É claro que em O anticristo, livro de 1888 bastante anticlerical, Nietzsche continua usando do seu vocabulário ácido para martelar as grandes verdades estabelecidas e livrar o homem de uma tutela dada a priori. Mas sua atitude perante o Cristo, em si, é bem mais dúbia. Não que ele chegue a ter uma admiração irrestrita pela figura imponente que, de tão importante na História, dividiu a maneira como contamos os anos. É mais como se ele aceitasse as posições de Cristo, e o interpretasse como um igual, deixando na conta de seus seguidores, principalmente Paulo, o crime de ter deturpado seus ensinamentos.
Nesta obra, Nietzsche reforça uma ideia sua de que o grande objetivo do ser humano é não ser sujeitado por nenhuma ordem, não obedecer cegamente, sem contestação, qualquer obrigação moral. Daí ser contra a ideia de um Deus que fale o que é certo ou errado – para ele, Nietzsche, é importante que o homem descubra sozinho, da maneira que lhe for possível, o que lhe é bom ou mau. Para ele, o princípio supremo das religiões está inscrito na passagem de que “Deus perdoa a todo o que faz penitência”. Como não temos acesso a Deus diretamente, essa frase quer dizer, na interpretação do alemão, que devemos obedecer ao sacerdote, que vai nos dizer quantas e quais penitências devemos tomar.
Cristo – Nietzsche prefere chamá-lo de “Redentor”, ou “Jesus de Nazaré” – agrada ao alemão à medida em que é um personagem que lutou contra a forma institucionalizada de religião que existia à sua época. Não é possível saber se Jesus tenha negado a igreja judaica, explica Nietzsche, ou se posicionado contra uma ideia maior de igreja, como bastião da cultura e do comportamento. “Era uma insurreição contra ‘os bons e os justos’, contra os ‘santos de Israel’, contra a hierarquia da sociedade – não contra a sua corrupção, mas contra a casta, o privilégio, a ordem, a fórmula; era a descrença nos ‘homens superiores’, o não pronunciado contra tudo o que era sacerdote e teólogo”, escreve ele, carregando na ironia nas expressões entre aspas.
Nietzsche chega a chamar Jesus de “santo anarquista” e de “criminoso político”, num elogio ambíguo, por intimar o “povo mais baixo” à “resistência contra a ordem dominante”, sugerindo que se fosse em seu tempo, fins do século XIX, era capaz de ser deportado para a Sibéria. Como homem completamente ateu, retira do personagem bíblico sua santidade e afirma que, sim, Jesus morreu pelo pecado, mas pelo seu próprio, não tendo qualquer razão, em se confiando na Escritura, de se afirmar que ele quis, no fundo, expiar os pecados dos outros.
Mas é complicado confiar na Bíblia, diz Nietzsche, já que o texto foi muito “mutilado ou sobrecarregado” com “traços estranhos” de outras pessoas que podem, inclusive, ter criado ou aumentado santos providenciais para resolver problemas pontuais. De qualquer forma, a figura do Redentor sofreu uma desfiguração do meio em que viveu e da História, que o irá interpretar à luz de cada tempo. “As tentativas que conheço de, a partir dos Evangelhos, extrair a história de uma ‘alma’, parecem-me prova de uma detestável frivolidade psicológica”, exclama, mostrando que, se Jesus não escreveu uma única linha conhecida sequer, fica praticamente impossível confiar em seus intérpretes. “Os primeiros discípulos, em particular, traduziram primeiro para a sua crueza própria um ser flutuando em símbolos e incompreensibilidades para dele compreenderem em geral alguma coisa”, diz em outro momento.
O problema aqui é o do início de sua argumentação. Se Nietzsche é contra a tutela, qualquer que seja, não poderá aceitar a opinião de quem se deixou ser tutelado. Se qualquer frase direta a partir de uma fonte primária já não é de todo confiável, dadas as grandes dificuldades de se comunicar o óbvio, uma opinião de segunda mão torna essas afirmações ainda mais fracas.
“Fazer de Jesus um herói! E que mal-entendido não é a palavra ‘gênio’! Todo o nosso conceito, o nosso conceito cultural de ‘espírito’ não tem nenhum sentido no mundo em que Jesus vive. Com a linguagem rigorosa do fisiólogo, estaria aqui melhor no seu lugar uma palavra de todo diferente: a palavra idiota.”
Numa primeira leitura, o trecho anterior pode chocar pela crueza e pela tentativa de tornar Jesus um homem, de carne e osso, sem qualquer diferença dos demais homens. Ao fim, ainda há uma expressão que, nos nossos tempos, poderia ser considerado uma blasfêmia: chamar Jesus de idiota. Sobre isso, é possível tentar fugir do raciocínio óbvio. O caminho proposto aqui é lembrar que Nietzsche era leitor de Dostoiévski, que, por sua vez, escreveu um livro chamado O idiota. A obra narra a história do príncipe Míchkin, que, sendo superior aos seus conterrâneos, não consegue se adaptar e é considerado um idiota. Idiota, aqui, tem o sentido de ser a exceção, de ser o diferente do que se propõe, do fugir, novamente, de tutelas.
Outro exemplo de como essa frase não necessariamente é um xingamento, mas uma dificuldade de se adequar à sociedade em que estamos inseridos aparece no filme húngaro O cavalo de Turim. Logo no início do longa, o diretor Béla Tarr coloca o narrador para descrever a famosa cena de Nietzsche abraçando o quadrúpede na praça pública da cidade italiana. Tarr lembra que, após todo o imbróglio, Nietzsche teve uma crise nervosa que o deixou sem se comunicar direito até a sua morte, 11 anos depois. As últimas palavras do alemão teriam sido, segundo Tarr: "Mutter, Ich bin Dumm", ou algo como "Mãe, eu sou um idiota". Mesmo que não haja qualquer comprovação dessa frase, é uma forma de dizer que ser “idiota”, dentro de um universo nietzschiano, não carrega junto de si um conteúdo apenas negativo.
No entanto, é de outra forma que Nietzsche faz o maior elogio a Jesus. O alemão afirma que “com alguma tolerância na expressão”, poderia chamar Jesus de “espírito livre”. Dentro dos textos de Nietzsche isso pode ser interpretado como o homem que não precisa de um parâmetro anterior para viver, que vive a partir de sua própria consciência, com a coragem de enfrentar o mundo, sem cair numa dicotomia entre erros e acertos. Alguém que se opõe “a toda a espécie de palavra, fórmula, lei, fé, dogma. Fala simplesmente a partir do mais íntimo – tudo o mais, a realidade integral, a natureza inteira, a própria linguagem tem para ele somente o valor de um sinal, de uma parábola”.
Sua morte, de acordo com os textos sagrados, comprovaria essa liberdade, já que o Salvador não usou “nem de fórmulas, nem de ritos, para a sua comunhão com Deus – nem sequer da oração”. “Este ‘alegre mensageiro’ morreu como viveu, como ensinara – não para ‘redimir os homens’, mas para mostrar como se deve viver”, escreve Nietzsche lembrando que Jesus bateu de frente com juízes, com verdugos, com os acusadores, e, já na cruz, enfrentou calúnias e ultrajes. “Não resiste, não defende o seu direito, não dá passo algum que afaste dele o fim; mais ainda, provoca-o... E suplica, sofre, ama com aqueles, por aqueles que lhe fazem mal...”
A partir de então, seus seguidores teriam deturpado sua mensagem. “A história do Cristianismo – e, claro está, desde a morte na cruz – é a história da incompreensão cada vez mais grosseira de um simbolismo originário”, argumenta lembrando que foram criados ritos e doutrinas por uma Igreja que gostaria, segundo Nietzsche, de ter apenas poder sobre os seus fiéis. Para o alemão, “já a palavra ‘Cristianismo’ é um equívoco – no fundo, existiu apenas um único cristão, e esse morreu na cruz.”
O que o libertário pensador alemão admira em Jesus de Nazaré é essa capacidade de afirmar suas vontades, de lutar contra o que está estabelecido, mesmo que isso lhe custe a própria vida. É essa habilidade de combater os dogmas criados, os deuses castradores, as morais que determinam um bem e um mal para todas as pessoas, sem considerar as particularidades de cada um. Nietzsche, curiosamente, acredita ser possível, sim, ter uma prática cristã, portanto. Mas só haveria uma única forma de ser cristão. Seguir de perto o exemplo do Cristo. Mas deste Cristo combativo, que ele admirava. Ou seja, para começar, não repetindo seus passos, mas inventando os seus próprios caminhos. Não obedecendo regras desnecessárias, mas discutindo, com razão e força, a validade delas. Ao fim, Nietzsche parece exoticamente otimista: “Hoje, uma tal vida é ainda possível e até necessária para certos homens: o Cristianismo autêntico, originário, será possível em todas as épocas...”
Nesta obra, Nietzsche reforça uma ideia sua de que o grande objetivo do ser humano é não ser sujeitado por nenhuma ordem, não obedecer cegamente, sem contestação, qualquer obrigação moral. Daí ser contra a ideia de um Deus que fale o que é certo ou errado – para ele, Nietzsche, é importante que o homem descubra sozinho, da maneira que lhe for possível, o que lhe é bom ou mau. Para ele, o princípio supremo das religiões está inscrito na passagem de que “Deus perdoa a todo o que faz penitência”. Como não temos acesso a Deus diretamente, essa frase quer dizer, na interpretação do alemão, que devemos obedecer ao sacerdote, que vai nos dizer quantas e quais penitências devemos tomar.
Cristo – Nietzsche prefere chamá-lo de “Redentor”, ou “Jesus de Nazaré” – agrada ao alemão à medida em que é um personagem que lutou contra a forma institucionalizada de religião que existia à sua época. Não é possível saber se Jesus tenha negado a igreja judaica, explica Nietzsche, ou se posicionado contra uma ideia maior de igreja, como bastião da cultura e do comportamento. “Era uma insurreição contra ‘os bons e os justos’, contra os ‘santos de Israel’, contra a hierarquia da sociedade – não contra a sua corrupção, mas contra a casta, o privilégio, a ordem, a fórmula; era a descrença nos ‘homens superiores’, o não pronunciado contra tudo o que era sacerdote e teólogo”, escreve ele, carregando na ironia nas expressões entre aspas.
Nietzsche chega a chamar Jesus de “santo anarquista” e de “criminoso político”, num elogio ambíguo, por intimar o “povo mais baixo” à “resistência contra a ordem dominante”, sugerindo que se fosse em seu tempo, fins do século XIX, era capaz de ser deportado para a Sibéria. Como homem completamente ateu, retira do personagem bíblico sua santidade e afirma que, sim, Jesus morreu pelo pecado, mas pelo seu próprio, não tendo qualquer razão, em se confiando na Escritura, de se afirmar que ele quis, no fundo, expiar os pecados dos outros.
Mas é complicado confiar na Bíblia, diz Nietzsche, já que o texto foi muito “mutilado ou sobrecarregado” com “traços estranhos” de outras pessoas que podem, inclusive, ter criado ou aumentado santos providenciais para resolver problemas pontuais. De qualquer forma, a figura do Redentor sofreu uma desfiguração do meio em que viveu e da História, que o irá interpretar à luz de cada tempo. “As tentativas que conheço de, a partir dos Evangelhos, extrair a história de uma ‘alma’, parecem-me prova de uma detestável frivolidade psicológica”, exclama, mostrando que, se Jesus não escreveu uma única linha conhecida sequer, fica praticamente impossível confiar em seus intérpretes. “Os primeiros discípulos, em particular, traduziram primeiro para a sua crueza própria um ser flutuando em símbolos e incompreensibilidades para dele compreenderem em geral alguma coisa”, diz em outro momento.
O problema aqui é o do início de sua argumentação. Se Nietzsche é contra a tutela, qualquer que seja, não poderá aceitar a opinião de quem se deixou ser tutelado. Se qualquer frase direta a partir de uma fonte primária já não é de todo confiável, dadas as grandes dificuldades de se comunicar o óbvio, uma opinião de segunda mão torna essas afirmações ainda mais fracas.
“Fazer de Jesus um herói! E que mal-entendido não é a palavra ‘gênio’! Todo o nosso conceito, o nosso conceito cultural de ‘espírito’ não tem nenhum sentido no mundo em que Jesus vive. Com a linguagem rigorosa do fisiólogo, estaria aqui melhor no seu lugar uma palavra de todo diferente: a palavra idiota.”
Numa primeira leitura, o trecho anterior pode chocar pela crueza e pela tentativa de tornar Jesus um homem, de carne e osso, sem qualquer diferença dos demais homens. Ao fim, ainda há uma expressão que, nos nossos tempos, poderia ser considerado uma blasfêmia: chamar Jesus de idiota. Sobre isso, é possível tentar fugir do raciocínio óbvio. O caminho proposto aqui é lembrar que Nietzsche era leitor de Dostoiévski, que, por sua vez, escreveu um livro chamado O idiota. A obra narra a história do príncipe Míchkin, que, sendo superior aos seus conterrâneos, não consegue se adaptar e é considerado um idiota. Idiota, aqui, tem o sentido de ser a exceção, de ser o diferente do que se propõe, do fugir, novamente, de tutelas.
Outro exemplo de como essa frase não necessariamente é um xingamento, mas uma dificuldade de se adequar à sociedade em que estamos inseridos aparece no filme húngaro O cavalo de Turim. Logo no início do longa, o diretor Béla Tarr coloca o narrador para descrever a famosa cena de Nietzsche abraçando o quadrúpede na praça pública da cidade italiana. Tarr lembra que, após todo o imbróglio, Nietzsche teve uma crise nervosa que o deixou sem se comunicar direito até a sua morte, 11 anos depois. As últimas palavras do alemão teriam sido, segundo Tarr: "Mutter, Ich bin Dumm", ou algo como "Mãe, eu sou um idiota". Mesmo que não haja qualquer comprovação dessa frase, é uma forma de dizer que ser “idiota”, dentro de um universo nietzschiano, não carrega junto de si um conteúdo apenas negativo.
No entanto, é de outra forma que Nietzsche faz o maior elogio a Jesus. O alemão afirma que “com alguma tolerância na expressão”, poderia chamar Jesus de “espírito livre”. Dentro dos textos de Nietzsche isso pode ser interpretado como o homem que não precisa de um parâmetro anterior para viver, que vive a partir de sua própria consciência, com a coragem de enfrentar o mundo, sem cair numa dicotomia entre erros e acertos. Alguém que se opõe “a toda a espécie de palavra, fórmula, lei, fé, dogma. Fala simplesmente a partir do mais íntimo – tudo o mais, a realidade integral, a natureza inteira, a própria linguagem tem para ele somente o valor de um sinal, de uma parábola”.
Sua morte, de acordo com os textos sagrados, comprovaria essa liberdade, já que o Salvador não usou “nem de fórmulas, nem de ritos, para a sua comunhão com Deus – nem sequer da oração”. “Este ‘alegre mensageiro’ morreu como viveu, como ensinara – não para ‘redimir os homens’, mas para mostrar como se deve viver”, escreve Nietzsche lembrando que Jesus bateu de frente com juízes, com verdugos, com os acusadores, e, já na cruz, enfrentou calúnias e ultrajes. “Não resiste, não defende o seu direito, não dá passo algum que afaste dele o fim; mais ainda, provoca-o... E suplica, sofre, ama com aqueles, por aqueles que lhe fazem mal...”
A partir de então, seus seguidores teriam deturpado sua mensagem. “A história do Cristianismo – e, claro está, desde a morte na cruz – é a história da incompreensão cada vez mais grosseira de um simbolismo originário”, argumenta lembrando que foram criados ritos e doutrinas por uma Igreja que gostaria, segundo Nietzsche, de ter apenas poder sobre os seus fiéis. Para o alemão, “já a palavra ‘Cristianismo’ é um equívoco – no fundo, existiu apenas um único cristão, e esse morreu na cruz.”
O que o libertário pensador alemão admira em Jesus de Nazaré é essa capacidade de afirmar suas vontades, de lutar contra o que está estabelecido, mesmo que isso lhe custe a própria vida. É essa habilidade de combater os dogmas criados, os deuses castradores, as morais que determinam um bem e um mal para todas as pessoas, sem considerar as particularidades de cada um. Nietzsche, curiosamente, acredita ser possível, sim, ter uma prática cristã, portanto. Mas só haveria uma única forma de ser cristão. Seguir de perto o exemplo do Cristo. Mas deste Cristo combativo, que ele admirava. Ou seja, para começar, não repetindo seus passos, mas inventando os seus próprios caminhos. Não obedecendo regras desnecessárias, mas discutindo, com razão e força, a validade delas. Ao fim, Nietzsche parece exoticamente otimista: “Hoje, uma tal vida é ainda possível e até necessária para certos homens: o Cristianismo autêntico, originário, será possível em todas as épocas...”
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