quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Niilismo em tempos de airfryer

Aproveitando o período natalino e os remédios contra a gripe que me atacou, que me deixaram um pouco grogue, vou cometer uma pensata sobre dois dos temas que me acompanham nos últimos tempos: niilismo e airfryer.

Ganhamos recentemente uma dessas panelas que fritam com o ar, sonho de consumo de 9 em cada 10 habitantes da classe média escolarizada em comida via programas televisivos, jovens que já cruzaram o cabo da boa esperança da metade dos 30, ou já aportaram e ultrapassaram os 40. Uma galera que já começa a se preocupar com a saúde, além do sabor (clássico dos 30) e do corpo (dos 20 em diante).

Reza a lenda que não é preciso usar óleo para fazer batatas fritas dignas das publicidades dos mais gordurosos fastfoods internacionais. Mas não apenas: todo o tipo de fritura seria feita sem qualquer gordura, usando uma tecnologia que eu não tenho a menor ideia de como funciona e que não me surpreenderá caso, em alguns anos, descobrirmos que causa câncer, assim como o micro-ondas e o telefone celular. O que leva a crer que vamos sair das doenças coronárias para algo, bem, diferente.

Pois bem: descobrimos que não. Sem óleo a batata não fica frita que nem a da foto da embalagem. O amido sai e ela fica esbranquiçada e um pouco ainda crua, quando não ligeiramente dura. Poucas tinham a crocância junto à manemolência, dignas dos grandes pratos. O mesmo aconteceu com os nossos bolinhos de lentilha: claros, pouco crocantes, pouco firmes.

Foi então que chegou o dilema da vida que causou todo esse texto: usar ou não usar óleo para dar mais consistência, sabor e crocância para os alimentos?

Percebemos que podemos entender o nosso mundo atual a partir da comida, mais especificamente do uso da airfryer.

Num momento histórico em que certas pessoas se orgulham das suas escolhas alimentares mais toscas, principalmente por serem toscas, numa busca por uma autenticidade mais autêntica, como se fosse um graal, um porto final, uma meta de vida, um alvo a se atingir, e nada mais importante durante o caminho - ao contrário, quem estiver pelo caminho, em dúvida se deve ou não segui-lo, será considerado um pária, bem, neste momento, a airfryer já nasce como uma frescura. São os fundamentalistas da gordura ou, para usar a nomenclatura nietzschiana, os niilistas passivos.

São aqueles que não querem qualquer tipo de modificação, não podem abalar a estrutura do edifício metafísico que sustenta o peso das suas vidas. Portanto, não adianta, não há frituras sem ser com frigideiras e com toneladas de óleo - de preferência com imersão, na banha de vários dias. Qualquer movimento para fora desse tipo de catequese é visto como um tipo de fraqueza, como maricagem, como heresia.

Não adianta argumentar com esses tipos, dizendo que o fundamentalismo está nos que querem apenas uma forma de comer as coisas, sem qualquer tipo de flexibilidade, porque eles defendem que "sempre" foi assim, que eles chegaram "primeiro" e estão apenas seguindo a tradição. É extremamente difícil qualquer diálogo com o tipo.

Há o fundamentalismo do lado extremamente oposto, e, de certa forma, muito parecido: aqueles que não podem cogitar a possibilidade de usar qualquer tipo de óleo na airfryer, sacrificando o resultado final do sabor em prol de um bem "superior". São os praticantes do ideal ascético, que geralmente se vangloriam de conseguir passar por mais provações que você, e, novamente, te chamam fraco por "cair em tentação". A "verdade" está sempre além ou aquém. Há uma mortificação do corpo em prol da saúde, ou melhor, de uma saúde. Os desejos mais primitivos são negados por conta de um ideal que jamais será atingido na sua completude.

Numa terceira ponta deste triângulo niilista, há os que não se importam muito com essas coisas - nem com nada. Comida para eles é apenas uma obrigação, nunca um prazer, jamais uma alegria. É um fardo que se tem que passar e saber como se faz a comida não está mesmo nos planos de curto, médio quiçá nos de longo prazo. Fritar com óleo velho ou sem óleo na airfryer, tanto faz, o que eles querem é a comida no prato, pronta. Provavelmente nem sabem a diferença de uma coisa para a outra e se perguntarem como aquela comida chegou ali na frente deles vão citar o supermercado, apenas, ou um app de entregas.

No meio do caminho ficam aqueles testando a airfryer, como quem experimenta a vida. Podemos colocar um pouco de óleo? O quão pouco? Será saudável? Devemos colocar óleo em todas as faces do bolinho? Os que acham que não há qualquer resposta definitiva sobre as coisas e que vão aos poucos tentando descobrir os caminhos, errando e aprendendo. Sabem que há vezes que nada substitui um boa fritura clássica, deep fry. Se for de algo empanado, ainda melhor, tipo queijo provolone - melhor petisco de boteco. E sabem que isso não pode ser uma comida diária, nem uma defesa de qualquer superioridade moral. Que há momentos para a salada, também, em grandes proporções, que limpam os cantinhos e rejuvenescem as células. E, principalmente, que é na diferença entre as comidas que o corpo fica mais fortalecido.

domingo, 22 de dezembro de 2019

"Ode ao homem", de Sófocles

{CORO}Muitos os terrores e nenhum {EST. 1}
mais terrível do que o homem.
Ele além do mar grisalho
vai ao vento tempestuoso
335
através dos vagalhões
fragorosos e extenua
a suprema dos Deuses
Terra imortal infatigável
volvendo ano após ano
340
o arado com o equino.
Ele circunda e captura {ANT. 1}
o bando de aves leves,
a grei de feras agrestes
e a salina fauna marinha
345
nas dobras urdidas da rede,
prudente varão: domina
com perícia a selvagem
fera montesa, mantém
350
crinudo equino sob jugo
e indômito touro montês.
Aprendeu a palavra, {EST. 2]
a inteligência volátil,
355
as urbanas maneiras,
a fuga da geada inóspita
do céu e das intempéries,
multívio, ínvio a nenhum
360
porvir. Somente de Hades
não saberá fugir,
dos males impossíveis
descobriu a fuga.
Por hábil perícia de arte {ANT. 2}
além da expectativa
365
vai ora mal, ora bem;
venerando leis da terra
e jurada justiça dos Deuses,
alto na urbe; sem urbe
370
se por audácia não bem.
Não seja meu conviva
nem pense igual a mim
375
quem age assim!


Tradução de Jaa Torrano
segundo estabelecimento de texto de H. Lloyd-Jones e N. G. Wilson (OCT). Daqui.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Portfólio

O Globo
Cobertura de cinema
https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/acusados-de-machismo-em-debate-claudio-assis-lirio-ferreira-dizem-sofrer-censura-17403739
https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/filme-que-horas-ela-volta-motiva-reflexao-sobre-como-cinema-atual-retrata-busca-por-cidadania-17349061

Cobertura Rock in Rio
https://oglobo.globo.com/cultura/rock-in-rio/taticas-para-fugir-da-lama-do-caos-no-trajeto-para-rock-in-rio-17501419

Texto sobre H. P. Lovecraft
https://oglobo.globo.com/cultura/livros/ignorada-por-decadas-obra-de-hp-lovecraft-renasce-com-novas-edicoes-no-brasil-14955626

Texto sobre M. Heidegger
https://oglobo.globo.com/cultura/livros/publicacao-dos-diarios-de-heidegger-aprofunda-debate-sobre-sua-ligacao-com-nazismo-14277786

Entrevista com Tim Burton
https://oglobo.globo.com/cultura/tim-burton-fala-das-inspiracoes-para-filme-sombras-da-noite-5268917

Evento sobre Jorge Amado na British Library
https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/jorge-amado-para-europeus-de-ronaldo-pelli-449871.html

Texto sobre livraria Bernard Quaritch, de Londres
https://www.quaritch.com/wp-content/uploads/2014/05/o-globo.pdf

Colunista do “Segundo Caderno” – O Globo

Coluna sobre Banksy
https://oglobo.globo.com/cultura/artista-grafiteiro-5776871

Coluna sobre Damon Albarn, músico inglês
https://oglobo.globo.com/cultura/musico-maquinista-6046560

Coluna sobre Olimpíadas
https://oglobo.globo.com/cultura/diante-do-inevitavel-5637286
Coluna sobre Zadie Smith
https://oglobo.globo.com/cultura/coincidencias-5910030


G1 (http://g1.globo.com/)

Entrevista com atores de “Harry Potter”
http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2012/03/g1-visitou-estudio-onde-foi-filmada-saga-harry-potter-saiba-como-e.html

Crítica de filme dirigido por Charlie Kaufman
http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL1089268-7086,00-DEPOIS+DE+GANHAR+O+OSCAR+ROTEIRISTA+CHARLIE+KAUFMAN+ESTREIA+NA+DIRECAO.html

Entrevista com Rodrigo Santoro
http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL784592-7086,00-RODRIGO+SANTORO+FALA+A+IMPRENSA+SOBRE+O+SEU+NOVO+FILME+LEONERA.html

Entrevista com Pilar del Río sobre filme sobre José Saramago.
http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2010/09/jose-e-pilar-mostra-intimidade-e-detalhes-da-vida-do-casal-saramago.html

Cobertura do acidente com voo 447, da Air France
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1182924-5602,00-MINISTRO+DA+FRANCA+DIZ+QUE+DOR+DA+PERDA+NAO+TEM+NACIONALIDADE.html

Crítica de disco do Gnarls Barkley
http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL362463-7085,00-EM+NOVO+TRABALHO+GNARLS+BARKLEY+FAZ+ST+ELSEWHERE+II+SEM+O+CHARME+DO+PRIMEIR.html

Crítica de filme de Tim Burton
http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL287556-7086,00-SWEENEY+TODD+MOSTRA+O+MUSICAL+A+LA+TIM+BURTON.html


BBC, Folha, Piauí e outros

BBC
https://www.bbc.com/portuguese/geral-37236480

Texto sobre AI-5, para a revista “Pessoa”
https://www.revistapessoa.com/artigo/2683/imprevisao

Texto para a revista “Piauí”
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-pioneiro-de-bangu/

Texto para a “Index on Censorship”, revista inglesa sobre liberdade de imprensa, sobre os protestos de 2013
https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/0306422013501769

Texto sobre Hélio Eichbauer, na revista “Continente” (junto a Mariana Filgueiras)
https://www.revistacontinente.com.br/edicoes/207/helio-eichbauer

Texto para a “Folha de S. Paulo”, sobre James Joyce
https://livrosetc.blogfolha.uol.com.br/2012/06/20/retrato-de-dublin-quando-bloomsday/

Texto para UOL
https://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2013/08/05/no-rio-e-mais-gostoso-diz-carlos-saldanha-sobre-escolha-da-cidade-em-filme-internacional.htm

Tradução publicada na “Folha de S. Paulo”
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/847611-garcia-marquez-por-julio-chang.shtml

Memória Globo
Perfil Otávio Muller
http://memoriaglobo.globo.com/perfis/profissionais/otavio-muller/otavio-muller-trajetoria.htm

Roteirista

Trailer “A última abolição”
https://www.youtube.com/watch?v=VOT2r-HKTsw

Trailer “Meu amigo Fela”
https://www.youtube.com/watch?v=uUR1d0nAUxU

Copa Studio
“Tromba Trem” – episódio: “Wasabi”
https://www.youtube.com/watch?v=MTqlPslkPYo&list=PLXwGAIxbz8bXhHtt5smaTXsqKL6TtIekz&index=3&t=0s

“Tromba Trem” – episódio: “Natal encalhado”
https://www.youtube.com/watch?v=23OcRLLG7kM


Revista de História da Biblioteca Nacional

Índice da revista
file:///C:/Users/Ronaldo/Downloads/sumario_2.pdf

Perfil Antonio Callado
http://observatoriodaimprensa.com.br/armazem-literario/_ed784_o_quieto_e_doce_ingles/

Origem da rabanada
https://pt.scribd.com/doc/193596050/Natal-com-rabanada-Revista-de-Historia

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Democracia já!

Nesses tempos em que os neofascismos pululam pelo planeta, aqueles que tentam se afastar para o mais longe possível dessa onda se veem com dificuldades para conseguir forças para combater diante de tantas e tamanhas agressões, de diferentes calibres, vindas de várias direções, quase simultaneamente.

Se não conseguem revidar, os antifascistas raramente, para não dizer nunca, conseguem sair de uma posição em que se é menos passivo para tentar começar a pautar o jogo. Não conseguem propor discussões de um jeito que empolgue, ou ao menos cause algum tipo de emoção forte, como são, convenhamos, aquelas propostas pelos neofascistas - seja pelo entusiasmo de quem apoia ou pela explícita ojeriza de quem odeia qualquer das intervenções do grupo extrema-direitista.

No campo das palavras de ordem, podemos listar, por exemplo, toda uma lista de slogans em que se prometia apenas a negação da proposta do outro, como, desde 2014, "não vai ter Copa", "não vai ter golpe", "ele não", ou o genérico "não passarão",  relembrando os republicanos na guerra civil espanhola, no início do século XX.

Estamos tão acuados, no canto do ringue, que só conseguimos dizer: não, isso não! O problema é que, apesar das vontades representadas nesses sinceros gritos, houve copa, houve golpe, ele foi eleito e, como responderam esses dias no twitter, eles passaram [refletindo, aliás, a famosa música dos fascistas-monarquistas espanhóis, quando derrotavam / após derrotarem seus oponentes].

Outro problema enfrentado pelo campo que se opõe ao neofascismo é conseguir encontrar um termo, uma ideia, algo que junte todos da oposição [ou seriam os divergentes?] sob o mesmo guarda-chuva. São muito diferentes entre si para concordarem com um "nome" apenas.

Se acreditarmos em pesquisas recentes, no Brasil, ao menos, há uma primeira divisão em três grandes grupos: Um terço que votaria ainda hoje no atual presidente, um terço que não votaria jamais no presidente, e um terço que se vê contra o presidente mas também não gosta de um pensamento de "esquerda", no caso representado pelo PT e outros grupos.

As disputas internas desses grandes grandes segmentos também mostram que há tantas divisões que nenhum deles pode ser considerado uníssono. Entre os apoiadores do presidente, por exemplo, há os que votariam nele mesmo se ele matasse um homem em frente às câmeras, e há os que o preferem apesar dos mais pesados pesares. Os de "centro" também pendulam entre os que tapam o nariz e votam no mal menor, à esquerda, e os que acreditam que todos os problemas do mundo são personalizados no PT e congêneres.

E o que dizer da esquerda, tradicionalmente já atomizada, por considerar que cada um tem direito a opinião e voz? Uma das grandes discussões, há um tempo, é sobre a necessidade de se "radicalizar", para verdadeiramente "polarizar" com o lado neofascista, ou tentar fazer uma "ponte" em direção ao "centro", para tentar aumentar a capacidade de articulação.

[Todos os termos que vieram entre aspas precisariam de muitas explicações já que não está claro o que seria radicalizar, como polarizar, a maneira de fazer uma ponte e, principalmente, não faz qualquer sentido lógico chamar partidos de direita como se fossem de "centro".]

Uma das formas discutidas para aglutinar a esquerda seria admitir seu lado "socialista". É uma bandeira que muita gente boa defende, por imaginá-la abrangente o suficiente e profundamente popular, pois preocupada com quem mais precisa.

O problema é o quanto essa palavra está carregada de um determinado tipo de preconceito, a partir de anos de desgaste e de experiências ditatoriais que foram e são associadas ao termo. Ou seja, o termo mais afastaria que aproximaria. Além disso, tal denominação é muito pouco clara, vinda sozinha, o que exigiria uma segunda explicação intrinsecamente: que tipo de socialismo? Ou ainda: o que é mesmo socialismo, hein?

Agora, há um conceito que mesmo os apoiadores do presidente atual defendem, um conceito que, apesar de bastante abrangente e igualmente pouco claro a princípio, é entendido por todo mundo e defendido por "todo mundo" - inclusive, por muitos dos apoiadores do regime de extrema-direita - um conceito que é, ou pode ser, caso bem desenvolvido, representativo de uma oposição radical a toda ideia neofascista. É a boa e velha Democracia.

Ninguém, apesar do conturbado ano de 2019, tem coragem de vir a público pregar contra ela. Qualquer menção a atos que lembrem dos períodos ditatoriais, como as citações ao AI-5, por exemplo, é amplamente rechaçada, por até grandes representantes do "centro", como a Globo ou o presidente do Congresso. Mesmo quem, em manifestações da direita, queria "intervenção militar" quer também democracia - segundo uma pesquisa que li recentemente, e apesar de toda a contradição aparente. Ou seja, ninguém é "contra" a democracia, na teoria. E na prática?

Bem, a definição de democracia é das mais complexas. Conceito criado lá na Grécia Antiga, que veio se modificando desde então, por onde ela passou, não é simples explicar em poucas palavras. Mas a adoção de um termo dessa natureza se mostraria, em princípio, contrário a qualquer atitude autoritária da parte do governo. Democracia não é, ou não pode ser, a ditadura da maioria, para citar um caso. Isso já poderia isolar qualquer tipo de declaração do presidente, por exemplo, de que a arte ou a cultura não deve estar a serviço de "minorias".

A minha sugestão é a recriação desse conceito, para se espalhar em diversas áreas da política, para pautar todas as nossas ações públicas, para ser o guarda-chuva que precisamos, para nos unir, para ser usada como boia de salvação. Exemplos: A economia não pode atender apenas a interesses de empresários, ela tem que ser pensada para que mais pessoas - se não todas - possam ganhar dinheiro e se tornarem - um pouco mais, ao menos - independentes. A Floresta Amazônica não deve ser pensada como um entrave para a produção agrícola já que ao mexer na floresta se perturba direta ou indiretamente todo o mundo - literalmente. E desse modo sucessivamente. Pessoas mais balizadas que eu nas diferentes áreas de atuação da política institucional podem pensar agendas mais "democráticas".

Assim como na época da ditadura subiram aos palanques das "Diretas Já!" políticos de diferentes espectros, que seriam em breve competidores em eleições por vir, mas que então pregavam a mesma coisa [voto direto para presidente], deveríamos nos unir em prol da ferrenha defesa da democracia, que cambaleia a cada golpe neofascista. Curiosamente, o pessoal da extrema-direita parece só querer manter intacto, como fachada, exatamente o recurso do voto para os cargos eletivos. Temos que mostrar que a democracia tem que ser mais profunda que a mera escolha de nossos representantes políticos. Democracia já!

sábado, 7 de dezembro de 2019

Reformulando: crise de uma estética

A arte não funciona apenas no sentido mais pueril da palavra estética. Ela não serve apenas, ou, que seja, principalmente, para agradar os sentidos. Há nela componentes que são captados, direta ou indiretamente, e produzem mundo. Dito de outra forma: instituem valores, rasgam o tecido do real e estabelece novos parâmetros.

A arte não é o único instituto a quebrar e estabelecer paradigmas. Segundo Deleuze e Guattari, a filosofia e a ciência também alargariam (ou, em outros formatos, estreitariam) horizontes; mudariam, enfim, a linha do horizonte de lugar.

Não precisa ser algo inovador ou "revolucionário" - qualquer evento que cause efeito estético - e aqui a noção deve ser lida no seu sentido mais alargado, de provocar sensações - é algo artístico.

Quando se diz que uma determinada época - a nossa, por exemplo - sofre uma crise estética, acho que o diagnóstico está ligeiramente enganado.

É claro que algo acontece agora - e é óbvio que a questão estética não estaria livre da História. Porém não é bem uma crise estética, mas uma crise de uma determinada estética.

Houve uma aparição de determinada tipo de estética para um número muito amplo de pessoas, enquanto outro tipo de estética, que raramente era confrontada, foi colocada em questão, perdeu sua posição de superioridade absoluta.

O que essa estética que surge defende? Em primeiríssimo lugar, uma volta a um tempo que nunca existiu. Há um saudosismo e uma nostalgia que não podem nem ser vistos como conservadores: elas são retrógradas.

Não se quer explorar novos mundos ou ampliar horizontes, se quer voltar a uma infância, mesmo que fantasiosa, a qualquer custo.

Para mim, a chave de entendimento passa pela insegurança generalizada. Não se tem qualquer certeza de praticamente nenhum aspecto. Mesmo que esse seja o sentimento mais próximo da realidade que existe, pode-se pensar que houve um baque muito grande intergeracional, e não sabemos até agora como absorver isso.

Estamos querendo mais e mais proteção, mais cuidado, mais certezas. Em nenhum lugar nos sentimos acolhidos, ou estamos em casa. Como ter ainda força para enfrentar ainda uma novidade artística, que vai trazer ainda mais dúvidas?

Em outros momentos,  a questão é ligeiramente ainda mais cruel: que horas conseguiremos nos dedicar a isso?

Quando vão destruindo tudo a nossa volta, é preciso uma força descomunal para sair do lugar. Não é todo dia que conseguimos. Às vezes queremos apenas o conforto do já conhecido.

A farsa da teoria do pêndulo

Muita gente acha que vivemos em uma espécie de pêndulo histórico, variando entre lados opostos do espectro político, e que estaríamos, neste instante, apenas numa posição na direita extrema. Acho que esse raciocínio é de um otimismo que beira a ingenuidade.

O primeiro problema desse raciocínio é sugerir que o passado é a certeza do futuro. Porque a História agiu de determinada maneira, ela vai se repetir para sempre. O que é uma tremenda besteira.

Nem vou falar de revoluções, grandes rasgos no real ou algo do gênero, mas pensemos em como, de alguma forma drástica, os países pobres raramente têm períodos extensos de independência [uso esse termo para tentar ser benevolente].

Qualquer movimento para fora da sua posição estabelecida pela banca internacional e logo você é forçado a voltar para o seu lugar cativo. ["Banca" e "cativo" não foram palavras escolhidas aleatoriamente.]

Não dá para pensar em ciclos, mas um tipo de comportamento padrão em que, vez por quase nunca, escapamos.

Que pêndulo é esse que só tem um lado?

Em segundo lugar: quem garante que dessa vez não saímos dos trilhos?

Mesmo que essa teoria do pêndulo fosse verdadeira, nada impede que, dessa vez [ou da próxima], a gente [eles] tenha [tenham] passado dos limites. Os donos do jogo decidiram jogar sem meias palavras: pobre não serve nem mais para consumir.

Por fim e talvez mais triste, porque é uma negação constante: quem garante que vai ter volta? Se o pêndulo existe, se estamos nos conformes, tudo está normal, como vamos ultrapassar a barreira da catástrofe ecológica?

Talvez não dê tempo de sair da direita extrema.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

'O medo', Carlos Drummond de Andrade

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

In A Rosa do Povo
José Olympio, 1945