Não me autoconstruo, lamentavelmente. Delírios de grandeza de um barquinho chinfrim. Dependo das más vontades e boas intenções de algum ser humano, geralmente do sexo masculino – infelizmente – para que eu exista. Ou seria o inverso? Boas vontades e más intenções? Ainda confundo esses dizeres humanos. O que foi? Não entende como um barco à vela – ainda sem a sua vela, entretanto – pode falar? Para começo de conversa, eu não falo. Você está me lendo, portanto eu escrevo – o que, considerando a sua atual cara de espanto, deve te colocar ainda mais atônito. Amigue, repare, é exatamente esse tipo de pergunta – inútil para muitos – que me faz estar aqui, quebrando o meu casco: a que será que se destina?
Não é possível prever nem mesmo o tempo, quiçá o clima. O mundo é banhado em mistérios abissais. Há mais meandros escondidos entre o infinito oceano e a delimitada terra do que a nossa dura razão instrumental pode elencar. Pois. Eu sinto a mesma coisa. Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta. E não estou falando da vela. É algo mais abstrato. É saber que não sou dono da minha própria fortuna.
Não escolhi ser criado, nem ter esse simples formato ligeiramente trapezoidal, revestido de fibra de vidro, com um falo enorme no meio, que me lembra um totem para quem os humanos parecem sempre prestar homenagens. Não consigo entender isso, eu, cuja sexualidade não passa por objetos tão grosseiros. Tive sorte, pode-se dizer, fui uma criação artesanal, de um curioso rapaz que recitava algumas frases exóticas em uma língua aveludada e redonda. “Ẹni bá ṣe oun tí ẹnìkan ò ṣe rí á rí ohun tí ẹnìkan ò rí ri”. Consegui gravar essa. Conversando com outros barcos no porto onde estou atracado – sim, quando sozinhos, nós fofocamos frivolamente como homens no churrasco após a pelada –, descobri que ela quer dizer algo como “quem faz o que ninguém fez, vai experimentar aquilo que ninguém experimentou”, e fiquei remoendo. Claro que há o incentivo para a coragem de enfrentar mares nunca antes navegados. É sempre bom saber que nunca somos originais, outras pessoas já enfrentaram tormentas ainda maiores que as suas – e sobreviveram. Fiquei pensando, entretanto: haveria mares absolutamente virgens? Ou, o inverso: é possível navegar a mesma rota duas vezes?
Não precisamos continuar com essas – exatamente essas – elucubrações. Provavelmente a resposta é mais que 1 e menos que 2; está entre os dois bordos, o que desafia o nosso princípio de não contradição. Fomos criados dentro de uma física – e mesmo uma metafísica – em que ou a gente é ou não é. Ou isto ou aquilo. Ao descobrir que o mundo também tem conjunções aditivas deveríamos ter ficado mais felizes. Não foi bem o que aconteceu. A tradição cobrou seu preço pelo conforto de tantos anos.
Não sou eu quem escreve o texto, é o próprio texto quem se escreve. Uma frase e outra e logo outra aparece e se intromete, interrompe o que eu queria dizer e pronto, já estou longe do meu porto seguro. Esse é o meu maior medo. Delírios de controle de um veleiro mixuruca. Saber que não adianta os nossos bons ou maus propósitos, o nosso fado está sempre em jogo, com múltiplas forças além da nossa própria. É descobrir que nos cada vez mais raros dias de calmaria, vamos navegar pouco, mesmo; enquanto nas posseidônicas tormentas podemos ser jogados, arremessados, até destroçados.
Não deveria ser assim, tão duro como o carvalho de um galeão.Temos que aceitar o acaso. E temos que reiterar que há margem para manobras, mesmo nas angras mais apertadas. Aceitar a sina não é, também, largar o timão ao sabor das marés. É saber que a própria vontade não passa de um vento que infla nossas velas. Um entre muitos. Jamais o mais forte, tampouco o mais tímido. A vontade deve nos proporcionar atalhos para os dias de vento de revés, nem que seja a paciência da criatividade. Peixe, quando o mar está para peixe. Velas vazias, para os dias de tempestade; velas cheias, para os de bonança. Lembrar que mar calmo não testa marinheiro. Nem mesmo veleiro. Ou, mais do que simplesmente aceitá-lo, amar o destino – qualquer que ele seja. Um barco seguro se sabe capaz de se readaptar às inesperadas mudanças de rumo e às intempéries das ausências.
Não é possível prever nem mesmo o tempo, quiçá o clima. O mundo é banhado em mistérios abissais. Há mais meandros escondidos entre o infinito oceano e a delimitada terra do que a nossa dura razão instrumental pode elencar. Pois. Eu sinto a mesma coisa. Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta. E não estou falando da vela. É algo mais abstrato. É saber que não sou dono da minha própria fortuna.
Não escolhi ser criado, nem ter esse simples formato ligeiramente trapezoidal, revestido de fibra de vidro, com um falo enorme no meio, que me lembra um totem para quem os humanos parecem sempre prestar homenagens. Não consigo entender isso, eu, cuja sexualidade não passa por objetos tão grosseiros. Tive sorte, pode-se dizer, fui uma criação artesanal, de um curioso rapaz que recitava algumas frases exóticas em uma língua aveludada e redonda. “Ẹni bá ṣe oun tí ẹnìkan ò ṣe rí á rí ohun tí ẹnìkan ò rí ri”. Consegui gravar essa. Conversando com outros barcos no porto onde estou atracado – sim, quando sozinhos, nós fofocamos frivolamente como homens no churrasco após a pelada –, descobri que ela quer dizer algo como “quem faz o que ninguém fez, vai experimentar aquilo que ninguém experimentou”, e fiquei remoendo. Claro que há o incentivo para a coragem de enfrentar mares nunca antes navegados. É sempre bom saber que nunca somos originais, outras pessoas já enfrentaram tormentas ainda maiores que as suas – e sobreviveram. Fiquei pensando, entretanto: haveria mares absolutamente virgens? Ou, o inverso: é possível navegar a mesma rota duas vezes?
Não precisamos continuar com essas – exatamente essas – elucubrações. Provavelmente a resposta é mais que 1 e menos que 2; está entre os dois bordos, o que desafia o nosso princípio de não contradição. Fomos criados dentro de uma física – e mesmo uma metafísica – em que ou a gente é ou não é. Ou isto ou aquilo. Ao descobrir que o mundo também tem conjunções aditivas deveríamos ter ficado mais felizes. Não foi bem o que aconteceu. A tradição cobrou seu preço pelo conforto de tantos anos.
Não sou eu quem escreve o texto, é o próprio texto quem se escreve. Uma frase e outra e logo outra aparece e se intromete, interrompe o que eu queria dizer e pronto, já estou longe do meu porto seguro. Esse é o meu maior medo. Delírios de controle de um veleiro mixuruca. Saber que não adianta os nossos bons ou maus propósitos, o nosso fado está sempre em jogo, com múltiplas forças além da nossa própria. É descobrir que nos cada vez mais raros dias de calmaria, vamos navegar pouco, mesmo; enquanto nas posseidônicas tormentas podemos ser jogados, arremessados, até destroçados.
Não deveria ser assim, tão duro como o carvalho de um galeão.Temos que aceitar o acaso. E temos que reiterar que há margem para manobras, mesmo nas angras mais apertadas. Aceitar a sina não é, também, largar o timão ao sabor das marés. É saber que a própria vontade não passa de um vento que infla nossas velas. Um entre muitos. Jamais o mais forte, tampouco o mais tímido. A vontade deve nos proporcionar atalhos para os dias de vento de revés, nem que seja a paciência da criatividade. Peixe, quando o mar está para peixe. Velas vazias, para os dias de tempestade; velas cheias, para os de bonança. Lembrar que mar calmo não testa marinheiro. Nem mesmo veleiro. Ou, mais do que simplesmente aceitá-lo, amar o destino – qualquer que ele seja. Um barco seguro se sabe capaz de se readaptar às inesperadas mudanças de rumo e às intempéries das ausências.
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