Uma das forças culturais da China é, inegavelmente, sua comida. É tão presente que a tradução literal para o cumprimento igual a “Como vai você?” é algo como “Já fez sua refeição?” ou “Já comeu?”. Ontem fiquei treinando a pronúncia com os chineses do escritório na hora do jantar. É algo como “ni chi le ma?”, ou"你吃了吗?", se eu entendi direito.
Ligeira interrupção para dizer que a entonação das vogais em mandarim engana muito: são quatro possibilidades diferentes. O exemplo clássico que é dado é o do Ma. Má, em que o som do “a” cresce, quer dizer cânhamo. Já mà, em que ele decai abruptamente, ralhar. Por sua vez, mă, em que há um balanço, começando alto, descendo e depois subindo novamente, quer dizer “cavalo”. Por fim, mā, em que o som permanece alto sempre, é mãe. O último "ma", como se vê no parágrafo anterior, é uma partícula interrogativa. Cuidado, então, para não pedir, sem querer, para fumar ou cavalgar uma mãe.
Voltando à comida. Segundo o "Lonely planet", há quatro grandes “cozinhas” na China, que representam os quatro pontos cardeais do país. Cada um com suas especiarias, seus pratos principais, suas carnes prediletas. Em Beijing, predomina a culinária do norte. E o seu prato principal é, inegavelmente, o pato laqueado.
Claro que, após quase uma semana aqui, eu já comi uma vez o pato, mas não é sobre a pobre ave que fica horas no forno especial para ficar com a casca que lembra a nossa pururuca que eu quero focar aqui. Deixo isso para quando for visitar o famoso pato de 1406: o restaurante que faz a mesma receita desde o ano em questão.
Nem mesmo sobre os Dim Sum do Duyichu, um restaurante que fica numa área completamente turística [me disseram que parece a Epcot Center – e parece mesmo], mas que faz dumplings [pequenas massas de trigo com recheios variados que são fervidos dentro de caixas de bambu em vapor] tão maravilhosos e variados que, reza a lenda, o imperador Qianlong, da dinastia Qing, no século XVIII, se disfarçava de plebeu para poder provar suas maravilhas. São ótimas, as bolinhas, mesmo, mas não vou tentar aqui ser crítico culinário. Hoje, não.
Queria falar – ou tentar falar – sobre o que representa a comida para os chineses. Claro que eles têm McDonalds e Burguer King. É certo que eles comem comida tailandesa e italiana. Você pode ver gente tomando café ou bebendo coca-cola. Mas é inegável a ligação dos chineses com a sua comida. É mais que um patrimônio. É um laço invisível – e delicioso.
Ir jantar com chineses é certeza de se esbaldar. A quantidade e a diversidade de pratos que se pede impressiona até os maiores comilões, como eu. A mesa mais característica é aquela com um tampo de vidro no meio, em que você pode rodar os pratos por cima. Aí, vale tudo: língua de pato, pata de rã, orelha de porco. Ou pratos menos exóticos, a princípio: como um peixe com um molho que deixa a língua dormente que nem jambu. Ou o frango que parecia xadrez, mas era picante e ligeiramente doce. Ou bambu, que lembrou o gosto de palmito. Ou diferentes tipos de preparo de tofu. Você roda e vai provando e repetindo de tudo.
Algo que se percebe rápido: além de gosto, comida é costume, hábito. Por que os americanos almoçam um sanduíche e jantam cedo? Por que cariocas gostam das feijoadas às sextas e paulistas às quartas [é quarta, né?]? Por que chineses não tem nojo de nenhuma parte dos animais e comem até as coisas mais impensáveis – para nós? Todas essas questões podem ter tido uma explicação inicial [os americanos não querem perder tempo no almoço, os cariocas já emendam o almoço da sexta, os chineses passaram por muitas privações, etc.], e que muitas vezes não fazem mais tanto sentido – acho difícil um carioca normal conseguir emendar todas as sextas, por exemplo – mas o hábito já está entranhado.
Mas mesmo os hábitos mais entranhados podem passar por uma certa padronização - para não usar a palavra da moda, goumertização. Hoje, o carioca [e aposto que o paulista também] quase nunca encara uma comida um pouco mais pesada, fora dos padrões ditos saudáveis. A feijoada quase sempre é magra. Ninguém mais come pé ou rabo de porco na feijoada. Rabada virou prato exótico. Buchada, então...
A comida fica cada vez mais padronizada, igual. Não há muito mais diferença entre os lugares. Há uma pasteurização, uma tentativa de higienização. Mesmo assim, é de se notar que, como nação, só engordamos nos últimos anos.
Na China, porém, ao menos na comida, eles não se renderam - ainda. Mesmo nessa área completamente ocidentalizada, a quantidade de restaurantes chineses em que os menus só têm informação em mandarim e em que os atendentes também não falam nada além da nobre língua da etnia han é enorme. E dá-lhe barriga de porco, gorduras variadas, peles crocantes. Tudo bem pesado. Coincidência, ou não, ainda não vi ninguém obeso aqui.
Talvez seja o metabolismo. Talvez seja as práticas de atividade física. Seja genótipo ou fenótipo, suspeito que em poucas décadas, essa China esbelta vai ficar para trás. Quando o Ocidente mostra as suas armas cada vez mais pesadas [sedentarismo, estresse, trabalho excessivo], não sei se há como resistir totalmente intacto.