Tenho uma suspeita de que a ficção científica cumpre uma "função" que era reservada, ali pelo século xix até a chegada dos vanguardistas no início do século xx, para o realismo. Se o realismo tinha como proposta -- como o nome sugere -- retratar a realidade, a ficção científica, de uma forma bem mais curiosa, faz o mesmo processo atualmente. Não apenas porque vivemos em um tempo e em uma sociedade que já poderia ser considerada como digna de uma história de ficção científica -- tanto do ponto-de-vista da tecnologia, quanto da relação com as nossas expectativas sobre o futuro --, mas porque outros estilos, menos "fantasiosos", mais colados ao registro puramente factual, não conseguem competir com a realidade contemporânea. Fenômenos com a dimensão da crise ecológica, que chega a mudar a era geológica em que vivemos, ou a nossa relação com algoritmos, que acabam decidindo boa parte de todas as nossas relações (sociais, comerciais, amorosas etc.), são tão complexos que o realismo parece apenas enfadonho quanto colocado ao lado. Por fim, a ficção científica, que eu classifico talvez de forma pouco ortodoxa como uma das vertentes da literatura fantástica, também pode atuar como potente fonte imaginativa num período histórico que parece que estamos sempre condenados a um determinado destino. Se o realismo retrata o presente ou o passado, tempos já consolidados (mesmo que essa consolidação esteja sempre em disputa), a ficção científica propõe (no caso da utopia) ou conjura (da distopia) um futuro, matéria essa que precisa ainda e sempre ser moldada.
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