sábado, 21 de dezembro de 2013

O autorretrato do ano

A foto correu o mundo via redes sociais. Três das pessoas mais importantes do mundo, no meio de um enterro de um dos maiores ícones do século XX, se juntaram, sacaram um celular potente, fizeram uma pose descontraída, falaram xis, e se autofotografaram. Ou, em inglês, fizeram um “selfie”. A história seria apenas exótica, caso os homens e a mulher em questão não fossem o presidente dos EUA, Barack Obama, a primeira-ministra da Dinamarca, Helle Thorning-Schmidt, e o primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron – no velório do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela.

 Acho que a Michelle não gostou de não ser chamada [flagra de Roberto Schmidt/AFP]
Muito já se criticou a postura dos três líderes mundiais, que teriam desrespeitado a memória do sul-africano. Outros fizeram questão de defender a descontração do trio, lembrando que a cerimônia fúnebre não era necessariamente triste, mas uma celebração da vida do homem que representou, pessoalmente, o fim do regime do Apartheid. Não importa quem tem a razão nesta discussão. A foto dos três juntos se tornou um dos principais fatos do ano. Ou o autorretrato de 2013.

Não que tenha tido a relevância política das manifestações que abalaram Turquia, Brasil e outros países do mundo. Nem que tenha estremecido as relações multilaterais, como os escândalos da espionagem patrocinada pelos EUA. Ou o impacto da mudança de um papa taciturno, para um que abraça as pessoas nas ruas naturalmente (Aliás, que ano foi esse 2013, hein?). Mas o “selfie”, esse hábito de registrar a própria imagem com o celular ou uma câmera digital e, em seguida, compartilhar em uma mídia da internet, mostra muito como nos comportamos, no âmbito privado – ou o que restou dele – neste ciclo que agora se encerra.

Esta não é uma conclusão deste texto ou deste que vos escreve, mas uma constatação geral. “Selfie”, o diminutivo carinhoso de “Self”, que por sua vez quer dizer algo como “a si mesmo”, foi escolhida a palavra do ano pelo tradicional dicionário Oxford. A frequência com que ela foi usada na internet subiu 17.000% neste ano, se comparado com o ano anterior. O dicionário ainda conseguiu traçar a primeira aparição da palavra com essa acepção: foi em um fórum de internet na Austrália em 2002. De lá para cá, a palavra, e o hábito de se autofotografar, explodiram. Mas o que isso representa?

Muita gente tentou pegar o caminho do narcisismo exacerbado na interpretação do fenômeno. Inclusive uma capa do tabloide New York Post, em que mostrava como uma turista, ao perceber que havia um fulano tentando pular da ponte do Brooklyn, sacou o celular e se enquadrou junto ao suicida em potencial para registrar o momento (em tempo: o rapaz não se jogou). O título da reportagem foi um trocadilho intraduzível: “Selfie-ish”, sendo que “selfish” é visto normalmente como “egoísta”.

É claro que vivemos um momento em que nos desacostumamos a sair do centro das atenções. Compartilhamos todos os nossos passos na tentativa de mostrar o quanto merecemos receber os olhares dos outros. Queremos ser as celebridades cotidianas da vida social que se estabelece ao nosso redor. O “selfie” representa bem esse período, claro, já que você vira o paparazzi de si mesmo. Mas há ainda uma outra forma de interpretar que talvez seja complementar a essa.

Desde que a fotografia foi inventada – ou mesmo antes, quando a ideia de “retrato” entrou na pintura – sempre houve quem gostasse de deixar registrado sua imagem para a posteridade. E outros que não, que fogem de momentos assim, que abaixam a cabeça, jogam o cabelo na frente do rosto. Os motivos dessa diferença de comportamento entre os “exibidos” e os “envergonhados” podem variar enormemente, e esse texto não vai tentar elencá-los. Parece óbvio, também, que o número de exibidos subiu, proporcionalmente, enquanto o de envergonhados teria diminuído. Mas há um detalhe que, numa leitura superficial, tem ficado de fora: como, agora, o retrato é feito pela própria pessoa, sem o auxílio, ou a participação de ninguém mais.

Como dito, autorretratos não são novidades no mundo estabelecido das artes. Rembrandt e Van Gogh, para ficar em exemplos fáceis, são artistas que gostavam de se usar como modelos. Se no caso do misterioso Rembrandt, podemos supor que era uma forma de autoinvestigação, estudo, e facilidade – já que o modelo está disponível ao mesmo tempo que o pintor –, no de Van Gogh, além desses mesmos motivos, também havia um outro componente que se encontra nos atualmente famosos selfies: o isolamento social. Rembrandt pintou seus mais de 60 autorretratos ao longo de toda vida, Van Gogh concentrou o grosso da sua produção autorreferencial em apenas dois anos – os dois mais conturbados anos de sua vida.

Assim, o selfie representaria a ausência de um outro, que compusesse a relação criada no retrato. Imaginemos o exemplo de um modelo-fotógrafo que, agora, viaja sozinho, e quer deixar marcado que ele visitou – ou consumiu – tais e tais lugares. Não precisa de ninguém para sair, se divertir, conhecer o mundo. É independente, totalmente livre, e ainda um cidadão cosmopolita. Mas esse raciocínio não se sustenta tão facilmente. Principalmente num mundo em que a virtualidade se confunde com a realidade.

Este autorretrato mostra, em vez dessa completa independência, uma incapacidade de se relacionar dentro de uma sociedade factível, imperfeita, cheia de arestas solas. Uma inabilidade social, em tempos de redes sociais. Não é que nosso modelo-fotógrafo tenha preferido viajar sozinho – ele simplesmente não teve ninguém para viajar com ele. Isso não é um problema em si. Apenas se torna um problema quando se encara dessa maneira. E o selfie teria um componente que desnudaria essa farsa de autossuficiência.

Com o autorretrato o modelo-fotógrafo tenta, de uma maneira virtual, arranjar companhia para si. Porque um selfie só é um selfie se o retrato for postado. O selfie, em seguida, cruza os dedos para que a sua foto seja curtida, comentada, compartilhada. Que ele se transforme, por uma questão de segundos, no foco das atenções, desse mundo em que o déficit de atenção se tornou a resposta para todos os problemas das crianças, e a ritalina, que combate o problema, se tornou uma droga tomada no café-da-manhã.

Em vez de liberdade, o selfie demonstra uma dependência absurda do outro. É uma aposta no individualismo, num “eu me basto”, mas num individualismo desesperado, que precisa que alguém, por favor, o observe para existir. Uma tentativa de roubar o olhar do outro para que, só assim, a sua individualidade pudesse ser notada. Um pedido de socorro.

Há um exercício no teatro em que os atores, sentados em uma roda, devem tentar chamar a atenção de quem está à sua esquerda. Vale qualquer ação: falar, gritar, chorar, puxar, levantar... Mas como cada um se vira à esquerda para realizar o seu próprio objetivo, o processo parece impossível. O selfie é assim. Escancara a nossa privacidade para demonstrar toda a nossa inabilidade de lidar com o público. É um exemplo, um ótimo exemplo, de um tempo em que todos querem falar e ninguém escutar, a maioria quer ser escritor, a minoria, leitor.

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