente uma escolha, de que Interstellar dá bastante razão às preocupações de Hannah Arendt. O filme me está dizendo que, bem, o homem é maior que a Terra. Este lugar azul não conseguiu aguentar os grandes sonhos de sua mais famosa criação e pediu concordata. Temos que nos livrar daqui para poder continuar a sonhar, a viver como sempre vivemos, sem mudar nossos hábitos. E quando destruirmos outro planeta, mudamos novamente. É uma possibilidade moralmente inócua.
Ao fim, parece que Interstellar deixa clara sua proposta inicial: somos nômades. Sempre fomos. Sempre seremos. O mundo deve se adaptar a mim, não o inverso. Assim, joga fora toda a nossa História, desde que optamos por nos estabelecer em aldeias, povoados, cidades, países - o que novamente não é um problema em si. Mas deixa uma outra pergunta ao fim: é possível dar um boot na humanidade? É possível viver de outra forma? Esperemos pela continuação.
Nove anos depois do livro de Arendt, seu principal mentor, o intragável Martin Heidegger, muito provavelmente sem lê-la, faz um comentário sobre o tema de maneira que lembra a sua ex-pupila - o "enraizamento" era um de seus principais temas - na famosa entrevista para Der Spiegel: "Eu não sei se não os assusta - seja como for, a mim assusta-me - ver agora as fotografias da Terra feitas da Lua. Não é preciso nenhuma bomba atômica: o desenraizamento do homem já está aí. Nós já só temos relações puramente técnicas. Já não é na Terra que o homem hoje vive".
O repórter, então, retruca: "E quem sabe se o homem está destinado a estar nesta Terra? Seria pensável que o homem não estivesse destinado mesmo a coisa nenhuma. E também se poderia ver sempre como uma possibilidade do homem o lançar-se a outros planetas, a partir desta Terra. Com certeza que já não estamos longe disso. Onde é que está escrito, afinal, que o sítio do homem seja este?"
Mas Heidegger, como sempre, não dá o braço a torcer: "Se estou bem informado, de acordo com a nossa experiência e história humanas, tudo o que é essencial, tudo o que é grandeza surgiu do homem ter uma pátria e estar enraizado numa tradição. A literatura contemporânea, por exemplo, é excessivamente destrutiva."
Há um componente claramente conservador nas palavras de Heidegger. Vide a crítica à literatura contemporânea, que não respeitaria exatamente essa ligação com uma nação. Um tom que pode ser interpretado como de quem quer interromper o caminho do progresso, e retornar a um mundo anterior a isso, não necessariamente idílico, mas que ao menos em que haja uma ligação maior com a terra e com a Terra.
Qual foi a minha surpresa, portanto, quando começaram a anunciar Interstellar, o novo filme de Christopher Nolan, com a frase dita pelo personagem de Matthew McConaughey, Cooper:“Humanity was born on earth, but it was never meant to die here”. Não poderia estar mais em desacordo com Heidegger.
Se o filme peca excessivamente por seu caráter meloso, com um final "feliz" totalmente irreal, não podemos tirar o valor de suas cenas de ação - aquela onda no planeta água é de impressionar. Mas a minha proposta aqui não é analisar o filme, em si, mas pensar além dele, a partir da premissa em que ele se baseia: o homem deveria sair da Terra? Devemos desistir deste planeta e procurar outro? Nosso instinto de sobrevivência nos leva a abandonar tudo e tentar recomeçar do zero?
Contrariando Heidegger, podemos imaginar que mesmo que o homem não tenha produzido nada de grandioso - aos olhos dele - sem ligação com as suas raízes, isso não assegura uma regra geral e irrestrita. Não há nada que nos garanta essa verdade, como mostra o repórter. E, mesmo se fosse o caso, poderíamos estabelecer raízes em outros destinos. Os escritores que escreveram em outras línguas que não as suas primeiras, Nabokov, Conrad, Beckett, etc., dão argumentos para se pensar assim - apesar de Heidegger juntar toda a literatura do seu tempo no mesmo saco da "destruição".
Portanto, isso daria respaldo para a pergunta do repórter e a resposta de Interstellar a Heidegger: precisamos sobreviver antes de viver. Se essa Terra não nos dá mais condições de nos enraizarmos, que procuremos outra terra para vivermos. O problema do filme, me parece, e aí se juntam Heidegger e Cooper, é propor uma saída em que o homem - e não qualquer homem, mas o americano médio ou o Dasein cotidiano - isoladamente está no centro do mundo, das decisões.
Interstellar deixa algumas questões que eles dão for granted, como se diz lá na terra deles, ou, em língua de cristão, dão como certo, óbvio, não são respondidas. A primeira e mais urgente: quem garante que todo mundo quer sair da Terra? Tal pergunta se desdobra em muitas outras: quem vai sair da Terra? Todo mundo? Qual é o critério para essa saída? E quem quiser ficar? Este vai ser abandonado ou terá ainda acesso a recursos? O personagem de Michael Caine chega a dizer em certo momento que eles deveriam esconder as pesquisas porque não seriam aprovadas pela opinião pública. Então, eles estariam acima da opinião pública - quem os colocou lá?
Neste mundo criado pelos irmãos Nolan, a única saída da crise ambiental é, literalmente, sair da Terra. Ou, pior, recomeçar do zero a civilização em outro lugar. E novamente me ficou a questão: Por quê? Por que recomeçar? O que nos faz tão imprescindíveis no universo que não podemos simplesmente desaparecer? O sentimento de preservação é o da espécie ou o do indivíduo?
Sabe-se que a pior forma de se criticar um filme é propor saídas que a obra não assumiu, fazer perguntas que o longa não se propõe a responder. O filme é - ou deveria ser - uma obra fechada que compramos com as suas qualidades e seus defeitos. Se quisermos algo diferente, deveríamos então arregaçarmos nossas mangas e fazermos nós mesmos a carpintaria. Portanto, ou eu aceitaria esse mundo de Nolan, com essas regras e suas lógicas, e isso não é garantia para gostar da obra, ou eu poderia também partir para a minha própria criação.
Mas fiquei com a impressão, e isso não é exatamente uma escolha, de que Interstellar dá bastante razão às preocupações de Hannah Arendt. O filme me está dizendo que, bem, o homem é maior que a Terra. Este lugar azul não conseguiu aguentar os grandes sonhos de sua mais famosa criação e pediu concordata. Temos que nos livrar daqui para poder continuar a sonhar, a viver como sempre vivemos, sem mudar nossos hábitos. E quando destruirmos outro planeta, mudamos novamente. É uma possibilidade moralmente inócua.
Ao fim, parece que Interstellar deixa clara sua proposta inicial: somos nômades. Sempre fomos. Sempre seremos. O mundo deve se adaptar a mim, não o inverso. Assim, joga fora toda a nossa História, desde que optamos por nos estabelecer em aldeias, povoados, cidades, países - o que novamente não é um problema em si. Mas deixa uma outra pergunta ao fim: é possível dar um boot na humanidade? É possível viver de outra forma? Esperemos pela continuação.
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