O colapso de Miguel foi um estranhamento para todos nós. Nos pegou de surpresa, de um jeito que eu não sei bem como foi. Estou com dificuldade de admitir isso. Vim só porque a minha mulher insistiu muito. Não tinha nem reconhecido, aqui. Não podia ser. Ele era um símbolo, sabe? Um ídolo. Um cara que eu conhecia há muito tempo. Eu o admirava pra caramba. Comecei a acordar no meio da madrugada, sem motivo, com o coração em disparada, com medo, medo... de quê? Depois, depois. O encontro com ele, ali, na Cinelândia foi, foi... Foi surreal. Posso fumar aqui? Voltei a fumar, sim.
Foi ali, ali, ó. Miguel se transformou de maneira que não o reconheci quando passei por ele. Estava degradado, vilanizado, com roupas que eu nunca imaginei nele – ele que foi sempre muito elegante –, fazendo aquelas coisas que agora ele faz. O mais bizarro – bizarro nem dá conta direito – o mais bizarro era o permanente sorriso no rosto. Ele enlouqueceu, só pode. Completamente fora da realidade. Miguel, Miguel... Era como se desconhecesse sua condição. Como se houvesse esquecido o passado. Um lunático.
Fomos colegas de faculdade ainda há quase 30 anos – estou velho. Estamos velhos. Economia na PUC, só o dream team do pensamento liberal. Ele, meu veterano, sempre pareceu que iria longe. Lia tudo o que era pedido e muito mais. Presenciei várias discussões suas com os professores. Os mestres menos ortodoxos questionando suas convicções: “Como você tem tanta certeza do que está falando?”, dizia o velho Soares, um comuna disfarçado que se vendia como desenvolvimentista. Lembro como se fosse hoje. “Fala em números, faz ginásticas matemáticas, como se elas resolvessem os problemas sociais como catapultas mágicas. A realidade é muito mais complexa, Miguel.” Ah, o velho Soares. Com o donaire que sempre lhe foi característico, Miguel respondia com apenas um sorriso, de superioridade, altivez, condescendência, como se dissesse sem se dignar a mostrar os dentes: coitado.
Passamos anos sem nos encontrar e acabamos nos esbarrando na Véritas, uma consultoria de fundos de investimentos para grandes fortunas. Ele veio assumir o cargo de VP – na prática era quem mandava, já que o presidente estava baseado em Nova York –, enquanto eu sou apenas um gerente de contas industriais. Era merecido. Queria chegar lá, mas queria que ele também continuasse lá. Nunca tive um chefe com a inteligência, a precisão e a classe de Miguel. E a elegância? Sempre usava ternos Ermenegildo Zegna e sapatos Bemer. Lembro de uma oportunidade em que a garçonete da firma derrubou café e sujou alguns dos papéis que ele mantinha sobre a mesa. Em vez de se alterar, Miguel disse para a senhora não se preocupar, erros acontecem com todo mundo. Em nenhum momento ele levantou a voz; foi controlado, calmo – beneplácito, eu diria. O máximo que ele fez, e só quando ela saiu, foi pedir a administração da Véritas para que essa senhora – já uma senhora de idade, não deveria estar nessa função – não lhe servisse mais. Se fosse eu...
Que gestor. Miguel era um homem extremamente compreensível com seus subalternos. Mesmo sob a pressão cotidiana. Lá, temos que bater metas assustadoras. Trabalhamos 12, 13, até 16 horas por dia. A Véritas se vende como a consultoria que entrega os melhores rendimentos do mercado. E nós precisamos cumprir o prometido – o que acontece quase sempre. Nas poucas oportunidades em que não conseguimos, Miguel aparece para resolver. As contas são separadas, mas em todos esses momentos, ele chamou a equipe inteira para conversar, instigando o sentimento de equipe. Um verdadeiro líder. Ali, todos estávamos juntos. E ele jamais levantou a voz, nem precisava. Falava baixo e pausadamente. O esporro parecia pior. Como se nos enfiassem uma faca vagarosamente, por horas, individualmente, em vez de nos bater com raiva.
Ele nunca citava o culpado pela falha, não precisava. Todo mundo sabia quem era. Nossos dados eram públicos. A competição entre os funcionários sempre foi a melhor maneira de nos incentivar a trabalhar mais. Miguel mandava que nós fizéssemos o que fosse necessário para entregar os números prometidos. Lembrava do bônus de fim de ano, das festas, das convenções, dos cursos bancados com dinheiro da Véritas. Lembrava de todos os benefícios e lembrava ainda que nós tínhamos o compromisso de atingir essas metas porque éramos os melhores do mercado. Sempre fomos, sempre seríamos.
A Véritas é conhecida por ter os salários mais altos e as maiores cobranças do mercado. Somos demitidos compulsoriamente se, por exemplo, acumularmos três meses em sequência abaixo dos objetivos. É o jogo jogado. Muitos, nessas horas, apelam para investimentos, digamos, complicados. Outros fazem isso todos os meses. Eu nunca fui a favor dessas aplicações mais controversas. Nunca as fiz, mas não julgo quem fez. Eu sei que você vai manter o sigilo por isso eu vou dizer. Há certos fundos em que não sabemos para onde o dinheiro vai. São fundos secretos, de riscos estratosféricos, mas com retornos altíssimos, e, principalmente no caso de quem está com a corda no pescoço: de liquidez quase imediata. Você coloca dinheiro num buraco negro, às cegas, e, pam, rapidamente recebe uma grana de volta. Acontece, de vez em quando, de não funcionar, mas o ágio estratosférico vale a pena o risco.
Só que, na verdade, sabemos muito bem para onde vai esse dinheiro investido. São fundos que sustentam conglomerados com braços em operações não exatamente legais nos países árabes, na África subsaariana, em cartéis americanos. Essa grana sustenta mercenários, venda de armas para grupos revolucionários – com aspas aqui –, tráfico internacional de pessoas, ou mesmo para incentivar plantações de matéria-prima para entorpecentes, papoula no Afeganistão, folha de coca na Bolívia, essas coisas. Dinheiro arriscadíssimo, mas com enormes taxas de retorno. Quando o sujeito chega ao segundo mês sem bater a cota, não titubeia. Ele não quer perder o emprego. Hoje em dia, é cada vez mais difícil conseguir algo parecido com a Véritas.
Com uma política de liberdade total com os empregados, Miguel não se dizia nem a favor nem contra esse tipo de investimentos – simplesmente não comentava. Claro que ele os conhecia, mas fazia ouvido de mercador. Pregava apenas o máximo de transparência possível, para que os investidores tivessem noção de para onde estaria indo o seu dinheiro. A grande maioria dos clientes, porém, ignorava a composição das suas carteiras, e se importava apenas com os rendimentos. Não me lembro de nenhum colega citar alguma reclamação.
Ele, Miguel, ele era assim. Um espelho para todos nós. Não sei como agora ele está lá, no meio da Cinelândia, vestido de palhaço, com uma peruca ridícula, nariz vermelho, nariz vermelho!, e tentando fazer as pessoas rirem. Quem vai rir dele? Quem vai rir hoje em dia?
Não sei como ele chegou lá, ali. Não sei mesmo. Nas últimas semanas, ele não parecia mais nervoso que o normal. Até a última vez que eu o vi, manteve sua fleuma inabalável. Seu sorriso altivo. Uma saúde invejável. Um corpo rígido como um tronco de árvore. Um ex-surfista que ainda hoje caía na água. Sua família era perfeita. Com uma mulher, linda e inteligente, Ana, Ana Lúcia, uma médica pediatra reconhecidíssima, e filhos maravilhosos terminando a faculdade fora do país – o que houve com ele?
Fico perdido. Esse colapso parece que liberou alguma coisa represada, algo que não podia sair – em mim, em mim, estou falando de mim. Tentei buscar alguma direção, mas quanto mais eu procuro, mais eu me perco. Parece uma janela que foi rompida, arrombada, destruída, e os fantasmas se libertaram. Tenho que me reerguer, mas meu corpo está pesado. Estou sempre cansado, mas não consigo dormir. Nada prende a minha atenção, mas estou sempre ansioso, como se algo pudesse acontecer a qualquer momento, e eu precisasse estar lá, para presenciar, para ser a testemunha. Minha garganta se mantém constantemente inflamada, como se ela prendesse as minhas falas, fazendo com que elas voltassem e adoecessem também o meu estômago. Tenho ânsia de vômitos e tonteiras a cada vez que discuto – e eu estou brigando a toda hora com a minha mulher, com os meus filhos. Não sou assim. Estava tudo bem para mim. Estava tudo bem...
Por isso que eu aceitei vir aqui. Nada tem sentido. Só sei o que eu escuto por aí, pelos corredores. E não se pode confiar em fofocas – mas é o que temos, é o que temos... Uns dizem que ele foi por livre e espontânea vontade – o que não é possível. Ele jamais iria por livre e espontânea vontade. Não Miguel, o Miguel que eu conheci. Mas era isso que tinha acontecido, segundo esses: que ele tinha acordado, um dia como outro qualquer, e desistido. Simplesmente desistido. Não posso acreditar, não posso acreditar.
Outros que o estopim foi uma cena a que ele assistiu. A senhorinha do café me contou, não aguentou e me contou que viu quando aconteceu. Achei estranho, mas deixei ela falar. Eu estava muito perdido, não conseguia nem mesmo controlar os meus passos. Fraco, febril, como se tivesse gasto toda a minha energia tentando entender. Estava na minha mesa, ela começou a falar, levantei o rosto, ela estava com o semblante assustado, como se tivesse visto uma represa ruir e afogar uma cidade inteira. Ela contou uma história impressionante, que eu não consegui captar os detalhes, só as pinceladas mais fortes, uma história sobre um dia em que Miguel estava saindo daqui, ela disse, um dia qualquer. Achei estranho de cara: raramente ele saía do escritório. Sua vida era: casa no Alto, carro, motorista, insulfilm, celular, Centro, almoço e tudo o mais dentro do escritório, e voltar para casa, tarde da noite. Daí, achei estranho, ainda mais estranho, mas eu não tinha forças para falar nada, eu estava atônito. Deixei ela continuar. Miguel estava saindo e – sabe o que é mais surreal para mim? Miguel parece feliz agora. Eu o olhei ali na Cinelândia e ele fazia malabarismos, sorria para as pessoas, entregava rosas. O Miguel? Não tive coragem de falar com ele. Não podia ser ele. Pois ele até mudou de nome, para um nome mais que ridículo, um nome que não combina com ele. Diz que é o Palhaço Pixote. E ele sorriu para mim! Como se ele tivesse me convidando, como se ele... – a senhorinha do café, a senhorinha do café (não sei o nome dela). A senhorinha do café veio me dizer que o Miguel (qual é o nome da senhorinha?) saiu do escritório um dia, ele saiu, calmo, aparentemente calmo, sol forte e seco, céu azul de outono, ela voltava do almoço, mas, quando ela o viu, parou na esquina, não queria cruzar, tinha sido ele, ela sabia, ela tomou um esporro, ele era impenetrável, ele tinha um único movimento (palavras dela), rígido, um único objetivo e seguia nessa direção e não tinha nada que o desviasse, ela disse. Miguel viu uns policiais se aproximando, e tinha um grupo de mendigos, gente que dormia ali, todos os dias, há muito tempo, mas piorou, em pouquíssimo tempo, a marquise lotada, colada à Véritas, Miguel, desprevenido, aberto, desatento, desprotegido, ela disse, Miguel, inocente, inocente?, e a polícia chega e começa a bater, bater, mulher, velho, até criança, várias famílias, e os policiais, cassetete e spray, e Miguel, o Miguel que nós conhecemos, o Miguel – ele mesmo – o Miguel correu para lá, imagine, como assim o Miguel? – o Miguel se meteu na frente dos policiais, o Miguel se meteu e eles continuaram, sem enxergar, e bateram nele também, o terno rasgou, perdeu um sapato, caiu no chão, ela disse, só depois os policiais perceberam: opa!, e pararam, pararam, ofegantes, mas já era, já tinha passado, Miguel no chão, ensanguentado, desalinhado, sem o sapato direito... Não sei se acredito: o Miguel, ali, deitado, sem sapato, rosto no chão sujo? Não pode ser. A senhorinha continuou – e eu não conseguia esboçar qualquer reação: os policiais o levantando, ele zonzo. A senhorinha correu, ajuda, ajuda!, os policiais contemporizando, amenizando, não foi bem isso, por que você aqui?, é sua culpa, quem mandou se meter aqui? A senhorinha o levou, os policiais sumiram, a calçada livre, novamente – por alguns instantes, disse ela, e logo os moradores voltaram, para onde eles iriam?, ela perguntou, e eu não tinha o que responder – e ela e ele atravessaram a rua, foram para uma praça pequena aqui perto, e, quando chegaram, ele olhou para ela, abriu um sorriso e disse “obrigado”, todo o rosto aberto, aliviado. Ela disse. Ele estava leve, ela disse. Ele estava livre, ela disse.
Depois eu descobri que ela inventou toda essa história. Foi o que me disseram. Disseram que ele tinha ido para a Cinelândia porque tinha uma vontade desde criança de ser palhaço, tinha visto uma cena quando pequeno que o marcou, num circo, num circo na Praça XI, e a cena reverberava sempre nele, e resolveu simplesmente seguir sua vocação, agora, já velho, porque ele podia, excentricamente. Abandonar a família, abandonar o emprego, abandonar a realidade e viver num mundo à parte, completamente louco. Mas também era tão aleatório. Tudo era aleatório por demais, nada faz sentido...
Até eu mesmo. Eu mesmo menti também. Tive vergonha de admitir o que eu fiz, não sei por que. Talvez porque ele me confundiu – a tranquilidade dele... não, não foi a tranquilidade. Foi a sensatez. Ele não parecia perdido, como eu esperava encontrá-lo. Ao contrário. Ele parecia, ele parecia... feliz. Merda!, eu não consigo, isso, assim... Não consigo... É muito para mim. No dia que ele me chamou, ali, na praça – eu tinha ido lá, queria vê-lo, com os meus olhos, e ele me chamou, me chamou sem pronunciar meu nome, ele me chamou apenas me olhando, sorrindo, calmo, me oferecendo uma flor – eu, hipnotizado, intrigado, sem saber o que fazer, o que pensar, me aproximei. Nós não conversamos nada. Foi um silêncio, que apagou todas as buzinas e as conversas e os barulhos ao nosso redor. Ele apenas me entregou a flor e sorriu, sorriu o maior sorriso que eu já vi na vida. Quando a senhorinha falou que ele sorriu para ela, eu lembrei desse sorriso – mesmo que ela tenha me falado antes, mas eu lembrei, mesmo antes, já lembrei antes de falar com ele – ele, que nunca tinha sorrido, nunca o tinha visto sorrir esse sorriso, não o outro, não o anterior. Foi demais para mim. Tive a certeza de que ele me reconheceu.