Exatamente isso, que Lou se libertasse dele seguindo seus caminhos, foi o que o feriu profundamente. Sentiu-se usado, desperdiçado. Uma discípula lhe dá a entender que o compreende, e depois vai procurar outros mestres. Nietzsche sofreu isso como uma ofensa inaudita. Ele se largara em suas mãos e depois ela o largara de mão - Safranski, R.: Nietzsche - Biografia de uma tragédia, página 235, na tradução de Lya Luft.Curiosamente, essa passagem sobre a relação de Nietzsche com Lou Andreas-Salomé - a mulher que passou ainda pelas vidas de Rainer Maria Rilke, como musa, e Freud, como colega e amiga - exemplifica mais que a personalidade de Nietzsche, aponta também para a sua obra. Além disso, mostra como as duas - vida e escrita - estavam bastante conectadas no caso do Bigode.
Uma das principais críticas de Heidegger para Nietzsche cai mais ou menos por aí. O Bigode tinha dito que era o cara que acabaria com a metafísica, ou seja, com esta separação do mundo em que vivemos em dois grandes submundos, que poderiam ser o céu e a terra, ou o mundo das ideias e o mundo real, ou ainda, e mais genericamente, o mundo suprassensível x mundo sensível. Ou seja, dois mundos, um melhor que o outro - e adivinha em qual nós viveríamos? No pior, é claro.
Tal separação teria começado lá com o Sócrates de Platão [já que Sócrates não escreveu nada], no famoso mito da caverna. Porém, o Bigode diz que esse outro mundo superior era invenção da carochinha para não aproveitarmos o mundo daqui, esse mesmo, que tem primeiros beijos, cineminha no fim de tarde, chope com os amigos, mas também engarrafamento, falta de grana, ressaca no dia seguinte e pé na bunda. Ele sugeriu que ficássemos com esse aqui que estaria de bom tamanho e não nos preocupássemos com o outro, porque ninguém tinha voltado para contar se ele existia realmente. Assim, de acordo com o próprio, a metafísica teria acabado.
O que não é exatamente o que Heidegger falaria. Ou melhor, Heidegger estava pensando de outro jeito completamente diferente. Para o sósia do Cony, não havia tanta importância sobre o fim deste tipo de metafísica, que fala sobre a separação de mundos, e todo esse blablablá. Ele acreditava que, em vez disso, deveríamos nos preocupar com a posição do sujeito-homem nessa equação. Melhor explicando: para ele, desde há muito, o homem teria começado a se sentir o rei da cocada-preta. Só porque ele percebeu que pensava logo existia, o homem se colocou no centro das decisões de todas as coisas.
A partir de então, o homem foi deslocando Deus - ou quem quer que fosse - dos holofotes para assumir o posto, com direito a plumas e paetês, meio Clóvis Bornay. Porém, o homem jamais teria a envergadura moral [por favor, com trocadilho] para ficar em Seu lugar. Mesmo o além-do-homem, quiçá o super-homem. O homem deveria se aceitar como um imenso e vazio pouco-importante, aleatório em relação a qualquer sentido ou direção. Não existiria nada que o homem pudesse ou conseguisse, a princípio. E quem pensasse de outro jeito estaria ainda seguindo a mesma tradição, que teria tido o início da época Moderna com Descartes, mas que teria se iniciado exatamente com... Sócrates de Platão.
Em outras palavras, apesar de respeitar e gostar muito de Nietzsche, Heidegger insinuou que o seu predecessor era uma criança mimada, que não aceitava ficar de fora da brincadeira, e que achava que o mundo girava em torno de seu umbigo. E que quando era contrariado, criticava o mundo, em vez de aceitar que, bem, ele não é o Rei Sol, e nós não aceitamos a teoria heliocêntrica para explicar o mundo há muito tempo.
O mais legal, porém, é perceber a indispensabilidade dessa impertinência do Bigode, até para sacolejar o mundo - esse mundo aleatório, perdido, sem razões e motivos. Mas é bom sempre ressaltar que [vontade de] potência sem controle é [quase] nada - como diria o comercial. Do outro lado, saber-nos tão insignificantes também pode ser libertador, já que, se unirmos com a impetuosidade irresponsável e infantil, poderemos ir para qualquer lado ou direção que quisermos. No fim, talvez valha raciocinar com a criança diante da caixa de bombom: se podemos ficar com os dois, por que precisaríamos escolher um só e apenas?
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