A foto correu o mundo via redes sociais. Três das pessoas
mais importantes do mundo, no meio de um enterro de um dos maiores ícones do
século XX, se juntaram, sacaram um celular potente, fizeram uma pose
descontraída, falaram xis, e se autofotografaram. Ou, em inglês, fizeram um
“selfie”. A história seria apenas exótica, caso os homens e a mulher em questão
não fossem o presidente dos EUA, Barack Obama, a primeira-ministra da
Dinamarca, Helle Thorning-Schmidt, e o primeiro-ministro do Reino Unido, David
Cameron – no velório do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela.
Acho que a Michelle não gostou de não ser chamada [flagra de Roberto Schmidt/AFP] |
Muito já se criticou a postura dos três líderes mundiais,
que teriam desrespeitado a memória do sul-africano. Outros fizeram questão de
defender a descontração do trio, lembrando que a cerimônia fúnebre não era
necessariamente triste, mas uma celebração da vida do homem que representou, pessoalmente,
o fim do regime do Apartheid. Não importa quem tem a razão nesta discussão. A
foto dos três juntos se tornou um dos principais fatos do ano. Ou o
autorretrato de 2013.
Não que tenha tido a relevância política das manifestações
que abalaram Turquia, Brasil e outros países do mundo. Nem que tenha
estremecido as relações multilaterais, como os escândalos da espionagem patrocinada
pelos EUA. Ou o impacto da mudança de um papa taciturno, para um que abraça as
pessoas nas ruas naturalmente (Aliás, que ano foi esse 2013, hein?). Mas o
“selfie”, esse hábito de registrar a própria imagem com o celular ou uma câmera
digital e, em seguida, compartilhar em uma mídia da internet, mostra muito como
nos comportamos, no âmbito privado – ou o que restou dele – neste ciclo que
agora se encerra.
Esta não é uma conclusão deste texto ou deste que vos
escreve, mas uma constatação geral. “Selfie”, o diminutivo carinhoso de “Self”,
que por sua vez quer dizer algo como “a si mesmo”, foi escolhida a
palavra do ano pelo tradicional dicionário Oxford. A frequência com que ela
foi usada na internet subiu 17.000% neste ano, se comparado com o ano anterior.
O dicionário ainda conseguiu traçar a primeira aparição da palavra com essa
acepção: foi
em um fórum de internet na Austrália em 2002. De lá para cá, a palavra, e o
hábito de se autofotografar, explodiram. Mas o que isso representa?
Muita gente tentou pegar o caminho do narcisismo exacerbado
na interpretação do fenômeno. Inclusive uma
capa do tabloide New York Post,
em que mostrava como uma turista, ao perceber que havia um fulano tentando
pular da ponte do Brooklyn, sacou o celular e se enquadrou junto ao suicida em
potencial para registrar o momento (em tempo: o rapaz não se jogou). O título
da reportagem foi um trocadilho intraduzível: “Selfie-ish”, sendo que “selfish”
é visto normalmente como “egoísta”.
É claro que vivemos um momento em que nos desacostumamos a
sair do centro das atenções. Compartilhamos todos os nossos passos na tentativa
de mostrar o quanto merecemos receber os olhares dos outros. Queremos ser as
celebridades cotidianas da vida social que se estabelece ao nosso redor. O
“selfie” representa bem esse período, claro, já que você vira o paparazzi de si
mesmo. Mas há ainda uma outra forma de interpretar que talvez seja complementar
a essa.
Desde que a fotografia foi inventada – ou mesmo antes,
quando a ideia de “retrato” entrou na pintura – sempre houve quem gostasse de
deixar registrado sua imagem para a posteridade. E outros que não, que fogem de
momentos assim, que abaixam a cabeça, jogam o cabelo na frente do rosto. Os
motivos dessa diferença de comportamento entre os “exibidos” e os
“envergonhados” podem variar enormemente, e esse texto não vai tentar
elencá-los. Parece óbvio, também, que o número de exibidos subiu,
proporcionalmente, enquanto o de envergonhados teria diminuído. Mas há um
detalhe que, numa leitura superficial, tem ficado de fora: como, agora, o
retrato é feito pela própria pessoa, sem o auxílio, ou a participação de
ninguém mais.
Como dito, autorretratos não são novidades no mundo
estabelecido das artes. Rembrandt e Van Gogh, para ficar em exemplos fáceis,
são artistas que gostavam de se usar como modelos. Se no caso do misterioso
Rembrandt, podemos supor que era uma forma de autoinvestigação, estudo, e
facilidade – já que o modelo está disponível ao mesmo tempo que o pintor –, no
de Van Gogh, além desses mesmos motivos, também havia um outro componente que
se encontra nos atualmente famosos selfies: o isolamento social. Rembrandt
pintou seus mais de 60 autorretratos ao longo de toda vida, Van Gogh concentrou
o grosso da sua produção autorreferencial em apenas dois anos – os dois mais
conturbados anos de sua vida.
Assim, o selfie representaria a ausência de um outro, que
compusesse a relação criada no retrato. Imaginemos o exemplo de um
modelo-fotógrafo que, agora, viaja sozinho, e quer deixar marcado que ele
visitou – ou consumiu – tais e tais lugares. Não precisa de ninguém para sair,
se divertir, conhecer o mundo. É independente, totalmente livre, e ainda um
cidadão cosmopolita. Mas esse raciocínio não se sustenta tão facilmente.
Principalmente num mundo em que a virtualidade se confunde com a realidade.
Este autorretrato mostra, em vez dessa completa
independência, uma incapacidade de se relacionar dentro de uma sociedade
factível, imperfeita, cheia de arestas solas. Uma inabilidade social, em tempos
de redes sociais. Não é que nosso modelo-fotógrafo tenha preferido viajar
sozinho – ele simplesmente não teve ninguém para viajar com ele. Isso não é um
problema em si. Apenas se torna um problema quando se encara dessa maneira. E o
selfie teria um componente que desnudaria essa farsa de autossuficiência.
Com o autorretrato o modelo-fotógrafo tenta, de uma maneira
virtual, arranjar companhia para si. Porque um selfie só é um selfie se o
retrato for postado. O selfie, em seguida, cruza os dedos para que a sua foto
seja curtida, comentada, compartilhada. Que ele se transforme, por uma questão
de segundos, no foco das atenções, desse mundo em que o déficit de atenção se
tornou a resposta para todos os problemas das crianças, e a ritalina, que
combate o problema, se tornou uma droga tomada no café-da-manhã.
Em vez de liberdade, o selfie demonstra uma dependência
absurda do outro. É uma aposta no individualismo, num “eu me basto”, mas num
individualismo desesperado, que precisa que alguém, por favor, o observe para
existir. Uma tentativa de roubar o olhar do outro para que, só assim, a sua
individualidade pudesse ser notada. Um pedido de socorro.
Há um exercício no teatro em que os atores, sentados em uma
roda, devem tentar chamar a atenção de quem está à sua esquerda. Vale qualquer
ação: falar, gritar, chorar, puxar, levantar... Mas como cada um se vira à
esquerda para realizar o seu próprio objetivo, o processo parece impossível. O
selfie é assim. Escancara a nossa privacidade para demonstrar toda a nossa
inabilidade de lidar com o público. É um exemplo, um ótimo exemplo, de um tempo
em que todos querem falar e ninguém escutar, a maioria quer ser escritor, a
minoria, leitor.
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