sexta-feira, 19 de abril de 2002

Velório


Por mais que fosse tátil, o velório não me parecia real. Parecia que minha
imaginação estava toda hora me enganando. Quando tentava raciocinar o motivo
que me levou para ali, ela me distraia com algo. Inclusive a idéia desse
texto.
Todas as pessoas foram lá. Mas a atriz principal não estava desempenhando
seu papel. Ela estava deitada. Com uma vontade louca de rir de todas aquelas
caras tristes e olhos inchados.
E o próprio velório só tinha mesmo o papel de velório. Ele só queria que as
pessoas ficassem tristes. Não lembrava em nada a menina que tinha a
gargalhada mais linda do mundo. E que sorria sem fazer esforço.
A cerimônia era fria e completamente distante. Não conseguia identificar
nenhum sinal da Lua ali. Qual era a intenção disso? Fazer com que as pessoas
ficassem tristes? Acho que não. Acho que nem tinham intenção nenhuma. Aliás,
não acho nada.
Fico me policiando para não sentir nada que seja completamente egoísta. E
foi fácil não sentir falta dela naquele velório. Algo tão impessoal. Tão
comum. Tão triste. Ela não era, em nenhum momento triste.
Tento me lembrar de momentos dela chorando. Sei que ela chorou. Lembro que
ela chorou. Só que a imagem não vem na cabeça. Sei que ela já ficou triste
ao ponto de chorar. Mas não fazia parte dela isso. Não foi passível de ser
gravada como lembrança da Lua por não ser parte dela. A tristeza não fazia
parte dela.
Se dizia incompleta. Ou qualquer outra palavra que defina a impossibilidade
de fazer mal às pessoas. Dizia que um dia, queria ser igual as irmãs, que
não conhecem o significado da palavra fidelidade com os namorados. Mas não
conseguia. Não conseguia magoar as pessoas. Nem se quisesse.
Foi dela a idéia do meu apelido na faculdade. "Belo". Nome do vocalista de
uma banda de pagode brega da época. Claro que como calouro, não deixaram que
o apelido fosse um elogio e ele se transformou no que é hoje. Foi dela os
melhores elogios que recebi na minha vida.
Eu costumava chamá-la no início do corredor da faculdade para o outro lado
de "a mulher mais linda do mundo". E ela era. E ela ainda é. E todas as
vezes que fecharmos os olhos e colocarmos a mão no coração perceberemos que
ela está lá. Sempre linda.
Ela era uma menina com uma cor vibrante. Adorava praia. Emanava uma luz
muito forte de dentro de si. E no velório era tudo cinza e preto. Não era
ela ali. Parecia que tinham colocado uma imagem dela, mal feita, para que
pudéssemos rezar. Como se ela tivesse virado santa.
Mas era tão distante da realidade dela. Ela não gostaria nunca de ver
pessoas chorando ao seu redor. Devia estar esperando que alguém lembrasse e
fosse comprar a sua garrafa de sangue de boi. E colocasse um som para toca
Jamiroquai.
No enecom do ano passado, ela fez uma oficina de espumagem. Os alunos aproveitaram e produziram as
próprias fantasias para a festa que aconteceria no último dia. Ela fez uma
fantasia de floresta.
Ela era capaz de produzir muito com pouquíssimo. Adorava reciclagem. Fazia
os melhores trabalhos da faculdade. Devo o meu melhor CR para ela. Lembro de
um trabalho que discutimos muito porque não concordamos na sua formulação.
Tiramos 7. Ela ficou puta comigo. Foi a pior nota dela da faculdade. Mas não
guardava rancor. Me perdoou logo depois.
Tenho várias estórias que se transformam na história agora. Mas o que mais
me orgulha é de ter sido amigo dela. A Lua era uma mulher que você se sentia
orgulhoso por ficar perto. Por saber que existe e você pode falar com ela.
Eu sei que não mais por enquanto. Mas isso realmente não importa muito. Se
ela já existiu, já foi o suficiente.
Ela era imprevisível. Capaz de fazer coisas que surpreendiam por ser tão
ousadas mesmo que fossem bastante simples. Uma simplicidade cativante.
Simplesmente genial. Ela era capaz de cantar parabéns para ela mesmo, por
exemplo. Só para comemorar o seu aniversário. No meio de um velório, se
preciso.
E foi o único momento que ela esteve presente lá. Quando rolou lágrimas no
rosto de todos. Não de querer que ela estivesse junto. Não de saudade. Não
de qualquer outro tipo de sentimento egoísta. Porque ela não era egoísta e
nesse momento todos compreenderam. Mas de alegria. De felicidade por tal
menina ter existido no meio de todos nós.
A despedida da Lua

SILENCIE-SE
SILÊNCIO
VÁ PARA A RUA
ESCUTAR O SILÊNCIO
AGACHE-SE
E ESPERE
A LUA IR EMBORA
OBSERVE-A
PELA ÚLTIMA VEZ
A PARTIR DE AMANHÃ
TODAS AS NOITES
SERÃO SILENCIOSAS
SEM NENHUMA LUZ
NADA QUE EMANA
DO MEIO DO ROSTO
NENHUM SORRISO
OU GARGALHADA
E VOCÊ SERÁ
APENAS
UMA PEÇA
DE UM JOGO DE MONTAR
SEM INSTRUÇÕES
NA CAPA
E EU ME ORGULHO
MUITO DISSO
SABER QUE REALMENTE
A EXISTÊNCIA
FAZ QUALQUER
TIPO DE BARULHO
POR ISSO
SILENCIE-SE
CHEGAMOS A CONCLUSÃO
QUE TODAS AS
PALAVRAS QUE
IMPORTAVAM JÁ FORAM
DITAS
POR ISSO
NÃO ME ENCHA
DESNECESSARIAMENTE
VÁ PARA UM
CANTO
E LEMBRE DA ÉPOCA
QUE EXISTIA UMA LUA
NO CÉU TODA NOITE
LUA NNA ABÓBODA CELESTE
EXISTIA A LUA NA TERRA
DOS SONHOS
DOS SONHOS PERCEPTÍVEIS
E ATÉ PALPÁVEIS
AGORA SÓ PODEMOS
SILENCIAR
E ESSA VAI SER NOSSA
HOMENAGEM
linGUAGeM caNInA


São João do Rio Vermelho era uma cidade pequena do interior do Rio de
Janeiro. Um lugar onde as pessoas se conheciam pelo nome. E onde alguns
destinos se confundiam e se cruzavam.
Existia uma rua principal. Onde moravam as principais pessoas da cidades. Os
mais ilustres. Todo mundo que era importante morava ali. E só morava ali
pessoas importantes. Menos eu.
Tinha uma praça. Uma igreja. Essas coisas. Mas SJRV tinha coisas diferentes.
Havia várias festas todos os finais de semana. Sempre tinha uma festa. O
lazer dos jovens da cidade era freqüentar essas festas e ver as mesmas caras
sempre.
Algumas pessoas se sentiam importantes em São João do Rio Vermelho. Porque
ali todos os conheciam. Outras não queria ficar na cidade porque se sentiam
maiores que a própria cidade.
Um grupo fechado organizava as festas e encontros. A Sociedade. Era muito
difícil, não sendo da Sociedade, entrar nela. Quem era do grupo ia para o
clube. Gostava das mesmas coisas. E era o foco de ação de tudo que se movia
na cidade.
Eu não fazia parte desse grupo. Mesmo morando na rua principal, mesmo
freqüentando os mesmo colégios, mesmo com meus irmãos sendo amigos de
pessoas da Sociedade. Não fazia parte do grupo.
Quando era jovem, cheguei a querer entrar no grupo. Queria conhecer todas as
meninas da Sociedade. Todas as meninas bonitinhas, riquinhas e estúpidas.
Queria fingir ser importante. Queria ser conhecido. Por isso, várias vezes,
forjei um personagem que enganou muitos. E ainda engana.
Forjei que era igual a eles. Fingi que agia como eles. Disfarcei-me de homem
comum. Andei como um qualquer. Entrei em uma academia, comprei roupas de
marcas, tentava conversar sobre as mesmas coisas que eles. Mas essa era a
parte mais difícil. Mesmo quando estava no ápice da minha falsidade, vi que
não podia ser tão medíocre.
Na época ficava me sentindo culpado. Por ter que me submeter a isso. A essas
privações. Hoje tenho vontade de rir. Sei que temos que passar por testes e
provas. Temos que ser ridículos algumas vezes na vida para aprender a cair
em pé. Como os felinos.
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Um dia chegou na cidade uma família vindo de Curitiba. Pai, mãe, filho e
filha. Vieram porque o Pai foi transferido para a filial da S-química de São
João do Rio Vermelho. A matriz era no Paraná. Era comum esse tipo de
transferência acontecer.
A maior característica da mãe era que ela era dona-de-casa. Daí você tira
como ela era. Ou como agia e pensava. A menina se chamava Juliana. Tinha 21
anos e começou a namorar com um cara da Sociedade logo. Ele tinha uma loja,
um comércio.
O garoto se chamava Guilherme e também começou a namorar uma menina da
Sociedade. Ela se chamava Ana Cláudia. Era uma garota linda. Pele bem clara,
cabelo castanho puxado para o vermelho. Corpo fenomenal. Cintura bem fina. E
uma voz sensualmente rouca.
A família Paraná era diferente do resto da cidade. Por mais que eles
freqüentassem os mesmo lugares. Por mais que eles tivessem relacionamentos
estreitos com pessoas da Sociedade. Eles (era perfeitamente perceptível)
encaravam a vida de uma forma diferente.
Não é fácil descrever. Não se metiam em fofocas, por exemplo. Tinham
consciência de cidadão. Enxergavam mais longe. Esperavam mais da vida do que
a cidade podia oferecer. E, principalmente, tinham classe. Não era algo
forçado, ou sem naturalidade.
Para usar um exemplo bem batido, com eles o simples caminhar chamava a
atenção. No meio de um churrasco ou qualquer outro tipo de confraternização,
a família Paraná se destacava.
Guilherme e Ana Cláudia formavam o mais belo par que poderia existir na
cidade. Guilherme com sua classe e Ana Cláudia com seu par de pernas. Viviam
em eterno estado de lua-de-mel. Nunca ninguém viu os dois discutirem. Nunca
ninguém soube de nenhum desentendimento. Os dois, segura o clichê, pareciam
ter nascido um para o outro.
Um dia, no meio de uma festa, Ana Cláudia apareceu sozinha. Logo correu o
boato que eles tinham terminado. Todos os homens se preparavam para tentar
galantear a melhor, a mais bela, a mais cobiçada mulher da festa. Eu
incluído.
Logo depois chegou Guilherme e voltamos atrás. Ele se dirigiu para o lado
oposto ao que ela se encontrava. Parecia que os dois haviam brigado mesmo.
Mas, nestas condições, os homens de São João do Rio Vermelho respeitam uma
regra. Não se expõem na frente de todos. Preparam o terreno para o futuro.
Lobbies e negociações começaram a ser feitas no meio da noite. Telefones
circulavam de um lado para o outro. Cochichos, conversas ao pé do ouvido,
informações sigilosas. Tudo para obter alguma forma de se aproximar de Ana
Cláudia.
Saí da festa com o telefone dela. E com a promessa de uma grande amiga dela
de confirmar o fim do romance para depois começar a construir minha imagem
para Ana Cláudia.
Passou uma semana e toda a cidade voltou ao normal. Tirando o fato de que os
assuntos ou começavam ou terminavam na informação da separação dos dois.
A amiga confirmou comigo o fim do relacionamento e me deu carta branca para
poder entrar em contato com Ana Cláudia. Sabia que uma aproximação frontal,
direta, seria ineficaz devido as condições da menina. O melhor seria rodear
a presa esperando o melhor ponto para o abate.
Algumas festas vieram depois e comecei a ficar mais próximo do meu objetivo.
Comecei a trocar olhares, palavras, beijos carinhosos no rosto. A minha
presença já era sinônimo de sorriso. O solo estava pronto. As sementes já
tinham sido jogadas. Agora só faltava um pouco de chuva para termos uma boa
safra.
Quando percebi que estava brotando pequenos arbustos, percebi que deveria
esperar o melhor momento para a colheita. Qualquer problema nessa fase é
sinônimo de perda de todo o fruto.
Não podia atacar num lugar que imperasse um círculo de amizade comum ao meu
e do Guilherme. Poderia me trazer prejuízos na hora da negociação da venda
da produto já pronto. E na compra de novas sementes.
Por sorte, a bonança veio na hora correta. Soubemos que haveria um incentivo
governamental. Numa cidade vizinha, aconteceria uma espécie de feira de
comércio de grãos.
Viria gente de todas as partes do Brasil e até do Mundo. Só faltava saber se
Ana Cláudia iria. Mesmo que toda São João do Rio Vermelho fosse, o ambiente
era propício para sumiços. Nós poderíamos simplesmente desaparecer na festa.
E, para confirmar, toda São João do Rio Vermelho foi na Feira. Inclusive eu,
Ana Cláudia e Guilherme.

Ao chegar no parque de exposições, sabia que a marcação devia ser justa para
que o atacante não conseguisse penetrar na grande área. E, com a bola nos
pés, o zagueiro saberia distribuir bem a bola para conseguir um
contra-ataque.
Levei Ana Cláudia para um lugar onde só poderíamos ouvir nossas vozes. Nada
nem ninguém apareceu. Durante toda a noite. Voltamos de manhã cedo para
casa.
No outro dia liguei para ela, relativamente, bem cedo. Ela já estava
acordada e pediu, com uma voz nervosa, para que eu fosse até a casa dela.
Ela morava na minha rua e não levei cinco minutos para chegar lá.
Ela disse que, mesmo estando separada do Guilherme, só conseguia pensar
nele. Não queria ficar com mais ninguém porque só via futuro com ele.
Mulheres e romantismo. Um foi feito para o outro.
Sai de lá com uma espécie de frustração. Melhor, com um sentimento de
desperdício. Desesperança. Não tinha nada melhor na cidade. Como almejar
algo, então? Tudo havia perdido a graça.
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Dois meses depois, eles não tinham voltado. Mas Ana Cláudia também não tinha
começado a namorar ninguém mais. Ou estava escondendo o jogo, ou estava
mesmo esperado Guilherme.
Este por sua vez, também estava sozinho. Apesar das investidas de quase
todas as meninas e mulheres de São João do Rio Vermelho. Porém, é bastante
compreensível. Depois de Ana Cláudia, quase nada ali tem gosto.
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Os dois, nesses meses separados ainda se encontraram várias vezes. Guilherme
ia na casa de Ana Cláudia. Os dois se ligavam. Mantinham um relacionamento
bem íntimo. Mas não era mais como há um ano atrás.
Em um domingo específico. Guilherme estava bem deprimido. Melancólico mesmo.
Ele sabia que gostava de Ana Cláudia. E sabia que ela o amava. Não sabia o
motivo de estarem separados. Resolveu, então, para animar, dar uma volta na
sua moto. Ele tinha uma moto azul metálica que fazia 200 km por hora.
Deu uma passada na casa de Ana Cláudia e os dois conversaram por horas. Ele
saiu de lá se sentindo melhor. Ela disse que tinha pensado melhor, durante
esse período separados, e percebeu que só poderia ser feliz ao lado dele. Ou
qualquer coisa parecida.
Guilherme resolveu ir para a estrada para saber qual era a verdadeira
potência da sua moto. Entrou na estrada e rodou a mão. Foi passando as
marchas e acompanhando o velocímetro responder aos apelos do acelerador.
Numa curva fechada, havia um desnível no solo onde o pneu dianteiro da moto
bateu. 195 km/h. A moto perdeu completamente a estabilidade e cuspiu o corpo
dele para cima. Ele estava de capacete. Bateu a cabeça na placa de
sinalização superior. Onde dizia "Cuidado, pista escorregadia".
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Seu enterro foi no mesmo dia. Toda São João do Rio Vermelho compareceu.
Menos eu que não fiquei sabendo da sua morte no dia. Houve muito choro.
Muito apelo. Foi quase um evento. Para se mostrar e para ser visto. Ana
Cláudia parecia ser a única pessoa sincera dali. Tirando a família Paraná.
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Eu fui o último homem da vida de Ana Cláudia. E não me sinto culpado por
isso. Não acho que deveria me sentir. Depois ela virou lésbica convicta.
Detesta homens. Ou freira.


::ronaldo pelli ::
LINgUAGEm CAnInA

O grande problema de fazer mudanças é o medo de deixar alguma coisa para
trás e não saber se vai ou não achá-la a tempo de usá-la quando necessário.

Você está fazendo opções. Escolhendo. Selecionando o que agora é mais útil.
Só sobreviverá quem trouxer maiores ganhos. O problema é errar. Ou perder
algo no caminho.

O ser humano nasceu para mudar. Ele tem que mudar. Acostumando-se a ordem
vigente ele se torna um parasita. A sua única necessidade é a fisiológica.

E as mudanças são para alçar maiores vôos (olha o clichê). Encarar um mundo
novo (mais lugar-comum). Enfrentar os desafios que, ao nascer, você sabe que
vai ter que enfrentar.

Não é determinismo. Não é destino. É apenas o traço de vida que você sabe
que vai ter que percorrer. Os muros que vai ter que atravessar. As mudanças
que vai ter que realizar. E mudar se resume a escolher.

Estou me mudando. Mudei o tipo de desodorante, o tipo de cueca e da minha
casa. Saindo da casa que sempre morei desde que nasci para ir morar sozinho.
Deixar de ter a companhia e o conforto que tinha com a minha mãe para
enfrentar tudo sozinho.

Ontem, ao fazer minhas malas, minha mãe saiu de casa. Ela não queria ficar
em casa enquanto eu estivesse saindo das saias dela. Ela é foda. Não quer
que eu saia por que não quer que eu fique longe dela. Mas é o meu patrocínio
na empreitada. Por enquanto ela paga metade das minhas contas. Só para eu
morar sozinho.

E até a minha garganta fechou em alguns momentos. Não sei, até agora se é a
coisa certa. Mas acho que fui muito pouco impulsivo quando criança. Acho a
impulsividade uma dádiva quando bem ministrada. E andar na corda bamba com
uma rede de proteção é bem mais fácil.

Empacotei ontem várias coisas minhas. Coisas que não via há milênios.
Lembrei de outras que queria ter esquecido. Joguei fora algumas que não
quero lembrar mais. E o meu quarto ficou vazio. Silencioso. Sem nada para me
acompanhar. Vou acabar essa crônica e desmontar o computador. Ele vai
comigo. Essa é a última crônica dele aqui. Depois só no Flamengo.

Coloquei tudo em sacos plásticos mal feitos. Amadores. E hoje de manhã
quando entrei no computador procurei meus óculos e não tenho a mínima idéia
de onde eles estão. Como eu estava dizendo, o grande problema de mudanças é
não saber aonde deixou as coisas.


Voltado da Barra para o meu novo apartamento na sexta-feira, peguei uma van
que estava escrito Zona sul - centro. Perguntei para o motorista se passava
no Flamengo, e subi. Muito chique essa vida.


Foram entrando várias pessoas com várias expressões de vários lugares. E eu
vi algo que não acreditava. Subiu uma senhora e perguntou se passava na
Atlântida. Quer dizer, então, que existem pessoas reais, que moram em frente
a praia mesmo? Não era só lenda?


Na mesma van subiu uma outra menina que queria saber se passava em
Copacabana. "E passa na praia". Ai eu não acreditei. Duas de uma vez só. O
pior foi quando pegamos um maluco que estava hospedado no Copacabana Palace.
Êta provincianismo.

Mas não era sobre isso que eu queria falar. A menina ficou do meu lado no
banco que fica de frente para todo mundo na van. De costas para o motorista.
Teve uma hora que ela esticou a perna de uma forma que eu fiquei mais
confortável. Me senti como ela estivesse incomodada comigo e me ajeitei para
que ela pudesse voltar a posição que estava acostumada. Eis que ela solta a
seguinte pérola inédita na minha vida: "esteja a vontade". Ah? Como assim?
Isso é muito para a minha cabeça.


Depois, mais de noite, saindo para encontrar o Iuri (ele esteve aqui no
Rio), marcamos na Lapa. Peguei um ônibus em frente de casa e em dez minutos
(repito 10 minutos) cheguei no destino. Na volta consegui uma carona com a
Ludmila que me deixou na esquina da minha casa. Assim vou ficar mal
acostumado.


Enfim.
É melhor parar porque tenho que mandar esse texto ridículo para o Caim,
desligar a máquina, desmontá-la e esperar a minha tia que tem uma kombi para
levar minhas coisas.

E para terminar, um conselho à Iuri, mudem.
LINgUAGEm CAnInA

Gregório Samuel acordou na segunda-feira e percebeu que seu coração
havia
parado de bater. Ele se lembrava vagamente de ter escutado as batidas
do seu
coração compassadas até parar. Mas pensava que tinha sido apenas um
sonho.

Levantou-se e se encaminhou direto para o banheiro. Olhou-se no
espelho. A
pele estava pálida demais. Até para ele, que tinha a pele bem clara.
Conseguia enxergar as pequenas veias do rosto, pescoço e colo. Todas
azuis.

Ainda se olhando, levou o dois dedos na altura da base do pescoço.
Bem no
centro. Entre os ossos pequenos que sustentam a cabeça. Queria pegar
uma
veia grande para perceber sua pulsação. Nada. Nem uma única batida.
Colocou

a mão no peito. No pulso. Na têmpora. Nada, nada e nada.

Era uma manhã cinzenta de inverno. Uma manhã suja de inversão
térmica. Uma
manhã que fecham-se as janelas para poder respirar. Gregório, por sua
vez,
não sentia nada. Nada diferente. Apenas não tinha mais as batidas.

Tinha ido dormir um pouco bêbado. Tinha saído com uns amigos e bebido
um
pouco de vinho. Ao deitar-se, lembrava de prestar a atenção como todo
corpo
estremecia com a força de seu coração. Adormeceu concentrado no
coração que
agora estava inerte.

Logo escutou umas batidas na porta. Era a sua mãe falando que ele
devia
acordar logo senão chegaria atrasado novamente no colégio. Ele até
poderia
responder. Mas não tinha vontade. Ficou sentado na cama, vestindo a
cueca
samba-canção e a camiseta branca, com a mão no peito.

Sua mãe girou a maçaneta e, antes mesmo de olhar, falou: "Gregório,
vamos.
Todo dia é isso. Você nunca vai aprender?" Nesse momento observou
Gregório e
sua cor não natural. "O que foi isso? Por que você está assim?"
Gregório só
respondeu que não sabia. Mas iria se arrumar para sair logo. Sua mãe
se
virou e fechou a porta. Já do lado de fora do quarto gritou para ele
se
arrumar rápido.

Entrou novamente no banheiro e tomou uma ducha rápida. Se vestiu como
de
costume, jeans, camisa da escola e casaco de moletom preto. O que
ressaltou
mais ainda sua cor um tanto azulada por causa das vasos e artérias.

Pegou sua mochila e saiu do quarto. Desceu correndo as escadas para
tomar o
leite e sair para a rua. Encontrou seu pai olhando o jornal que
noticiava
alguma coisa de futebol. Não reparou na irmã. Mas ela logo perguntou
o que
tinha acontecido.

"Pára com isso Ana Luisa. Deixe seu irmão em paz. Ele está atrasado
para a
escola, não está vendo?" disse a mãe. Gregório bebeu em um gole o
leite com
chocolate, pegou um pão com manteiga e foi se encaminhando para a
porta de
saída. Mas Ana Luisa entrou na sua frente e olhou bem fundo nos seus
olhos.
Ele parou e não conseguiu desviar. Ela deu um sorriso sarcástico e
tentou
segurar sua mão. Deu um grito de espanto e a largou. "Está fria."
Nesse
momento ele viu a vista escurecer e se virou para apoiar na mesa com a
cadeira.

Acordou com a empregada umedecendo seu rosto com uma toalha. "Cadê
todo
mundo?" perguntou Gregório. "Seu Pai foi trabalhar, sua irmã para o
colégio
e hoje é dia da Dona Lucinda ir visitar o orfanato. Você sabe não é,
como
Dona Lucinda é boa demais. Toda segunda-feira ela se reúne com algumas
amigas e vai visitar o orfanato. Sempre levando roupas e brinquedos."

Ele tentou se levantar mais novamente percebeu que cairia. Então
resolveu
permanecer deitado mais um pouco até que as forças voltassem por
inteiro. "O
que aconteceu?" perguntou mais uma vez. "Eu cheguei e você estava
deitado no
sofá. Dona Lucinda estava só me esperando para poder sair. Parece que
você
desmaiou."

Gregório olhou para o relógio da sala, um relógio-cuco que pertenceu
a seu
bisavó, que foi trazido da antiga Thecoeslováquia. "Meu filho"
começou a
falar Alzira, a empregada, "acho que você tem que tomar um sol, está
muito
pálido. Até parece que está morto." Ele tentou virar o corpo na
direção de
Alzira, mas conseguiu no máximo virar os olhos. Ela estava parada na
entrada
da cozinha, com as mãos na cintura, segurando uma colher de
pau. "Bom, vou
voltar para a cozinha, qualquer coisa me fale."

Ele voltou os olhos para o relógio. 9 e meia da manhã. Pelos seus
cálculos,
tinha ficado desacordado por mais de uma hora e meia. Rapidamente
levou a
mão no peito. Nada. Fechou os olhos, para tentar dormir de novo. Mas
não
conseguiu. Tentou se sentar. Sentia-se fraco. Levantou-se em direção
da
cozinha, onde ficava a escada para o andar superior. Parou em frente a
geladeira. Abriu, pegou a garrafa d'água, bebeu no gargalho. Fechou a
porta
e subiu as escadas. Entrou no quarto e fechou a porta.

Deitou na cama. Sentia frio. Muito frio. Ligou o rádio. Notícia de
engarrafamento. Mais de 100 km de carros parados. Mudou de estação. Um
locutor lia uma carta de um ouvinte para uma namorada que o tinha
deixado,
no fundo uma música romântica, anos 80. Mudou de estação, uma rádio
gospel.
Desligou o rádio.

Tentou gritar pela Alzira, mas o ar não saia dos seus pulmões. Então
reparou
que não mais respirava. Não se lembrava de quando tinha parado. Mas
não
precisava mais puxar o ar. Nem expirar. Sentia os olhos pesados.

Acordou com sua mãe gritando para ele tomar vergonha na cara. Que em
plena
segunda-feira ele ficava em casa dormido. Se não tivesse saído ontem
estaria
bem. Era mesmo um vagabundo. Ia mandar seu pai colocá-lo na loja para
ele
aprender o que era bom. Não passaria mais as tardes em casa sem fazer
nada.
Ele tinha que aprender que a vida não era a facilidade que ele
pensava ser.
Já tinha 16 anos. "Pensa que mamãe e papai vão te sustentar para
sempre?
Pois está muito enganado, hoje mesmo falo com seu pai. No máximo
semana que
vem, você vai trabalhar com ele."

Gregório até queria responder. Mas a voz não vinha ao seu mando.
Sentia mais
frio e cansaço. Sua mãe havia saído do quarto batendo a porta com
violência.
Parecia furiosa. Olhou para o despertador na sua mesa de cabeceira.
Meio
dia. Lembrou que não havia comido o pão no café-da-manhã. E não
sentia fome
nenhuma. Tentou se levantar mas não conseguiu. Então permaneceu
deitado
mesmo. O único movimento que fazia com destreza era abrir os olhos.

Antes de fechar os olhos novamente, escutou um grito da sua mãe para
ele
descer e almoçar. Ela dizia que não ia repetir o chamado. Se ele não
descesse agora, ficaria sem almoço. Gregório fez um esforço sobre
humano,
mas o máximo que conseguiu foi virar de lado na cama. Fechou os
olhos. Se
sentia cansado. No fundo da sua cabeça escutava um som de alguém
subindo
escadas. E a uma voz feminina. Conhecida.

Sua mãe abre a porta repentinamente com a voz alterada. "Gregório, o
que
houve com você." Ela pára. Ele abre os olhos. Percebe ela se virando.
Escuta
ela falando algo com Alzira. Está muito longe, mas ele presta a
atenção. Ela
reclama algo do cheiro. Pergunta se Alzira não tinha limpado o quarto
de
Gregório direito.

Gregório sente a boca seca. Os olhos ficarem sem lágrimas. O nariz
ressecado. Estava de lado para a porta. Quando cochilou mais uma vez.
Acordou com Alzira entrando e colocando o prato de comida na mesa de
cabeceira. Só abriu um dos olhos. Alzira não demorou muito tempo,
virou-se,
colocou a mão no nariz e saiu.

Ele fechou os olhos novamente. Mas não dormiu rapidamente. Escutava
sua irmã
no quarto ao lado. Ela tinha ligado o som e colocou um CD. Ela
dançava e
cantava alto demais. As janelas tremiam. Ficou um bom tempo escutando
sua
irmã balançando e gritando. Às vezes quando estava conseguindo
adormecer,
escutava batidas na parede e Gregório acordava de sobressalto.

Mas era segunda-feira e Ana Luisa tinha balé. Não demoraria muito e
sua mãe
a levaria. Ele também tinha que sair. Tinha curso de inglês. Mas
achava que
não conseguiria levantar-se. Dormiu novamente.

"Mãe que cheiro é esse?" gritou Ana Luisa do corredor para o andar
debaixo.
Gregório quase saltou da cama e caiu no chão. "Ana Luisa, anda
rápido. Você
está atrasada." Ana Luisa ainda reclamou que a mãe protegia Gregório.
Que
ele não era obrigado a fazer nada. Que ele podia ficar dormindo. Que
podia
faltar o curso. Mas a voz dela foi diminuindo até sumir. Gregório
voltou a
dormir.

Quando Alzira entrou para pegar o prato de comida que tinha deixado no
quarto de Gregório, encontrou-o intacto. Ela o tirou e saiu correndo,
para
fugir do mau cheiro. Gregório ainda dormia.

Dona Luzinda chegou em casa de noite, reclamando que o dia tinha sido
horrível. Encontrou Seu Rodolfo em frente a televisão fumando os seus
cigarros. Perguntou a Alzira por Gregório. Ela disse que ainda estava
no
quarto. Luzinda, então, subiu voando as escadas e quase derrubou a
porta. E
Gregório continuava dormindo. Chegou mais perto gritando para ele
acordar,
mas nada conseguia. Reparou na temperatura dele, muito baixa. Na sua
cor, um
tanto azulada. E no seu cheiro, desagradável. Tirou as cobertas. E
Gregório
continuou dormindo. E nunca mais acordou.
LINgUAGEm CAnInA

(som de telefone chamando)

- Alo?
- Alo, sabe quem está falando?
- Não acredito que tu ligaste. Estava sentindo saudades tuas...
- Você não está falando sério. O seu último e-mail foi totalmente lacônico.
- Mas é que eu estava com pressa na hora de responder.
- E por que não respondeu a última mensagem?
- Tu mandaste uma outra mensagem? Tu não trabalhas não?
- É que o meu trabalho está muito tranqüilo. Quase não tenho nada para
fazer. Assim, é pior e penso mais em você.
(silêncio)
- E percebo o quanto idiota eu sou. Eu sei que nós nunca daremos certo.
- Você e o seu tom pessimista...
- Mas é claro. Eu sei os seus defeitos e não ligo. Eu sei o quanto você não
me quer como eu sei o dia que você vai me deixar. Ou me trocar. Ou preferir
outro.
- Está ficando melodramático...
- Desculpa. Me exaltei. Aliás, quero pedir desculpas por ter te cobrado
coisas no e-mail. No segundo e-mail.
- Que coisas?
- Pedi que você falasse com todas as letras se queria que eu te visse ou
não. Te cobrei uma atitude de compromisso, de namoro, que nós nunca tivemos
e você deixou bem claro que não queria.
- Não foi bem assim...
- Não adianta melhorar as coisas. Acho que você vê em mim um porto seguro.
Enquanto não tiver com nada melhor, você me tolera, me agüenta.
- Pára.
- Desculpa. Você me faz sentir uma insegurança que não sentia há muito
tempo. Talvez isso é o que mais me fascina. Não, isso é, com certeza, o que
mais me fascina. Acho que só nos apaixonamos por pessoas que não gostam da
gente. É um sentimento meio masoquista.
- Não é bem assim. Eu, pelo menos, não sou assim.
- Como não? Você não gosta de mim do jeito que eu gosto.
- A gente não falou sobre a teoria do gira-mundo? Acho que um dia nós vamos
nos encontrar e ai teremos uma vida em conjunto. Mas agora não dá.
- Claro. Vamos então prorrogar tudo porque um dia, se as coincidências do
mundo deixarem, nos encontraremos novamente. Sabe o que isso me lembra?
- O quê?
- Um amigo meu. Ele saía com uma menina que era perfeita. Era uma moreninha
de olhos claros, linda, linda, linda. A menina era super inteligente,
gostava das mesmas que ele e, para melhorar a situação, amava o cara. E sabe
o que ele fez?
- Ãh?
- Largou a menina para ficar sozinho. Ele não gostava dela. Ela era perfeita
e ele não gostava dela. Um outro dia eles se encontraram. Ele, como sempre,
estava sozinho, tentou se aproximar. Mas a menina estava acompanhada.
- O que tu queres dizer com isso? Que tu és perfeito, e que eu estou
perdendo a oportunidade da minha vida não ficando contigo? Que quando
acordar, você vai estar longe e resolvido?
- Não. Quero dizer que queremos sempre as coisas mais complicadas. Não
gostamos das facilidades da vida. Eu não sou perfeito, como a menina também
não era, mas provavelmente não tinha ninguém, e dificilmente encontrarei
alguém, que gostará da forma que a menina gostava de mim.
- Então, quer dizer que o garoto era você?
- É. Eu acho que você veio na minha vida somente para me explicar os tipos
de relacionamentos que estava tendo. Olho para trás e enxergo o quanto
perdi. O quanto desperdicei.
- Mas será que vale a pena ficar com alguém que tu não gostas? Talvez tu
fostes somente verdadeiro. Contigo e com ela. Você não a enganou. Apenas não
queria ficar com uma menina que não gostavas.
- Como você está fazendo comigo.
- Mas como ficaríamos? Tu moras a 18 horas da minha casa.
- Queria que você tivesse se entregado de corpo e alma no relacionamento.
Que tivesse pulado de cabeça. Que caísse em queda livre e esquecesse de
puxar o pára-quedas.
- Mas...
- Todas os meus relacionamentos que não deram certo, eu é que fui o culpado.
Fui um covarde. Com medo de estatelar no chão, sempre pedia uma rede de
proteção. Com você, talvez por morar longe, e saber que não teria tempo de
parar de gostar de você, me joguei. Não queria, nem quero saber de nada. Não
me importava para os problemas. Só queria ter a oportunidade de estar com
você. Só agora estou racionalizando isso.
- Eu, quando me envolvo com alguém, não quero ser só metade. Por isso não
queria que a nossa vida acabasse em uma semana. Eu tenho que acreditar que
um dia nós vamos nos encontrar para diminuir o arrependimento por ter
passado a oportunidade. Por você ter passado.
- Acho que gostei disso...
- É isso. Eu quero você, mas não posso mais gostar de alguém que more longe.
Foi exatamente assim no ano passado. Tu não tens idéia de como é ruim gostar
de alguém que mora longe de você. Tu não sabes o que é saudade.
- Mas não me deixaram aprender.
- Quero te poupar disso...
- Mas eu não quero...
- Quero me poupar disso. Acho que já tive esse tipo de sofrimento por toda
uma vida. Repetir o mesmo erro seria burrice.
- Mas não seria igual.
- É fácil falar. Mas como você poderia mudar?
(silêncio)
- Gosto de você.
- Eu também.
- Você nunca falou isso para mim.
- Gosto de ti.
- Você é a minha catarinense preferida.
- (risos) E quem são as outras.
- Não tem outras. (pausa) Não sei se vou te visitar no próximo feriado. Não
sei se devo. Não sei se vai ser bom. Para mim.
- Não posso falar nada.
- Por isso que eu acho que não devo. Você não tem certeza.
- Tu começaste de novo. Você quer que eu diga, eu digo então: EU QUERO QUE
TU VENHAS. O que mais? Tenho que assinar um papel para te provar isso?
- Mas, você tinha falado...
- Falado o quê? Que não queria que tu viesses? Eu não disse isso em nenhum
momento...
- Não foi isso. Você disse que tinha medo de se apaixonar. Por uma pessoa
distante, pelo menos. Como você vai me tratar aí? Como posso ter certeza
disso?
- Eu não estou acreditando no que tu estás me pedindo. Tu queres que eu
garanta que eu te tratarei bem, é isso?
- Não, não é bem assim...
- Você está de sacanagem comigo. Não é possível. Isso é uma covardia enorme
de enfrentar as coisas como elas realmente são. Pode vir, meu amo, que o
tapete vermelho estará estendido.
(silêncio)
- Desculpa.
- Desculpa peço eu.
- Eu sou um covarde. Para mim tudo é novo e não é ao mesmo tempo. Eu já pas,
parece que tudo isso, parece que eu já passei por tudo isso antes. E não
quero passar mais uma vez. Mas ao mesmo tempo, tudo é tão novo. Você,
morando longe, você é linda menina.
- Não. Vamos tentar esquecer isso. Melhor, vamos tentar aprender com isso.
(silêncio)
(juntos)
- Mas...
- Eu...
- Diz você.
- Não, tu. Falas tu.
- Não é nada não. Diz você.
- Eu...gosto de você. E você sabe disso
- Todas as vezes que eu escuto isso me lembro de mim mesmo. Todas as vezes
que ficava sem assunto, falava isso com as minhas ex-namoradas. E tudo era
mentira. Gostava sim delas. Mas não era um cara apaixonado. Queria estar com
elas pouco tempo. Ah sei lá. Minha vida mudou tanto. Minhas lembranças estão
se confundindo. Elas estão se aglutinando em uma coisa só.
(silêncio)
- Vem para cá.
- Oi?
- Vem para cá.
- Como assim?
- Vem para cá. No feriado. No próximo feriado. Vamos nos encontrar.
- Vou pensar no seu caso...
LINgUAGEm CAnInA

A semana inteira fiquei pensando em que escrever. Uma coisa era certa na
minha cabeça: não queria fazer algo que já tinha feito. Queria que essa
semana fosse diferente. Mudasse um pouco. Nem que piorasse, o que acho
particularmente difícil.

Falar sobre o enecom e como ele foi importante para mim. Isso até passou
pela minha cabeça. Dizer que, como diria Aldous Huxley, as portas da minha
percepção foram realmente alteradas. Dizer que algumas coisas antigas que
não passavam pela minha cabeça há uns bons quatro anos deram seu ar da
graça. Mas acho que ainda não tenho um distanciamento histórico que me
permita entender realmente o que houve. Ou tenho e tenho medo do que ia
sair.



Nessa semana fui chamado de pessimista. Pela décima milésima sétima vez.
Pareceu um elogio no início. Depois, como é de costume, me analisei para
chegar no cerne da questão. Por que sou pessimista? Por que gosto tanto de
ser pessimista? Não quero falar sobre isso agora.



Pensei em ser falcatrua. Usar um trabalho da faculdade aqui. Colocar, com
algumas modificações, algo que tenha feito nas coxas para poder tirar 7 e o
professor me deu 9 ou 8 e meio, aqui. Mostrar como se aprende ser falcatrua
naquela faculdade. Isso eu aprendi no enecom. Como todas as faculdades de
comunicação do Brasil inteiro são falcatruas.



Meu humor muda a todo momento. Se alguém ficar perto de mim por mais de uma
hora perceberá que saí do animado para o completo depressivo sem esperança.
Não acredito em nada e no papai noel no momento seguinte. Devem ser os
hormônios.



Pensei em falar sobre minha mãe. Ou sobre meu pai. Ou sobre eles. Ou sobre
nós. Mas deixarei isso para o futuro. Algumas coisas diferentes realmente
estão acontecendo.



Por isso vou publicar uma coisa que acabei de fazer. Não tenho nenhuma idéia
do que é. Apenas tive vontade de escrever. E foi. Está aqui do meu lado.
Está em papel ainda.



Boa sorte. Para nós todos. Às vezes nós precisamos. Mas só ás vezes.

(antes de começar a ler, coloque para tocar

PLACEBO: WITHOUT YOU, I´M NOTHING)








O VALE DAS MULHERES QUE DIZEM NÃO
OU

AS MULHERES QUE DIZEM NÃO



Há um vale

No meio de dois morros

No final do bosque

Mais verde de dia

E escuro de noite



Um vale que todos

Temos acesso

Mas poucos reparam



Ou reparam de maneiras

Diferentes

Ou reparam em personagens

Diferentes



Onde tudo funciona em desacordo com

o que imagino



tomam o desjejum a tarde

comem só a forma

jogam o recheio fora

calam quando deviam falar

andam quando estariam paradas



e são apenas mulheres

só mulheres moram no

vilarejo



mulheres comuns

que podem até se conhecer

mas é raro e não importa



o que chama a atenção

é que fazem exatamente

aquilo que peço para não fazerem



se mando pular, voam

se é para correr, estacam

se ririam, gargalham



as mulheres sempre extrapolam

surpreendentemente

surpreendem



fazem tudo diferente

deliciosamente

diferente



e sempre me apaixono por elas

uma de cada vez.

Ou,

O que é mais raro,

Todas juntas.



Ronaldo Pelli







APENAS


No final

Penso

Se apenas

Não quero

Apenas

Um mulher

Com rostos

Diferentes

Apenas



Podem ter todos

os sotaques

podem gostar de tudo

podem brincar

ou fugir

podem ser quem

quiserem

apenas

penso

que só procuro

um mulher

que se transveste

de outras para me enganar

como se corresse atrás

de ninfas em florestas

da antigüidade

que só existem

em imaginação e

em filmes ruins



e todas as vezes

que chegasse perto

dela,

ela sumiria e apareceria

no final do bosque

ou atrás daquela árvore

apenas

parece que escorre entre os dedos

parece que só posso provar

e cuspir

só posso degustar, como vinho

para fingir que me lembro

apenas

para montar lembranças

para me alegrar



apenas



talvez o gosto

seja muito doce

e enjoe



apenas talvez



ou apenas tenho que

ficar sozinho

apenas isso

apenas sozinho

sempre

e é melhor me acostumar com a idéia.



segunda-feira, 15 de abril de 2002

Já me disseram que a informática serve apenas para resolver os problemas que não existiam antes da informática ser desenvolvida.
acho exagero.

mas o meu hd quebrou e nem tão cedo escreverei de novo com freqüência.

sábado, 6 de abril de 2002

o conservadorismo é um grande entrave na evolução da sociedade.
sem ele, poderíamos pular de cabeça em transformações dia-a-dia.

ele deve ser necessário em algum aspecto, por ter tanta força ainda hoje em dia. mas ainda não achei esse "detalhe".

sexta-feira, 5 de abril de 2002

hoje de tarde, imaginei uma tatuagem.
um mexicano com sombreiro.
sendo rendido por um homem de terno e gravata.
no meio de um deserto.
sol, muito sol.

só isso.
Nesta edição, queremos fazer uma pergunta singela: quantas vezes você foi livre na sua vida?

Pense, lembre-se, raciocine. Hoje em dia, você é livre? Você pode fazer da sua vida o que você quiser? Pode hoje largar tudo, casa, emprego, faculdade, filhos, marido, mulher, sair de casa e andar a esmo? Você pode desistir de tudo que construiu se descobrir que o que você construiu não é o que você quis? Você é amarrado à alguma coisa? Se você quiser fazer uma viagem pelo Brasil todo, conhecendo cada canto, cada cidade, viajando de ônibus ou de carro, você pode? Você pode desistir do emprego porque descobriu depois de alguns meses que ele não é bom para você? Você tem outra boca para alimentar? Você é responsável por alguém? Ou você depende de alguma coisa? O que te impede de fazer tudo o que você tem vontade? A sociedade? A namorada? O trabalho? As contas? A responsabilidade? Lembre-se de quando você era mais novo. Você tinha mesada. Tinha que fazer tudo o que seus pais diziam. Tinha que estudar matemática ou química. Você era obrigado. Ou em outras épocas, quando a escravidão era permitida e incentivada.

Hoje ela é velada. Você tem que respeitar certas ordens para parecer útil para a sociedade. Não pode dizer não, obrigado. Senão irá ser discriminado. Tente apenas dizer que não gosta de dinheiro. Que isso não é importante. Fale isso em voz alta, no meio de uma multidão, no centro da cidade. Suba num caixote e grite a plenos pulmões que você não precisa nem nunca quis dinheiro. Comece apontando para as pessoas que andam, principalmente aquelas de terno e gravata, e diga que elas se venderam. Pare um office-boy na rua e lembre-o que ele é apenas um escravo, que no final do mês tem uma espécie de gorjeta por ele não ter reclamado tanto. Caso chie alguma vez, eles chamam outro office-boy. Há vários nas ruas.

Não pregamos a anarquia. Apenas queremos o fim da escravidão. Seja velada ou não. Nunca ninguém foi livre para fazer nada que não condiz com as regras da tal sociedade. Algumas silenciosas outras ditas a plenos pulmões. Todos estamos amarrados, uns aos outros. Vamos afrouxar os nós. Vamos fazer apenas as coisas que queremos. Vamos desistir da vida sem prazer. Vamos rir das verdades preestabelecidas. Vamos procurar alegrias. Vamos ser livres e independentes.

E se alguém disser que a vida sem ordem é impossível, responda que estávamos fugindo do caos apenas.

quarta-feira, 3 de abril de 2002

sensatos, por favor, não me peçam sensatez,

essa eu deixei naquela época onde eu podia explicar tudo com um mais um é igual a dois.

hoje, priorizo outras coisas.
a sensatez, por exemplo, é uma sensatez minha. não uma sensatez de vcs todos.

terça-feira, 2 de abril de 2002

se eu acreditasse em alguma força superior, e quisesse pedir algo eu já teria um pedido pronto para fazer.
se encontrasse um lâmpada e ela me surpreendesse saindo um gênio de dentro dela, já saberia o que pedir.
se houvesse razão em fazer um promessa e depois cumprí-lo, já saberia o pedido.

eu gostaria de mais paciência.

segunda-feira, 1 de abril de 2002

"soy un perdedor
i´m a loser baby,
so, why dont you kill me"
beck.

o que será que este rapaz quis dizer com isso?
talvez ele realmente se sentisse assim.
talvez ele não tivesse nenhuma auto-estima e tivesse medo de se expor. assim, nivelando por baixo, não teria nenhum medo de se decepcionar.
será que tudo não passava de uma forma de covardia velada?

não sei, e nem tenho mais como saber. beck não é mais "un perdedor". e também nunca mais se esforçou tanto para mostrar que não era um perdedor.