sábado, 31 de maio de 2003

Casal

Os dois se viram pela primeira vez na fila do Espaço Botafogo para ver “Magnólia”, me lembro perfeitamente. Porém, só foram se conhecer, de saber nome, de conversar por horas, de rirem juntos, de ficarem colados, de se beijarem, só na noite daquele dia. Por coincidência, eu estava com ele em ambas às oportunidades.

Lembro que o Dinho – seu nome é Osvaldo, o mesmo do pai, mas ele detesta, acha formal demais – disse para mim, “Cara, se tu quiser, pode escrever essa história, aí. Não é você que gosta de escrever?”. Apenas sorri para ele. Sem sombra de dúvida, ele é um ótimo personagem, mas eu não tinha uma história na época.

Eu estava com ele na fila quando vimos as duas. Márcia, rosto lindo, baixinha, morena de corpo exemplar. E Carla, branca daquelas que nunca foi à praia, mas toda jeitosinha, toda charmosa. Ficamos nós dois parados, de lado para as duas, fingindo não reparar nelas, mas espionando rapidamente, quando elas não esperavam, só para impressioná-las.

Entramos na sala, e passamos a projeção inteira sem o menor vestígio delas. Quando o filme acabou, ainda tentamos acompanhá-las para saber se iriam ficar no café, ou em algum bar próximo, mas elas foram embora logo em seguida.

Desistimos e fomos, cada um, para as nossas respectivas casas. Tínhamos uma festa na mesma noite, e quando chegamos na boate, tinha certeza que Dinho nem se lembrava direito da menina que ele tinha visto. Mas coincidências existem, e Dinho não é o tipo de desperdiçar quando uma acontece. Márcia estava na festa, junto com Carla. Ficamos naquele jogo de olha, bebe mais um gole, dança, disfarça, finge ignorar, olha de frente para se fazer perceber, depois, com mais coragem proporcionada pelo álcool, se aproxima e diz algo que seja relevante. Dinho obviamente falou de nosso encontro prévio na fila do cinema. O papo logo caiu para o filme, os sapos que caem no final, daí para cinema de um modo geral e em pouco tempo estavam todos próximos. Ficamos os quatro juntos, conversando por horas, sem pressa, dissimulando falta de interesse, entendendo como o outro pensava, agia, bebendo mais uma cerveja, tomando mais uma caipirinha, dançando juntos ao som da música que tocava, até que num impulso, sem que eu ou Carla percebêssemos, Dinho puxou Márcia pelo braço para um canto escondido da boate. É claro que demos falta dos dois, mas essa foi a deixa para eu me aproximar de Carla também. Fomos embora da festa juntos. Dinho me disse depois que após me deixar em casa, e a Carla na dela, levou Márcia para a dele. Afirmou que ficaram horas acordados, mas não aconteceu nada demais nessa noite.

O meu caso com Carla durou apenas aquela noite e me senti mal com isso. Principalmente porque o Dinho começou a namorar, logo em seguida, com Márcia. Na segunda vez que nos encontramos, me aproximei da Carla, e ela foi altamente grosseira comigo. Disse na minha cara que aquela noite foi um erro. Nunca se espera algo dessa natureza. Assim, conforme Dinho e Márcia se encontravam, felizes, eu me sentia pisoteado por tabela. Como se a felicidade deles dependessem da minha depressão. Fiquei assim por uns três meses, até o Dinho terminar com a Márcia.

Márcia foi a primeira namorada que ele teve. No início do relacionamento dos dois, como sempre acontece, tudo funcionava como uma máquina bem calibrada. Com o tempo, ele não teve experiência, nem maturidade para encarar o desgaste do relacionamento. Já prestes a desmanchar, dizia para mim que só ficava com ela por causa do sexo. Entretanto, se sentia asfixiado por ela. Nunca tinha ficado tanto tempo só com uma mulher. Ele começou a reparar nos pequenos detalhes dela e tudo se transformava em defeito. A maneira como ela preparava o Nescau, por exemplo. Ela colocava três colheres de sopa de chocolate e ainda mais duas de açúcar. Dinho achava aquilo horrível, porque ficava doce demais. Ou o jeito que ela dormia, sempre encolhida com o travesseiro entre as pernas. Ou os filmes que ela queria ver. Todas as pequenas coisas eram motivos para o desgaste. E Dinho nunca chegou a brigar com ela, de fato. Foi acumulando as insatisfações, empurrando para debaixo do tapete tudo o que ele não gostava e num dia qualquer disse que não podia mais ficar com ela e foi-se embora.

Junto a isso, vieram as férias de final de ano e ele foi mandado embora do estágio, o que confirma que desgraça não vem sozinha nunca, e o deixou com bem menos dinheiro do que esperava. Logo não pôde viajar comigo, nem com ninguém. Passou a virada de ano em Copacabana, praticamente sozinho. Quando voltei, ele me falou que foi a pior experiência da vida dele. Estava se sentindo muito só desde que rompera com a Márcia. Falei para ele a procurar, mas ele me respondeu que estava meio sem jeito, que eles haviam terminado de uma maneira estúpida demais, sem conversar, sem ele explicar nada direito. E como eu – numa dessas coincidências da vida – estava trabalhando com ela, pediu para que eu fizesse a ponte. Não havia desencanado totalmente da Carla, mas confiava que se os dois voltassem, isso não iria interferir no meu humor. Aceitei. Disse que contaria toda a história triste, a fossa que o Dinho passava.

Liguei para ela e fiz melhor. A convidei para uma festa. Lá, ele teria a oportunidade de conversar com ela durante todo o tempo. Márcia havia se aproximado de mim nesse ínterim. Sabia que ela estava magoada com ele, embora soubesse também que ela gostava dele. Bastava que ele conversasse com ela.

Os dois ficaram juntos quase toda festa. Eu conversava com Márcia, quando Dinho passou por mim e nos interrompeu, afirmando que queria falar com ela. “Eu estou conversando com ele, não dá para perceber?”, ela disse para ele. Eu fiquei quieto. “Você não pode me dar um minuto da sua atenção”, ele já falava mais exaltado. Ela bufou baixo e quando olhou na minha direção, eu já não estava mais ali. De longe, pude perceber o gesticular dos dois. Ela passou boa parte da conversa com os braços cruzados na frente do corpo, enquanto ele andava de um lado para o outro, falando num tom de voz bem acima do normal. Por várias vezes, escutei o pedido dela para que ele falasse mais baixo. Ele pedia desculpa, para logo em seguida falar novamente quase aos berros. Num momento, ele parou de andar, esticou o braço e tocou nos braços cruzados dela, ela não retirou, ele segurou o antebraço e olhava no rosto dela, ele puxou os braços dela e eles desfizeram aquela tentativa de nó. Ele baixou o rosto, ela mexeu no cabelo dele, ele levantou já próximo do rosto dela e os dois se beijaram.

Juro que aquilo não me atingiu da maneira como tinha medo. Já não me sentia como o pêndulo da relação deles. Os dois ficaram longe do resto do grupo e eu fiquei tranqüilo. Tinham ficado separados menos de dois meses.

Dessa segunda vez, o início dos dois passou por algumas provas que pareciam denotar uma longa duração do namoro. Teve a festa da Soninha, amiga dela que ele detesta, por exemplo. Na cobertura do prédio dessa menina, onde só cabiam umas vinte pessoas. Todos conversavam entre si e Dinho teve que passar toda a noite falando exatamente com a Soninha. Tudo porque Márcia encontrou algumas amigas que não via desde a época do colégio e ficou boa parte da festa com elas. E a anfitriã não quis deixar Dinho sozinho. Soninha era exatamente o oposto de pessoa que Dinho gostava. Ela é rica e fútil e sua conversa gira em torno do próprio umbigo, roupas importadas, carros de grife, marcas conhecidas, um universo bem distante do Dinho. Ao saírem, ele espumava. Márcia perguntou por todo o caminho o motivo e ele ficou quieto até quase chegar em casa. Quando abriu a boca foi para pedir, em tom de ordem, que nunca mais o fizesse ir numa festa desse tipo. Ela nem discutiu, apenas também ficou quieta.

Depois disso, voltaram ao normal. Viajavam a cada final de semana. Viajaram no carnaval, Tiradentes, na semana santa e Dinho veio conversar comigo. “Não dá mais”, começou ele. “O que houve, cara?”, tentei apaziguar. Dinho disse que tinha chegado a conclusão que não gostava dela. Apenas a usava com medo da solidão. E essa situação estava se agravando. Mais uma vez ele começava a achar defeito nela onde, ele sabia, não existia. “Tenho que tomar uma decisão”, ele falava enquanto mexia o copo americano em cima da toalha de papel encharcada na mesa do boteco, “Vou terminar definitivamente”, e num gesto teatral, virou a cerveja direto na goela.

Entretanto, para piorar, Dinho enrolou por mais alguns dias. Mais uma vez, eles não brigavam. Dinho ficava, apenas, cada vez mais quieto. E Márcia encarava isso como algo normal, como se o comportamento dele fosse esse mesmo em certas horas. Ou ela não queria ver. Ou ela tinha medo de que se conversassem, tudo poderia piorar. Ele me parecia nitidamente irritado com tudo, mas eu nunca a vi tentando conversar sobre isso. Não sei nada ao certo, isso é apenas uma hipótese. Eu sei que não há nada de concreto e tudo não passa de suposições, mas ela nunca tentou conversar com ele, senão eu saberia.

A bomba estourou no pior momento possível. Três dias antes do aniversário dela – ela já tinha gastado um dinheiro para uma festa, chamado vários convidados, reservado uma boate – ele foi à casa dela buscar suas coisas. Entrou quando ela abriu a porta, não a cumprimentou, foi direto no quarto, pegou suas roupas, colocou numa sacola – ela acompanhava assustada ao seu lado, sem conseguir pronunciar nem uma única palavra –, foi em direção à saída, parou debaixo do batente, virou-se para ela e disse, “Tá acabado”. Ela tentou dizer algo, perguntar alguma coisa, mas as palavras ratearam. Foi o tempo dele pegar o elevador e ela sair correndo para a janela. Quando ele apareceu lá embaixo, ela gritou, “O que, Dinho? O que você disse?”, ele apenas se virou, olhou para cima e a ignorou completamente. Saiu andando pela rua até chegar no carro. Ela observou o caminho dele, e quando o carro zarpou, deixou seu corpo cair, sem forças, se arrastando pela parede até o chão, abraçou os joelhos e chorou baixinho, em estado de choque.

Márcia foi à sua própria festa, mas ela não estava exatamente lá. Ficou a maior parte do tempo sentada num sofá, bebendo algo que não estava fazendo efeito algum sobre ela. Márcia estava aérea, distante, alheia a todo mundo que ia lhe dar parabéns. Parecia sedada. Algumas pessoas tentavam conversar e ela respondia apenas com sorrisos impessoais.

Lá para as quatro da manhã, quando grande parte dos convidados já tinha ido embora e eu já pagava a minha conta para também ir, Dinho entra no salão, completamente bêbado. Ela se levanta de pronto e, calada, acompanha os passos dele. Ele carrega um embrulho e caminha cambaleante na direção dela, ela arregala os olhos. Quando está bem próximo, ele fala de maneira embaralhada, “Eu não disse que viria? Pois é, tô aqui. Agora você não vai poder falar nada. Eu tô aqui. Pronto, eu tô aqui”, e repetia que estava ali, que ela não poderia reclamar, nem culpá-lo, nem nada. “Toma”, esticou o pacote para ela que o segurou. Ele pegou o pequenino corpo dela com ambas as mãos e o puxou para si, deu um beijo na bochecha esquerda e depois na direita, no gesto quase de pantomima, no que ela ficou parada, sem esboçar nenhuma reação. “Viu como eu sou educado. Viu como eu sou moderno”, virou-se na direção da saída, levantou a mão direita e disse sem ao menos olhar para ela novamente, “Agora, tchau”. E da maneira que entrou, cambaleou de volta. Antes de ele sair, ela gritou, “Peraí”, ele parou, se virou, toda a boate acompanhava os dois, ele percebeu isso, “O que é que vocês estão olhando?”. Ela continuou, “Peraí, não vai embora”, “Eu não tenho nada para fazer aqui”, ele se virou e foi embora. Ela deixou cair o embrulho no chão e o corpo no sofá. Acredito que ela ficaria ali para sempre, se não a tivessem carregado para casa.

Os dois se separaram completamente. Dinho não queria nem ouvir falar o nome dela. Márcia demorou um tempo para se acostumar com a nova situação. Ficou na merda completa. Emagreceu perceptivelmente, vivia com olheiras e chorava à toa. Demorou uns bons dois meses para ela voltar às suas atividades normais. Um tempo depois, foi Dinho que começou a se sentir novamente muito sozinho. Ele até que saiu com outras meninas, mas não conseguiu sentir nada demais. Elas apenas preenchiam um espaço por pouco tempo. Dinho dizia que não gostava de Márcia, mas tinha ainda menos paciência para com as outras meninas. Passou mais alguns meses e ele recebeu a notícia, por mim, que Márcia tinha arranjado um novo namorado. Ele não perguntou quem era, mas se sentiu, na hora, traído. Repetia em voz alta para si mesmo, “Como é que ela teve coragem, como é que ela teve coragem”, e esquecia que tinham passado mais de cinco meses desde que eles se separaram. Depois, quando percebeu que ela não tinha nenhuma obrigação com ele, ele percebeu que tinha perdido algo. Sabia que ela era dele, e pensava que a qualquer momento que quisesse voltar, ela estaria disposta. Agora não mais.

Nessa época, ele ficou um bom tempo sem sair com ninguém. Dizia sem interesse até mesmo para sair de casa. Eu o convidava e ele sempre tinha alguma desculpa. Só ia para o novo trabalho e de noite para a faculdade. Não ia mais às festas, ou participava de qualquer programa com os nossos amigos. Ele nunca me explicou direito o motivo disso, e, em se tratando do Dinho, acredito que nunca vai dizer mesmo. Podemos apenas supor.

Com quase um ano depois do término do namoro dos dois, ele voltou a aceitar a diversão como algo saudável. Primeiro foi aos cinemas, depois aos bares, às festas. Mais dia, menos dia, acabaria acontecendo o que aconteceu. Dinho estava tomando uma cerveja, conversando com alguns amigos numa festa e Márcia aparece com o namorado. E eu era o namorado. Ele tentou disfarçar, mas não conseguiu. Interrompeu uma frase no meio para olhar-nos. Conseguira esconder até aquele momento, mas a hora de enfrentá-lo tinha chegado. Entramos no salão e percebemos os olhos dele pesando em cima da gente. E, junto a isso, parecia que o resto da festa tinha se tornado, de uma hora para outra, em espectadores e, nós, em atores de um espetáculo cujo final era uma surpresa. Fomos para um canto e fingimos nos divertir. Fingimos dançar, fingimos conversar, fingimos estar nos sentindo a vontade. Não tínhamos cumprimentado ninguém de perto, apenas com acenos discretos de longe, para evitar passar pelo constrangimento de falar com ele. Mas, depois de algumas músicas e algumas cervejas, ele que veio falar conosco. “Então, você é o namorado dela, hein?”, e, antes que eu esboçasse qualquer tipo de resposta, continuou, “E, você nem tinha me dito que estava namorando”, e virou a lata de cerveja. Eu e Márcia quietos, acuados como presas, “Que amigo filho da puta você é”, e deu uma pausa para sentir a frase explodir. Senti meus dedos dos pés travarem na hora de nervoso, “Nem conta que está namorando”, eles se afrouxaram um pouco, mas não era nada confortável. “Você sabe a situação era um pouco mais complicada...”, tentei melhorar a situação. Ele bateu no meu ombro, balançou o queixo para apontar para ela, “Aproveite. É uma ótima foda”, e saiu. Fiquei, ficamos, eu e ela, estáticos, covardemente paralisados.

A festa se transformou num exercício de paciência. Era óbvio que queria ir embora o quanto antes. Todavia, isso não seria nada de bom tom. Além de apenas postergar o problema. Se queríamos ficar juntos, tínhamos que ter um pouco de coragem, pelo menos dessa forma. “Vamos embora”, ela me pediu, assim que tinha me convencido de ficar e enfrentar o Dinho. Tentei falar para ela que não era o certo, que deveríamos enfrentar, e ela me interrompeu. “Fica quietinho. Vamos embora e fica quietinho”. Não pronunciamos mais nenhuma palavra.

Evitamos, de todas as formas possíveis, encontrar com o Dinho no dias seguintes. E tivemos um certo resultado positivo com isso. Nunca mais freqüentei a casa dele, nem fomos às festas do nosso grupo nem aos lugares que ele normalmente ia. Mantivemos esse tipo de regime por algumas semanas. Entretanto, depois que encontramos Dinho, a nossa relação tinha se esfriado. Nunca fora algo realmente emocionante. Costumava fazer tudo junto dela, ia até para os tradicionais, e chatos, almoços da família dela, coisa que nem o Dinho se propôs. Mas nesses últimos dias, éramos dois estranhos que se encontravam porque tinham que se encontrar, nada além. Saímos, quando conseguia tira-la de casa, e ela logo pedia para ir embora. Inventou milhares de desculpas para não dormir na minha casa, nem eu na dela. Me evitou de formas variadas, só conseguia vê-la nos fins de semana, e mesmo assim, sempre pedia para eu deixá-la. Foi quando num domingo, dia 15 maio, ela me chamou na casa dela. Sabia exatamente o que iria acontecer, mas mesmo assim fui. “Não dá mais para continuar assim”. Ela fez um discurso enorme, com todos os motivos, nenhum era o real. Disse que nós não gostávamos um do outro o suficiente, que queria rever pontos da vida, que queria dar apenas um tempo. Escutei tudo dela sem pronunciar uma única palavra. Quando ela acabou, me levantei e fui embora. Seco, quieto, mas triste, amargurado, oco por dentro.

Fiquei mal, como não ficava há muito tempo. Sentia-me como o lixo do mundo. Como a escória. Tentava achar algum sentido na minha vida, e não chegava a nenhuma conclusão. Pensei que nossa vida era boa. A nossa estabilidade, a nossa vida em comum me dava uma segurança que nunca tinha tido. Márcia funcionou para mim como um troféu que eu conquistei. Tive que me dedicar muito na empreitada, mas fui agraciado no final. Com a perda dela, fiquei sem parâmetros, sem referências, sem saber direito quem eu era.

Mesmo assim, tentei voltar a minha vida – dita normal – em pouco tempo. Alguns amigos insistiram que ficar em casa não ia melhorar em nada a situação. E encontrá-los me aliviaria um pouco, teria a possibilidade de pensar em outra coisa. Na minha casa, tudo me lembrava a Márcia. Tentei racionalizar o problema, ser o mais prático possível. Hoje, acredito que não foi uma boa idéia. Mas foi a única que apareceu naquele momento.

Por isso resolvi ir à festa no final de semana passado que uns chegados organizaram. Era aniversário de um grande amigo meu, e as suas festas costumavam ser homéricas. Era certeza de encontrar uma galera lá que não via há tempos. Me aprontei e fui cedo para lá. Queria chegar antes de todo mundo para não perder nada. E fui impelido a sair de casa pela minha ansiedade. Imaginei que ficaria jogando papo-fora, beberia uma cerveja, essas coisas. Contudo, nada ocorreu da maneira como eu previa. Saltei do carro, caminhei apressado para a casa de festas e avistei o casal. Diminui o passo até parar completamente na calçada. As primeiras pessoas que vi na fila foram Dinho e Márcia. Juntos.

Pronto. Já tinha a história para contar.

quarta-feira, 28 de maio de 2003

Vestido de Noiva

Por décadas, e até hoje, toda a obra de Nelson Rodrigues é bastante associada no meio comum a uma alcunha que ele, como dramaturgo, recebeu ainda na década de 50, pornográfica.

O que por si só, já denuncia um certo preconceito. Como se a arte pornográfica fosse menor ou pior que as que abordam outros aspectos. Mas esse nem é o caso.

É certo que as personagens rodrigueanas tem ligações extremas com sexo, traição e tudo que é comumente ligadas à pecaminosidade. Porém, isso foi a forma do autor de mostrar o temperamento forte e imprevisível de suas protagonistas e secundários.

Mas, antes disso ainda, deve-se ater a fatos muito mais concretos da obra de Nelson. Por exemplo, seu belíssimo texto, um clássico que consegue passar por décadas quase incólume e bastante vivo, cheio de poesia em forma de prosa, como costumava afirmar Manuel Bandeira. E principalmente, sua revolução estética, que começou com “Vestido de Noiva”.

Nelson sempre foi uma parabólica que captava tudo a sua volta. Por isso mesmo, não deixou passar em branco “Cidadão Kane”, o que ainda hoje é considerado o melhor filme de todos os tempos. O que foi proposto por Orson Welles, na sua primeira incursão no meio cinematográfico, tinha a ver com a forma como a história era contada, num eterno flashback e flashforward, começando pela cena final com a morte do protagonista e voltando até o início da cronologia.

O dramaturgo ficou impressionado com essa idéia e resolveu adaptá-la para o teatro, porém, a sua maneira. Assim, “Vestido...” não só mexe com o tempo real dos acontecimentos, mas se passa em três ‘tempos’, o presente, o passado, através de lembranças e o delírio da personagem principal.

Como o filme de Welles, a peça começa do fim, a protagonista está numa mesa de cirurgia preste a morrer. O espectador é bombardeado por diversas informações desconexas, que não se encaixam e não sabe o que acontece. Com o tempo, através de um jogo de reconstrução, da procura da verdade, descartamos o irreal para nos ater somente à verdade.

Claro que, mesmo assim, não é tão simples como podemos supor. O dramaturgo brinda-nos com jogos de idas e vindas, voltas, reformas de cenas, modificações, inclusões de outros personagens no meio da história, tudo para desvendar esse mistério. O espectador se transforma num quase detetive que, ao longo da peça, recebe pistas, algumas falsas, outras verdadeiras e monta sua própria resolução.

O que é mais incrível é que, assim como o filme norte-americano, a peça de Nelson, escrita em 1943, continua hoje atualíssima. É ainda mais vanguarda que muitas produções que hoje se julgam modernas. Na época que foi escrita, não tinha nenhuma correspondente no mundo inteiro. Nelson era um autor muito a frente do seu tempo e era julgado no Brasil muitas vezes apenas por seus personagens extravagantes. O que fez amargar um longo período de ostracismo. E ainda sofre com isso.
Aquela noite

Foi naquela noite, a última da boate Interpol, ali em Copacabana. Disseram que iriam fechar para reformas por alguns meses, mas ela não voltou a abrir, até hoje.

Como iam fechar, eles queriam acabar com todo o estoque de bebidas que tinham. Por isso, fizeram uma promoção onde tudo era vendido por dois reais. Doses de uísque, tequilas, caipirinhas. Várias pessoas passaram mal pelos banheiros e até na pista de dança.

Por esses dois motivos, a liquidação das bebidas e o último dia da boate, a Interpol estava absurdamente lotada. A fila de entrada dobrava o quarteirão e ficava na rua transversal. Muita gente chegou cedo, antes das onze horas, e teve que esperar nessa fila. Lá dentro, o ar condicionado não dava vazão para tantas pessoas e o suor corria nas costas, empapando todas as camisas.

Mesmo assim, ou por causa disso, eu fui na despedida da Interpol. Um casal de amigos meus passavam uma temporada na minha casa e os levei juntos. Chegamos também cedo e engrossamos a fila de espera. Ficamos bebendo cerveja, que buscávamos toda a hora, de um boteco de péssima categoria ao lado da boate.

Por mais que os dois estivessem passando férias aqui no Rio, senti desde o início que o clima não era dos mais favoráveis entre eles. Raramente participavam da conversa ao mesmo tempo. E eu tinha que fazer o tipo cicerone, ora com atenção mais focada nele, ora nela.

Próximo de meia-noite, outros amigos chegaram e entraram na fila conosco, o que diluiu o peso que pairava entre nós três. Gente que não via há décadas, outros companheiros de longas datas. Conversávamos animadamente por algumas horas, já que era praticamente impossível entrar na Interpol na hora que quiséssemos.

Só depois das duas da manhã, já bêbado, entramos. Como disse antes, o lugar estava extremamente cheio. Em todos os lugares, corredores, pistas de dança, banheiros, bares, havia filas de gente suada. Começamos a beber caipirinhas e uísque por dois reais. Era para esquecer, brincamos.

Lá dentro, todo momento que olhava para o casal, eles discutiam. Não queria nem saber o motivo, mas via os dois gritando, ele apontava para ela, ela sarcástica, ele olhava para alguém que passava, só para irritá-la, ela saía para o banheiro e não avisava para ele. Decidi dar uma volta para deixá-los mais a vontade.

Fui para o outro lado da boate, fiquei atrás de uma pilastra, onde pude observar, três degraus acima de todos, a pista de dança completamente lotada, e a cabine do dj ao fundo. Por mais que a imagem seja batida, devo admitir que é bastante apropriada, era uma massa de pessoas sem rosto dançando ali, bem abaixo de mim, a poucos metros de onde estava. Uma coleção de corpos pulando ao som, completamente ignorantes do que acontecia ao lado. E eu, algumas vezes que bebo, fico meio triste, meio pensativo, sozinho num canto sem motivo, sem querer encontrar ninguém. Nessa hora, na minha frente exatamente, avistei um grupo de meninas lindas – o tipo que nunca tinha ido a Interpol e se aproveitava do fetiche de último dia . E logo assim que eu reparei nelas, percebi que uma, talvez a mais bonita de todas, me olhava com insistência.

Se por um lado me sentia cheio por saber do interesse de uma das meninas por mim, por outro me achava culpado por não querer aproveitar essa oportunidade. Já não era a primeira vez que isso acontecia. Num grupo de meninas, a que era mais bela de todas sempre olhava para mim com outras intenções. No entanto, nem sempre tinha vontade de ir falar com ela. Sentia que essa facilidade, essa necessidade descartável que algumas meninas têm, de querer alguém aqui, e logo outra pessoa ali, só para não ficarem sozinhas, me tirava a vontade de conhecê-las. Poderia estar fazendo um pré-julgamento, porém na quase totalidade sabia que estava certo.

Eu sei que esse pensamento é apenas uma adaptação do comportamento masculino de décadas. A mulher apenas se aclimatou àquilo que o homem pediu. Essa era uma das causas de querer, quase sempre, ficar sozinho nesses lugares. Observar os tipos, sem nenhuma pressão.

A menina, depois de alguns minutos me observando, na tentativa de demonstrar que estava interessada em mim, mas sem tomar nenhum tipo de atitude em relação a isso, desistiu e foi para outro lugar. Bem provavelmente com o intuito de achar outro alguém.

Algo dentro de mim sentia que eu tinha desperdiçado uma ótima oportunidade de ficar com uma menina linda. E havia um outro pedaço de mim que afirmava que a situação era tão sedutora quanto em um bordel. Não previa nenhuma complicação, e seria uma experiência puramente física. Qual seria a dificuldade, me perguntava. Quantas, iguais a essa, poderia conseguir, caso quisesse? Contudo, o lado que dizia que eu havia desperdiçado mantinha uma voz constante. Mesmo que não fosse a que me comandava naquele momento, ele falava baixinho na minha orelha ‘que desperdício’.

Olhei para o meu relógio e não acreditei quando vi que eram apenas quatro e meia. Fui dar uma volta nos outros ambientes, meio sem motivo, apenas para o tempo passar, e encontrei no caminho o casal de amigos, ainda numa discussão. Ele me chamou para próximo, entretanto falei que ia ao banheiro e escapuli. Em frente ao bar, pude ver uma cena que era exatamente antagônica a que eu havia participado. Um sujeito super malhado, sem camisa, com o corpo brilhando de suor, agarrava a força meninas que passavam na sua frente. Para ele, pensei no momento, a única coisa importante era o contato físico. Agia como que por instinto, sem nenhum tipo de trava, censura ou pensamento, mesmo. O pedaço de mim que repetia ‘desperdício’ observou a cena e apenas sorriu. Sentiu uma certa inveja dele por não ter nada que o impedisse de ser o mais impulsivo possível. Por outro lado, achei toda a cena violenta demais, apesar de perceber algumas meninas mais que interessadas no fortão.

Voltei do banheiro e encontrei o casal separado, ela sentada num banco com a cara amarrada, ele com um copo na mão, observando toda a pista de dança, de costas para ela. Propus irmos embora, e fui atendido de pronto pelos dois, na, talvez, única vez que concordaram em toda a noite. Saímos e fizemos sinal para um táxi parar sem pronunciar nenhuma palavra. Ele entrou no banco da frente, eu e ela no banco de trás. Ficamos sem falar nada até chegar em casa. No entanto, minha cabeça não parou. Queria saber se minha atitude tinha sido a certa ou era apenas um sinal de covardia. A menina, mesmo sendo muito linda, não me atraía em nada. A situação era asséptica, fria, impessoal. Mas o ‘desperdício’ voltara a minha orelha.

Entramos em casa, dei ‘boa noite’ para ambos e fui para o meu quarto. Eles – acredito – foram para o quarto que estava vazio. Coloquei uma música para tocar, deitei na minha cama, apaguei as luzes e fiquei com os olhos abertos, na espera do sono. O álcool mostrou-se eficiente e em poucos instantes já cochilava. Foi quando ouvi pequenas batidas na minha porta. Abri os olhos, meio que assustado, não sabia o que acontecia, e não era algo comum. Sentei na cama e abri a porta. Era ela, a mulher do meu camarada. Com um short e um top colado que deixava metade dos seios à mostra. Ela ficou na minha frente quieta, percebi que ela olhava na minha direção, só que não me enxergava. Parecia que atravessa o meu corpo, o meu quarto e chegava lá na rua. Ela fechou a porta com a mão esquerda e, a esse ato, senti uma resposta imediata do meu corpo. Aquela situação era por demais inesperada para não me excitar. Ela baixou os olhos para o meu rosto, com uma expressão próxima da assustada, querendo esconder os braços que sobravam, com uma necessidade de provocar o mal a alguém, de quebrar algo, de destruir e disse uma única frase: ‘Posso te chupar?’.

Na hora nem percebi muito bem o que aconteceu. Alguém pode estar se perguntando se eu não tive algum tipo de culpa. A resposta é sucinta. Sim, tive. Mas só no dia seguinte. No meu quarto, com a luz apagada, com a respiração dela ofegante, com nossos corpos suados se esfregando, não dava para identificar muito bem o que passava na minha cabeça. Apenas sabia que era algo proibido e isso me dava mais vontade de continuar. Não raciocinava que ela era a mulher do meu amigo, apenas que era alguém impossível, intocável. O que a tornava melhor,

Havia uma confusão no meu pensamento. Culpa, talvez do álcool, talvez de uma embriaguez impulsiva, talvez de alguma necessidade animal. Quando acabamos, ela se levantou e sem dizer mais nenhuma palavra desde que chegara, foi-se embora. Logo voltei a dormir, como se nada tivesse acontecido. No dia seguinte, os dois haviam parado de brigar. Ficaram agarrados durante todo o dia, em frente a televisão, ou quando saímos para almoçar e não perderam uma única oportunidade de se beijarem. Não tenho idéia se ela contou o que aconteceu conosco para ele. Mas, se fosse apostar, diria que não. Ela tratou de uma forma como se não tivesse acontecido. E hoje já começo a duvidar se aquela noite realmente aconteceu da maneira como me lembro ou se foi apenas algum tipo de sonho. Só tenho certeza que no outro dia, não escutei mais a palavra ‘desperdício’ sendo repetida na minha orelha.

segunda-feira, 19 de maio de 2003

Cronistas.

Definir o que é Literatura é excepcionalmente complicado no tal ‘hoje em dia’. Nesses tempos onde os limites ficaram embaçados e não podemos afirmar sem medo do erro onde começa a produção literária e acaba o emaranhado de palavras, umas atrás das outras, sem nenhum valor artístico.

Porém, para surpresa geral, essas definições nunca foram unanimidades. No caso específico da Literatura, para usar um exemplo mais a mão, existe até um ser que é o maior motivo de briga entre duas das facções que sobrevivem de escrever: o cronista.

Desde os tempos mais remotos do jornalismo, esse sujeito existiu, para alegria e/ou desespero de jornalistas e escritores. E existem tantas e tamanhas diferenças entre eles – os cronistas – e elas – as crônicas – que fica difícil enquadra-los num mesmo saco.

Existem aqueles que usam o espaço que o jornal lhes dá para mostrar informações privilegiadas do cenário nacional, mostram pontos-de-vista contraditórios, que marcham contra a maré e etc. Também é confundido, e conhecido, como Articulista.

Outros falam sobre a cidade que os envolve. Falam de cenas insólitas, mas cotidianas, ou versam pela poesia, mas em prosa. Há ainda aqueles que escrevem contos, egotrips, e outros tipos de narração. Definitivamente não há regra que enquadre os cronistas.

Alguns, ou algumas, são mais próximas de jornalistas, enquanto outros poderiam sobreviver só de ficção, se isso fosse possível nesse país. Porém, no fundo, no fundo, acredito mesmo numa mescla entre esses dois seres tão díspares e tão sinônimos.

A capacidade de concisão de um jornalista é quase indispensável para quem quer passar uma informação – mesmo que irrelevante – num espaço pré-determinado. Dentro dos jornais, o cronista só tem aquele espaço e mais nada. De outra forma, deve escrever a crônica em partes, o que pode torna-la quase um folhetim.

Porém, mesmo aqueles mais preocupados com fatos jornalísticos têm a possibilidade de ignorar completamente as regras impostas pelos manuais de redação. Onde diz lead, proibido o uso da primeira pessoa, imparcialidade, essas coisas, ele desfruta de uma liberdade incomparavelmente maior.

A crônica é um híbrido. Que já produziu – ou foi produzido por – gente do quilate de um João do Rio, Rubem Braga, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Antônio Maria, Vinícius de Morais e outros. E ainda rende frutos com Luiz Fernando Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, Élio Gaspari, Clovis Rossi, Carlos Heitor Cony, Millôr Fernandes, Joaquim Ferreira dos Santos, Fritz Utzeri, Arthur Dapieve, Arnaldo Jabor, Walter Salles, Eliana Catanhêda, e muitos outros que, obviamente, esqueci.

Talvez, por uma questão de definição, poderíamos supor que aqueles textos que sobrevivem a temporalidade, independentes de serem mais jornalísticos ou inventivos, são obras de literatura. Ou, podemos sugerir que aqueles que apresentam estilo próprio produzem literatura. São apenas critérios que se movem para melhor adaptar a quem necessita disso.

O mais correto, acredito, é exatamente ignorar as definições duras e ranzinzas que impedem que algo – ou alguém – faça parte de duas categorias ao mesmo tempo. Principalmente quando essas categorias não são antagônicas e utilizam as mesmas ferramentas. Palavras.

Ps. E eu que queria apenas falar sobre um livro do Antônio Maria que li e reli nas últimas semanas...
traição

Faz dez anos. E só por isso já há duas coisas que povoam a minha cabeça. Primeiro a idéia de que as cenas ainda estão excepcionalmente recentes. Cores, posições, traços, tudo tem o seu lugar dentro de mim. Nem sei se o que me lembro é a verdade absoluta, pois não tenho o distanciamento pessoal mínimo exigido, mas a riqueza de imagens, tantas e tão boas, fazem-me crer que é bem provável que aquilo mesmo aconteceu. Não teria tamanha imaginação.

A outra é uma questão. Aonde foi parar aquele menino cheio de coragem e curiosidade? Lembro dele, mas ele é outra pessoa hoje em dia, muito distante daquele. Ele não existe mais, serve-me apenas como personagem.

Tinha doze anos, idade que sabemos tão pouco de tudo que ainda esquecemos por vezes de sermos falsos, e tinha uma namorada, que ganhara com sorte, numa daquelas oportunidades semelhantes a apostas em cavalos azarões e que ele se mostra vencedor, para surpresa de todos, principalmente do leigo que apostou nele. É, eu sei, sempre fui meio precoce.

Namorava como por esporte de entretenimento, para ocupar espaço na minha estante temporal. E, depois de um tempo, já estava enjoado do cotidiano da relação, se é que posso usar tal expressão para uma vida tão jovem. Nessa época, houve uma festa onde a minha namorada não iria.

O lugar tinha tão poucas pessoas que era possível conversar com todas ao mesmo tempo. E estava absurdamente maçante. Sentar numa cadeira e olhar a paisagem era o meio mais aconselhável de se divertir. No entanto, uma das convidadas era uma menina loirinha da minha idade que eu conhecia há pouco tempo, e que sabia, tinha um certo interesse por mim.

Tinha doze anos e com doze anos, não temos nenhuma noção das conseqüências de nossas atitudes. Pedi para um amigo meu, primo da lourinha, ir falar com ela. O que mais queria era experimentar a sensação de trair. Saber se sentiria alguma culpa, ou apenas se me tornaria vitorioso. O que aconteceria de diferente comigo ao cometer um dos pecados na vida cotidiana, e um dom dos galãs da tv.

Ele demorou horas na conversa. Na época estava com o braço quebrado e tomava água mineral apoiado numa pilastra, em copo de plástico. Quando ele saiu, fez sinal para mim que deveria entrar. Ela estava de costas para mim, colada na pia da cozinha, com sua blusa branca de um tecido leve. Segurava um outro copo de plástico e o rasgava em tiras finas. E tremia. Seus braços, seus ombros, o corpo inteiro chacoalhava levemente num nervosismo impossível de se esconder.

Oi. Eu disse quando me aproximei. Ela não respondeu. Estaria estática, caso não se mexesse tanto por causa da intranqüilidade. Tentei puxar do fundo da minha alma alguma coisa que a acalmasse, mas acredito que nessas horas a experiência é essencial. Realmente algo que não tenho, até hoje. Resolvi, então, ser pelo menos direto, para que o sofrimento acabasse logo. Perguntei, da maneira mais clássica, e indelicada, se ela queria ficar comigo. “E sua namorada?”, foi a resposta dela que ouvi. Ela sabia da minha namorada, e eu não tinha pensado que essa hipótese houvesse. Fui pego de surpresa. “Estamos mal. Amanhã, vou acabar tudo”. Pareceu que ela se confortou um pouco, pois levantou os olhos pela primeira vez e procurou os meus. Ou apenas queria saber se o que dizia era a verdade ou se eu a estava enganando. Não sei ao certo, até hoje, qual foi a minha intenção real. Talvez fosse apenas isso, dar um conforto para ela, naquele momento. Peguei o copo de plástico das mãos dela e, num gesto altamente latino, a beijei.

Em poucos segundos, percebi que tinha sido a maior furada que tinha me metido em toda a minha vida, até aquele momento. Não por causa da traição, a idéia ainda nem passava na minha cabeça, mas porque ficar com a menina era, da mesma forma como ficar na festa, muito monótono. Fomos para o lado das pilastras e só torcia para que aquele sofrimento acabasse logo. Da mesma maneira como ela estava antes, me sentia deveras desconfortável. Descobri anos depois, que fui o primeiro menino que ela beijou e isso fez esquecer todo o enfado do momento e acrescentou uma pitada a mais de santidade naquela noite.

II

No outro dia, no clube, onde encontrava religiosamente a minha namorada, me sentia um homem quase completo. Já tinha até traído. Passara a noite empolgado com a novidade, ávido para contar para alguns amigos meus e me transformar numa espécie de desbravador. Seria uma referência, o experiente do grupo, aquele que todos procurariam caso precisassem saber como deveriam se portar diante das adversidades da vida.

Encontrei um camarada meu que crescera comigo e detalhei, até à invenção, o que tinha feito. Ele me olhava com uma certa inveja, podia perceber. Sentia-se como uma virgem ao lhe contarem como é na prática o sexo. Eu falava para ele de um mundo que ele não conhecia e só eu tinha estado lá. Despedimo-nos e a sensação de bem-estar, de autoconfiança, me fez procurar o primo desse meu camarada. Também meu amigo, contudo um pouco mais distante. As feições de apalermado se repetiram. Procurei outro amigo, ainda mais distante para contar novamente e sentir, mais uma vez, a sensação de estar por cima da situação. Já me sentia líder de um clã, com uma legião de seguidores, eu estava a frente deles, era visível. Contei a história para mais um colega. Não o conhecia há muito, menos de um ano, mas pensei que poderia confiar nele, como acontecera com os outros. E ele reagiu de maneira bem semelhante aos outros, na minha frente.

A noite engoliu a tarde e era a hora de encontrar a minha namorada. Fui para o lugar de sempre. No caminho, entretanto, a avistei de cabeça baixa, apoiada em uma de suas amigas. Achei estranho, mas pensei que poderia ser alguma coisa que eu pudesse ajudar e me aproximei ainda mais depressa. Ela passou direto por mim, com o rosto desfigurado pelo choro convulsivo. Eu era o culpado, percebi ali.

Com o braço quebrado, fiquei fora do treino de natação. Olhava para todo mundo dentro d’água, dando braçadas e mais braçadas, e voltava a cabeça para o final do parque aquático, onde a minha namorada estava com a amiga, com choro e mais choro. Pela primeira vez senti que tinha estragado alguma coisa bonita.

Certo momento, um outro amigo, o único que conversei que era mais velho, parou ao meu lado e contei toda a história, sem literatices e com o adendo mais recente. Contava tudo como num descarrego, sendo o mais sincero que poderia ser, retirando todo o peso das minhas costas e a vi passando, minha namorada passou no exato momento por nós. Num ímpeto de coragem que eu não tenho idéia até hoje de onde veio, gritei seu nome. Ela parou e me olhou de longe. O rosto inteiro vermelho, os ombros mortos, os olhos caídos. Pedi para que ela viesse até onde eu estava. Sua amiga a soltou e ela andou cambaleante. O caminho era curto, mas sentia todo o seu peso tocando no chão a cada passo. Meu amigo mais velho se levantou e nos deixou sozinhos. Ela sentou ao meu lado e não sabia nem por onde começar. Não tinha tomado decisão nenhuma até aquele momento e não suspeitava do porquê a tinha chamado para conversar. Na maior frieza, no maior distanciamento, na maior cara-de-pau, como se não fosse o meu destino que estivesse sendo decidido, eu perguntei para ela o motivo dela estar chorando. Engasgando, entrecortado por soluços involuntários, ela me respondeu que haviam contado para ela que eu a havia traído. Fiz cara de indignado e neguei toda a história com a maior veemência que se pode fazer com palavras. Tinha ido, sim, para a festa, mas nunca faria algo dessa natureza com ela. Em seguida perguntei gaguejando quem tinha inventado tal história sórdida. Queria saber quem tinha sido o delator, o Judas, o filho da puta. Ela me contou que tinha sido o último camarada que contara a história. Eu falei com ele, ele se levantou e correu atrás dela para me alcagüetar.

Falei com tanta vontade, com tanta certeza do que eu estava dizendo, que ela parecia realmente ter acreditado em mim. Tinha parado de chorar, de tremer e levantara os olhos para mim. Parecia, por ironia, as atitudes da menina do dia anterior. Ficamos em silêncio por alguns instantes. Eu não pensava nela, mas na apunhalada que tinha tomado. Na decepção de ter confiado em alguém e esse alguém ter preferido o cortejo à amizade. Ela me olhava com olhos de “está bem, agora só me leva para casa. Já confio em você novamente, vamos esquecer tudo e começar mais uma vez”. Foram poucos segundos, mas como todos os instantes decisivos, o tempo se flexibilizou. “Nós temos que terminar”, comecei outra frase. Os olhos dela se encheram d’água no exato momento posterior. Não tinha motivo e não tinha cabeça para inventar algum, então não dei motivo. Disse apenas que deveríamos terminar e ela voltou a chorar. No início, apenas lágrimas rolavam, mas logo o rosto inteiro ficou molhado e vermelho. “Podemos ser amigos, a partir de agora”, e me levantei.

Sentia-me ainda mais traído que ela. Tinha, por certo, mais experiência em amizades que em namoros. Não entendia a atitude do garoto. Em nenhum momento suspeitei que alguém pudesse fazer algo parecido. Foi quando senti o peso da culpa pelo que tinha feito. E, quanto mais eu pensava no assunto, percebia o quanto canalha tinha sido, e quanto tinha piorado todas as coisas mentindo ao final para ela. Para piorar, a amiga da minha, agora, ex-namorada, veio falar comigo depois. Veio me parabenizar pela minha atitude corajosa ao enfrentar a situação. Tinha sido um calhorda e ainda recebia elogios por isso. Minha cabeça dava nós.

Fui para casa com uma preocupação incomum para alguém da minha idade. Entretanto, exatamente como um comportamento comum de alguém de doze anos, em pouco tempo já achava a história parte de um passado muito anterior. Hoje já acho engraçada. Acho que até tem uma moral implícita, uma dica de comportamento. Algo como: seja canalha até não agüentar mais, e receba congratulações por isso. Sei que é uma piada. Mas também, uma prova de que uma história pode ser contada de maneiras completamente antagônicas. Tornando uma história de crianças, por exemplo, em um drama.

terça-feira, 13 de maio de 2003

O poeta

Lembro que era uma sexta-feira. Daquelas que se fica na cama trocando de canal até o sono te convencer a dormir. Estava na casa da minha namorada da época, e percebi que em um dos canais passava uma entrevista com o poeta. Achei estranho porque nunca tinha assistido a algo parecido.

O repórter perguntava sobre a sensação de fazer aniversário. O poeta, olho longe, nem no jornalista, nem na câmera, olhava para a eternidade, com seu olhar sem olhar, cego, via o negro e enxergava muito mais do que nós todos juntos. Disse com aquele seu sotaque de nordestino orgulhoso que era apenas mais um aniversário, que não tinha nada demais por isso.

O que entrevistava, trêmulo, diante daquele que era um de seus ídolos vivos, queria saber sobre qual era a sensação de ser considerado o maior poeta brasileiro vivo. Ele apoiado no seu cajado, na sua guia, bochechas estufadas, nariz redondo, boca quieta, sente o que falar. Ele que produziu poemas da mais perfeita sincronia, poesias para serem lidos em voz alta, para brincar de encaixar, de jogos, respondeu que não sabia confrontar poesia, poesia não compara, poesia é única e indivisível.

E sobre a comparação com o mineiro de Itabira, o que o senhor diz? Eu o admiro, correu a responder, o poeta. O repórter volta a pergunta, insiste, o homem idoso, sofrido, cansado, tinha perdido o que mais prezava, a liberdade de ler o que quisesse, na hora em que quisesse, apóia-se na bengala com as duas mãos, segura o choro na garganta, fica em silêncio para engolir, a saliva prende no final da boca. Ele tinha uma certa inveja do de Itabira. O mineiro fazia poesia sobre todas as coisas ditas grandiosas, ele escrevia com o coração, era realmente emotivo, humano. Eu sou apenas um racional extremo, faço poemas exatos, daqueles que matemáticos gostariam de fazer. Às vezes duvido se sou mesmo poeta, quiçá humano.

O poeta não disse nada. Disse, mas não quis dizer nada. Falou que o mineiro era um dos maiores poetas da língua portuguesa. E eu, ele disse, só consigo fazer poesia sobre o dia-a-dia, sobre aquilo que vemos pela janela, aquilo que presenciamos na rua, que conhecemos quando estamos no sertão.

E sobre ser o “poeta cerebral”? Só acredito em poesia dessa maneira. Quem não tem preocupação formal, não faz poesia, apenas amontoa palavras e se diz poeta.

O poeta estava no fim da vida. Anos acusando-o de ser menor por ser racional. Mas, ele não era só racional. É impossível ser apenas racional quando se é poeta. Ele vê beleza no correr dos rios, no balançar da bananeira, na mineira que foi para Brasília. Ele quer educar as crianças através da pedra, mas foi ele que nos contou sobre a Morte e a Vida Severina. Não é possível ser insensível tendo escrito isso. Via a beleza nos pequenos atos e os montava para demonstrar melhor esse seu lado.

Só respondia laconicamente, estava fora do seu habitat, queria voltar para casa, esperar que o sofrimento da escuridão acabasse. Segurava a emoção na garganta como sempre segurou na sua poesia, escolhendo aqui e ali um salpico apenas. Termina a entrevista, do lado de dentro da tela, o poeta aliviado, e orgulhoso por ter se segurado. Descubro ao final ser uma homenagem póstuma, o poeta tinha morrido naquele dia, sua expectativa chegara ao fim. Do lado de fora da tela, eu choro por ele, choro para contrariá-lo, sim poeta, você, tanto quanto o outro, era um humano, humano demais que via através dos detalhes, que via por debaixo do pano da normalidade cotidiana e nos apresentava essa sua visão bem vestida, arrumada para uma festa, com os trajes característicos. Sim, poeta, poesia não se compara. Mas, você é grande, você é um dos maiores.

segunda-feira, 12 de maio de 2003

Coceira

A primeira vez que sentiu a coceira foi no final do expediente de trabalho. Numa quinta feira, final de mês, fechamento das contas e as contas não fechavam. Sete horas da noite, todo o escritório escuro, só ele e mais dois do grupo, seu chefe e sua assistente, o dia inteiro procurando o erro. Os olhos vermelhos por horas em frente à tela do computador, o rosto banhado num suor que não escorre, mas deixa a pele oleosa, o cabelo despenteado e alguma coisa continuava errada. Oito horas. A boca do estômago mais gelada que ponta de iceberg, o coração batendo mais rápido que escola de samba e faltava quase um milhão que ninguém sabia aonde foi parar. Nove horas. O chefe atrás dele e a assistente no computador ao lado procuravam essa pequenina diferença em todas as entradas e saídas da empresa.

Então, Luiz sentiu uma comichão na perna, na parte anterior da canela, logo acima do calcanhar e abaixo da panturrilha. Abaixou-se, levantou a calça um pouco e começou a coçar por cima da meia. Logo abaixou a meia e coçou rispidamente a perna, só parando quando sentiu uma espécie de dor, como se ele estivesse rasgado um pedaço da pele dele mesmo. Olhou para os dedos que utilizara para se coçar para certificar se se machucara, percebeu que estavam limpos e voltou para o computador para procurar o dinheiro sumido. O chefe perguntou o que tinha acontecido, e ele respondeu que deveria ser um mosquito. O chefe se levantou para buscar café, pois dizia que a noite seria longa, e Luiz aproveitou para coçar a perna novamente, dessa vez um pouco mais devagar, e sentiu um prazer quase de orgasmo no ato de coçar. Com os olhos fechados, passava o tato dos dedos vagarosamente pela perna. A cada passada de mão sentia ondas do mesmo prazer se repetindo por todo o corpo. Aquilo o relaxava de maneira sem igual, nunca tinha percebido algo tão poderoso com esse fim. A respiração rapidamente voltou ao normal, o corpo parou de suar. Olhou de volta para o computador, e pôde ver algumas movimentações financeiras que antes tinham passado despercebidas debaixo do seu nervosismo. Consertaram todos os trâmites e conseguiram ir embora antes das dez da noite.

Foi direto para casa descansar. Abriu a porta e encarou a escuridão cotidiana do seu apartamento. Entrou se arrastando, se preocupava com o relatório mensal do dia seguinte. Sabia que o fechamento das contas era o primeiro problema de fim de mês que ele enfrentava sempre. No quarto tirou o sapato do pé direito e o colocou no chão, depois jogou a meia preta por cima, tirou o do pé esquerdo, a meia esquerda e encostou o indicador no pedaço da perna onde coçara. Sua cabeça estava presa no relatório mensal, mas na hora, uma vontade incontrolável de coçar aquela parte da perna tomou conta dele. Completamente irracional Luiz começou a passar as unhas como se fossem garras no pequeno montinho – a carne estava inchada – e sentia novamente o prazer, o mesmo impronunciável que tinha sentido no trabalho. Sua respiração mais uma vez se acalmou e ele parou de pensar no relatório mensal, deitou na cama e continuou a coçar, mais devagar, agora só com as pontas dos dedos. Só o prazer da coceira povoava sua cabeça, como se fosse algo tátil, como se fosse um líquido que inundasse todo o seu cérebro e o protegesse de qualquer outro pensamento, só aquele sentir bem, só aquela vontade de descansar, de dormir um pouco.

Nos dias que seguiram, teve que fazer o relatório mensal, a apresentação para a diretoria e aprontar a previsão para os próximos semestres. Luiz ficou algumas vezes até tarde da noite na empresa. E, sempre que se sentia muito preocupado, nervoso ou estressado com algo, descia a mão e coçava um pouco a perna. A onda de prazer sempre lhe tomava de maneira a fazer-lhe esquecer o que estava fazendo no exato momento anterior. Luiz se sentia em outro ambiente, em outro estado, longe dali, a cabeça já não pensava de maneira racional, pelo menos por alguns segundos, durante a coceira. Só quando estava nervoso acima do normal que exagerava na força. E, todos os dias, ao trocar de roupa, quando chegava em casa, após o trabalho, coçava novamente a perna e deixava o torpor tomar conta do corpo. A cada passada de mão sentia as ondas se propagarem e ele se acalmar.

A coceira noturna, ao trocar de roupa em casa, já tinha se transformado em um hábito e as no trabalho se encaminhavam para isso. Ele se coçava agora, todos os dias antes de começar a trabalhar, mesmo sem sentir a titilação. Dizia para si mesmo que era para se preparar para a pedreira diária, para iniciar a jornada de bom humor.

Numa dessas manhãs, sentiu algo molhado em seus dedos. Pela primeira vez, desde que toda essa história começara, teve curiosidade em olhar para aquela parte da perna que ele arranhava diariamente. Aproximou-se para olhar bem de perto e viu um montinho de carne, do tamanho exato que imaginara, porém com uma cor roxa parecida com a de carnes estragadas, sem nenhum pêlo em volta. Ele achou estranho, pois a outra perna era extremamente cabeluda, mas não se prendeu muito tempo a isso. A água que molhou seu dedo era esbranquiçada como pus, porém mais clara. Não havia sinal de sangue ou qualquer coisa parecida. Porém, de tudo isso, o que mais o chocou foi um ponto bem pequeno, extremamente preto na parte mais alta do montinho. Parecia que a pele estava morta. Luiz ficou assustado com a idéia de ter um pedaço dele morto enquanto ele continuava respirando, andando e indo trabalhar. E se imaginou como o assassino dele mesmo. Olhava para frente, e seu computador ainda estava desligado. Sua imagem refletia na tela escura, mas ainda não tinha percebido nisso, até esse exato momento. Sentiu raiva de si mesmo, se viu com uma arma apontando para a própria cabeça ou dando nessa mesma área da perna. Sonhou com os olhos ali olhando para os próprios olhos na tela do computador desligado com ele cortando um dedo para poder se alimentar. Destrinchava o indicador da mão esquerda e mordia a ponta, na altura da unha e puxava uma falange inteira. Dava para ver o osso ainda com sangue em volta, mas a carne apodrecia rapidamente ficando da mesma cor roxa e com o mesmo ponto preto que tinha na perna. Levantou-se correndo e foi no banheiro lavar o rosto.

Luiz prometera para si mesmo, no banheiro, que não iria mais se coçar. Não queria mais um pedaço de carne podre no meio da perna, não queria mais se sentir como o responsável pelo assassinato de si mesmo.

O dia passou e Luiz ficou irritadiço com seus colegas, de uma maneira que nunca tinha sido. Foi ríspido com todo o mundo que tratou, gritou com a assistente e pediu dados impossíveis de se conseguirem para alguns subalternos para aquele mesmo dia. Foi para casa nervoso sem nenhum grande relatório, apresentação ou motivo aparente. Ao tirar as meias e a calça, a coceira irracional o tomou de súbito. Começou a se debater na cama, abraçando os joelhos, mas algo arranhava exatamente aquela região, parecia que uma pena passava bem de leve sobre a pele sensível da perna, resolveu colocar a mão por cima, tapando o machucado, mas, ao simples toque da sua mão com a região, fez proporcionar uma pequena onda de prazer, bem mais fraca que a que sentia quando se coçava, é verdade. Contudo, Luiz ficou insano, não conseguia raciocinar, queria apenas que a coceira acabasse, e começou a passar os dedos em volta da ferida, no intuito de diminuir a vontade. Era ineficaz, a coceira só aumentava. Luiz, cada vez mais sem ser dono de suas atitudes, tomado por uma espécie de síndrome de abstinência, coçou com as unhas novamente em volta e, por fim, em cima da ferida. O prazer o abraçou como uma onda de calor e ele se deitou calmamente. Ficou deitado até adormecer.

À medida que os dias passaram, Luiz tentou diminuir a quantidade de vezes que se coçava, mas sempre que isso ocorria, ele ficava mais nervoso. Seus colegas não entenderam muito bem esse comportamento e Luiz não se deu o trabalho de explicar para eles. Com uma força de vontade sobre-humana, conseguiu ficar dois dias inteiros sem se coçar. Para Luiz, foram os dias mais longos da sua vida. As horas derretiam-se nos relógios e ele olhava para todos ao mesmo tempo para saber se algum deles tinha se atrasado no instante anterior. Ficou num extremo de concentração nesses dias que não puxou conversa com ninguém. E ignorou muitas pessoas que dirigiam a palavra a ele, pois não prestava a atenção em mais nada além do prurido na perna. Na primeira noite, teve insônia e só conseguiu dormir às quatro horas da manhã. E mesmo assim, um sono leve que era acordado a todo o momento pelo barulho dos carros que passavam na rua, bem longe dali. Na segunda noite, como na anterior, tirou as roupas rapidamente para não ser pego por uma fraqueza momentânea e deitou-se direto para tentar dormir um pouco que fosse. Sentia-se mais do que cansado, sentia que todas as suas forças tinham sido gastas nas últimas 48 horas sem descanso. Deitou de bruços e sua mente não conseguia dar grandes vôos porque sempre estancavam na perna e na coceira. Colocou o outro travesseiro na cabeça, na tentativa de abafar esse pensamento, mas ele se mostrava mais forte que qualquer outra coisa. Agora sentia como que uma pequena formiga andasse em volta da área machucada. Ela andava em círculos e, no centro exato, ficava se mexendo sem parar. Na cama, sentiu ainda algo pior. A formiga imaginária subia suas pernas e por onde quer que passasse a comichão se alastrava. Pela panturrilha, pelo joelho, pela coxa, por debaixo das nádegas, entre as nádegas, na região pélvica, na virilha e Luiz não resistiu. Coçou com ambas as mãos, com todos os dedos, com as garras afiadas com uma violência nunca antes utilizada, queria rasgar, estava determinado, queria procurar por todo o corpo a formiga imaginária, que destruí-la. Entretanto, por mais que ele a procurasse, não conseguiu achar nada. Ao final de alguns minutos, exausto, adormeceu mais uma vez sem perceber.

Luiz acordou com ambos os pés no travesseiro, onde devia estar sua cabeça. A cama estava desarrumada de tal maneira que parecia que uma batalha campal, ou uma noite de sexo selvagem ocorrera ali. Ele se levantou para observar todo o corpo e perceber em que estado se encontrava. Um pedaço da noite anterior tinha sido apagado da sua memória. Olhou para a ferida na perna e ela estava igual à sempre, sem nenhum traço de diferença. Porém, teve que aproximar mais a cabeça porque não acreditou no que conseguiu enxergar. Passou as mãos nos olhos para desembaça-los e teve a certeza que toda a área que ele sentiu o prurido na noite anterior, tinha um pontinho extremamente preto, exatamente como o da ferida maior. Em toda a perna, ainda na virilha, levantou-se foi para frente de um espelho grande do armário e viu as nádegas, tinha os mesmos pequenos pontos negros. Foi olhar para elas e sentir a coceira começar a se apoderar de todo o corpo. A razão fugiu e ele se coçava como um animal com sarna, completamente enlouquecido, não fazia distinção na parte ferida e passava as unhas violentamente por toda a extensão das duas pernas. Não satisfeito, puxou as pernas para próximo do rosto e mordeu a região mais afetada, arrancando um pedaço da pele com a boca e cuspiu do lado. Sentiu uma dor e a ignorou completamente, continuando a morder e arranhar-se com as garras, sangue brotava por toda a perna, manchando o lençol branco, e as mãos começaram a coçar, o rosto, no interior da boca, ele se coçava e sangrava. Parou somente quando desfaleceu completamente em cima da cama. Ao seu lado, pedaços de sua carne misturados com sangue e vários pequenos insetos ainda se mexendo no chão.

quarta-feira, 7 de maio de 2003

Dedicatórias

Houve uma terça a noite, no início da madrugada que me sentia completamente entediado. Era janeiro e todos os meus amigos haviam viajado, e eu tinha ficado, sem nada para fazer. Passei o final de semana inteiro praticamente dentro do meu quarto.

Na maior parte do tempo, ficava deitado na cama, muitas vezes com a televisão ligada, mas com o meu pensamento longe. A tv funcionava diretamente como um hipnótico para mim. Não pensava na mesma coisa sempre, mas esbarrava a todo o momento com a idéia de que não tinha nada para fazer, e que ficaria assim por um bom tempo ainda. Viajava, voava, mudava, imaginava, mas sempre encontrava esse bloqueio, esse quebra-mola que me devolvia ao chão duro.

Aluguei três filmes para ajudar o tempo passar. No entanto, assim que cheguei em casa, os vi em seqüência. Terminava um, voltava a fita, colocava na caixa e substituía por outro no vídeo. Ligeiro como se eu estivesse atrasado para algo. No final, ficaram vagas lembranças das histórias. Sei que não gostei de um em específico. De outro tenho menos lembrança ainda, nem sei se me agradou. O terceiro foi o único que ainda consegui pescar alguma coisa. Foi o que conseguiu ultrapassar, mesmo que de maneira tímida, a barreira da minha inércia e hoje consigo repetir uma de suas frases: “Você tem todos os sintomas, menos a doença”.

Tanto percebi o efeito do último filme que tentei revê-lo no dia seguinte na parte da tarde. Só que durante a projeção pude perceber que não adiantaria nada, o filme que passava na minha frente era a prova mais do que concreta da minha total falta do que fazer. E saber disso era, talvez, ainda mais torturante do que não fazer nada. Desisti de assisti-lo assim que passou de uma hora de fita.

Com o tempo em profusão, decidi terminar de ler uma novela que comprei há muito tempo. Antes de recomeçar, porém, já tinha a minha opinião formada sobre ela: era extremamente chata. Nada além disso. Na segunda, sem nenhum motivo aparente, acordei cedo e o peguei em cima da tv que tem em frente a minha cama. Passei os olhos nas últimas quarenta páginas que faltavam e acabei ainda antes de comer alguma coisa. Elas não fizeram nenhuma diferença para a trama e tive certeza que foram completamente desnecessárias.

No final de semana, eu esgotara todas as possíveis visitas em sites e quando segunda chegou, ia rever meus e-mails com extrema culpa por gastar pulsos telefônicos. Reli e re-folheei um livro de poesias que ganhei no meu último aniversário. Sabia as poesias de cor e muitas vezes fechava os olhos para ver se conseguia enxergá-las sem nem mesmo vê-las. Essa brincadeira me ajudou a passar algumas horas, se contabilizarmos todos os dias, mas, em determinado momento, ela também ficou chata.

A terça foi o pior dia de todos. Tinha decorado cada pedaço do meu quarto e ele parecia que estava diminuindo de tamanho aos poucos. Pensei em sair de casa, mas tinha medo de parecer louco andando sem nenhum motivo nem destino. Levantei várias vezes e fui no banheiro me olhar no espelho, tomei alguns banhos durante o dia, que também me ajudaram a combater o calor de dentro de casa. Minhas costas doíam de tanto ficar deitado na cama. Sentei, então, por horas. Olhava a parede vazia, ali na minha frente, a poucos metros, sem nenhum barulho em toda a casa, só o de um raro carro que passava na rua, com o único intuito de ver se ela se aproximava de mim.

Certo momento, decidi começar a ler alguma coisa nova. Levantei num pulo, como se tivesse descoberto o remédio para o marasmo. Sentei no piso, ao lado da caixa de papelão em que meus livros ficavam e comecei a tirar um por um de dentro. Contos de suspense, policiais, romances épicos, livros dos meus autores favoritos, crônicas, algumas poesias, três peças de teatro, e cheguei a conclusão de que já tinha lido tudo. Não havia nenhuma novidade para mim. Já sabia o início, o meio e o fim de praticamente todas as obras. Tinha o costume de, ao gostar de uma obra, lê-la por vezes seguidas até que eu ficasse bastante íntima. E, fora essas, não tinha nenhuma vontade de reler as que não tinha gostado da primeira vez. Principalmente aquelas que tinha sido complicado até terminar.

Havia apenas um livro que não conhecia, um dos últimos da caixa. “Obras completas”, dizia sua lombada, de um autor que não reconheci, nem o nome, nem o sexo, nem a nacionalidade, pois não havia a página que deveria informar isso. Era um completo desconhecido. Não me considero nem próximo do que é usualmente chamado ‘pessoa informada’, mas raramente encontrava algum autor, principalmente dentro de minha casa, que eu nunca tivesse ouvido falar nem do nome. E não me lembrava de ter visto o livro alguma outra vez aqui. Ele não me parecia novo, e pude comprovar que não o era, ao encontrar uma dedicatória cordial, nada emotiva, para uma moça pelo seu aniversário, que não tinha a mínima idéia de quem fosse, e uma assinatura ainda mais estranha ao final do pequeno texto.

Fiquei com o tijolo na mão, tinha mais de quinhentas páginas mais a capa dura, e imaginei que fizesse parte do espólio de meu pai, e que ele comprara em algum tipo de sebo. Sentei na minha cama com as pernas para fora, numa empolgação que não me assaltava há muito tempo. Sempre tive vontade de comprar, nessas feirinhas de livros que atravessam a cidade dentro de barraquinhas verdes, livros que eu não tivesse nenhum tipo de informação sobre a história. Pegar até mesmo os de autores considerados menores e ler todas, até achar alguma que fosse boa. Achava impossível que todas, sem exceção, fossem ruins. Essa minha idéia sempre ficava para depois porque nunca tinha tido nem dinheiro nem tempo de sobra para gastar com essas escavações. Com esse livro, desse tal Gerlu Auska, teria a oportunidade de me aventurar num livro completamente inesperado.

Algumas pessoas dizem que os escritores são mais racionais, sendo as escritoras mais emotivas. Isso tem tantas exceções que é impossível propor uma regra. Mas, se mesmo isso fosse verdade, no caso dessas ‘Obras Completas’ seria complicado classificá-lo.

O primeiro livro que a coleção comporta é de poesias, com poemas sobre angústia, sufoco, desespero diante da vida. Não há nenhuma preocupação aparente com formatos, rimas, métricas. Há um, em específico, que encontrei declarações de amor tanto por homens como por mulheres, de maneira bem parecida, e concluía afirmando que o poeta admirava realmente o ser humano de uma maneira ampla.

O segundo, porém, é diametralmente oposto. Se o anterior se chamava ‘Poemas’, este possui um nome, também simples, porém bem mais definido: ‘Sonetos da Razão’. Toda a emotividade foi substituída por respeitos às regras, como diz o próprio título da obra.

Ao terminar de ler, supus que ele poderia ter mudado de opinião sobre suas posturas literárias e optado virar radicalmente de estética. Porém o terceiro livro, também de poesia, chamado por um variável ‘Coletâneas’, fez embaralhar todas as minhas expectativas. Ele misturava ora poemas com um rigor técnico, ora de versos livres. Às vezes seus poemas eram carregados de emotividade, falando de coisas simples da vida, como observar a chuva, porém totalmente rimadas e com um ritmo impressionante. Ou eram racionais e quase lacônicos, rápidos e práticos.

A única conclusão a que cheguei após ler todos os três livros de poesias da coletânea era vaga demais. Apenas que eu tinha gostado da grande maioria dos poemas. Na sua fase emotiva, se é que posso chamá-la assim, cada verso parecia vivo e com destino certo. Eram universais e qualquer um que lesse se identificaria. Os mais racionais possuíam uma beleza quase visual. Era, da mesma maneira, impossível não gostar deles ao recitá-los em voz alta. E dessa forma, eles pareciam sair quase prontos para uma canção.

O quarto livro era de contos. É muito difícil tentar traçar algum tipo de linha comum entre todos. São tão diferentes entre si que falar do livro como se fosse unitário seria ignorar as diversas arestas que separam uns dos outros. Um possui um protagonista completamente improvável, um monte de pedras. Outros dois não possuem protagonistas únicos, mas diversos durante toda a narrativa. Sua prosa é, assim como a poesia foi, múltipla. Ora bem seca, apenas informando, quase jornalisticamente, o que acontece, ora dando detalhes e informações que me fizeram visualizar completamente a imagem a que queria se referir. Talvez o único elemento em comum a todos os contos seja o ritmo, altamente irregular em todos eles. Como se ele dirigisse um carro que evoluísse as marchas normalmente até que, de repente, sem ao menor aviso, ele diminuísse e você fosse pego de surpresa. Não chega a ser desagradável, apenas, parece-me, ele tenta inovar demais, o que no início causa algum estranhamento.

O quinto, e penúltimo da coleção, é outro de contos, bem parecidos, pela falta de unidade ao anterior. Diferentemente do que aconteceu com a poesia, os contos parecem, de certa forma, não terem sido modificados com o passar do tempo. Porém, ao considerar que dentro do próprio livro é difícil criar uma certa unidade, fica fácil alentar para sua capacidade de se metamorfosear. O que vale ressaltar nesse volume é uma preocupação maior com jogos, armadilhas e surpresas finais. Assim, ele poderia ser considerado um pouco mais racional que o anterior. Porém, essa afirmação deve ser considerada apenas como uma sugestão na interpretação. Está longe de ser a verdade absoluta, vista por qualquer olho.

Terminei de ler o quinto livro da coletânea e olhei para o relógio, marcava 4:30 da manhã. O livro me prendera de tal maneira que nem sentira o tempo passar. Ajudava também o fato de ter passado um final de semana inteiro sem fazer quase nenhum esforço, estava bem descansado. Fiz as contas das páginas para o último livro. Ele era um romance curto, de cento e oitenta e poucas páginas. Levantei, fui na cozinha, preparei um café expresso para mim e resolvi encará-lo numa talagada só. Sabia que era muita informação para um dia só, mas há tanto tempo não encontrava um autor que fosse tão versátil, que me surpreendesse tanto, que eu tivesse tanta vontade de devorá-lo quanto esse tal de Gerlu Auska, que decidi o terminaria o mais rápido possível. Assim, releria sua obra quando acordasse, para fixá-la bem, já que também não teria nada para fazer no dia seguinte.

O romance, um pouco diferente dos contos, era razoavelmente tradicional. Falava no início do nascimento de um garoto e contava sucintamente a história da infância do menino. Continua narrando o crescimento do protagonista e em certo momento senti, como acontece em dezenas de outras ocasiões, uma certa identificação com ele. Exatamente quando isso acontece, acredito que eu me empolgo mais, sempre me colocando no lugar dele para saber quais seriam minhas atitudes.

Lá para a página 20, 25, já percebi que tinha entrado em completa sintonia com a narração. Às vezes precisava apenas de passar o olho pelas linhas e sabia exatamente o que acontecia. Passaram mais dez, quinze páginas e foi então que eu comecei a achar algo de estranho naquele menino que era o fio condutor da história. Todas as minhas pretensas atitudes em relação à trama era demasiadamente similares ao do protagonista. Em nenhum momento ele tomava posições que eu não tomaria. Houve casos de ainda mais impressionantes, ele narrava situações exatamente iguais às que eu tinha passado. Falou, por exemplo, de um briga no colégio que havia presenciado quando ainda bem pequeno, a primeira vez que vi sangue voando. Depois atentei que a história não se situava em nenhum tempo, tampouco em nenhum lugar, mas me era muito familiar. Suas duas irmãs mais velhas, o aspecto físico carrancudo do seu pai, o comportamento alegre da mãe. Praticamente não tínhamos diferenças táteis. Parecia, e a cada página que virava eu tinha mais uma comprovação, que o menino era eu.

Li a história como que escravizado, mas ao mesmo tempo completamente assustado. Até agora, quando digito essas linhas, fico arrepiado, olhando para os lados a cada barulho. Porém não conseguia tirar os olhos do livro. Parecia que ele era o meu dono, tinha a minha vontade, me guiava para onde quisesse. Falava do colégio, da época da natação, das minhas primeiras namoradas, as minhas primeiras alegrias, várias das minhas derrotas, tudo estava lá, quando entrei para a faculdade, os meus amigos, os problemas com a saúde, a minha saída de casa, as mortes na família, ele não esquecia de nada.

Um capítulo começava falando sobre como o garoto se sentia entediado num final de semana porque todos os seus amigos tinham viajado. Ele passa quatro dias sem sair direito de casa e no quarto dia encontra um livro velho dentro da caixa de papelão que guardava os livros. Nesse momento, fechei as tampas do livro de súbito. Olhei para frente e dei duas respiradas fundas para tentar me acalmar, mas minha pulsação estava muita acima do normal e meus olhos estavam extremamente arregalados. Respirei novamente e abaixei a cabeça vagarosamente para olhar para a capa do livro. Cor marrom, com o nome do autor e “Obras Completas” em letras douradas, apenas. Fiquei alguns instantes sem poder raciocinar nada direito. Não tinha a mínima idéia do que estava acontecendo, e não queria ter. Levantei e dei um passo depois do outro bem devagar até chegar na caixa de papelão. Algumas obras que tinha tirado ainda estavam fora do lugar, assim o fundo da caixa ainda podia ser visto. Joguei o livro da minha mão lá dentro e nem dei tempo para observar a maneira como ele caiu, joguei outros em cima dele para soterrá-lo. E prometi para mim mesmo nunca mais mexer naquele livro.

sábado, 3 de maio de 2003

Falando a minha caixa de correio...
(Talking to my mailbox...)

menino, não venha dizendo que você
não pode impedir, que
estão batendo embaixo e dentro e duro, que
estão conspirando contra você,
que tudo que você quer é uma chance, mas que eles
não vão lhe dar
uma chance.

menino, o problema é que você não está fazendo
o que quer, ou
se está, não está fazendo
bem.

menino, eu concordo:
não há muitas oportunidades, e há alguns
no topo que não estão trabalhando
lá muito melhor do que
você
mas
você está é gastando energia brigando e
resmungando.

menino, eu não estou aconselhando, estou apenas sugerindo que
em vez de me mandar seus poemas
com suas cartas
queixosas
você devia entrar na
arena -
mandar seus trabalhos para os editores,
isso vai reforçar sua espinha dorsal e sua
versatilidade.

menino, quero lhe agradecer
os elogios a alguns dos meus
trabalhos publicados,
mas isso
não tem nada a ver com
nada e não ajuda
merda nenhuma, você tem que
aprender a bater embaixo
e dentro e duro.

isso é uma espécie de carta
que eu mando pra quase todo mundo, mas
espero que você receba como
uma coisa pessoal,
homem.

charles bukowski.
(trad. jorge wanderley)
Madrugadas

Bêbado com os pés sobre o asfalto morno da madrugada outonal. O lugar era dos mais propícios, em frente ao bar que havíamos bebido, acabado com toda a cerveja que possuía. Conversava com um desses seres que as esquinas possuem sobre alguma das maravilhas que certos chás podem proporcionar. Num momento impreciso, uma camisa florida azul aparece no meio da chuva que transformava tudo em cinza rodeado por meninas que esbarram nos dezessete anos. Podem ser percebidos cumprimentos formais entre todos os habitantes, para demonstrar que ainda há respeito por certas normas de convívio. Como dizia, o chá de boldo era a maneira mais aconselhável de melhorar as ressacas dos dias que seguem diariamente. Nada mais emocionante, apenas espremer o tempo para que ele não acabe de uma hora para outra. A camisa florida interrompe as divagações com súplicas modernas por um punhado de notas, para as derradeiras bebidas. Dei a menor de todas e diretamente fui inquirido sobre o motivo disso. Sorri de volta com toda a ignorância irônica que habita meu coração. A camisa foi-se na tentativa de conseguir mais e melhores notas.

Os olhos já não estavam mais brancos, pois se conservavam abertos apesar de todas as petições para o descanso. Escutava-se de tudo que tinha no bolso. Um pequeno compartimento que carregava uma variada gama de sons surpreendentes e diferentes. Os sorrisinhos e os gritos agudos em volta da camisa florida volvem seus pequenos olhos nas mais variadas direções, inclusive a nossa. A camisa, cheio de si, nem percebe o detalhe.

Dança-se no meio da rua sem constrangimento. O álcool impedia a ciência do ridículo. Empurrava-se para mais para dentro da madrugada a recolhida com o intuito único de manter-se acima da sensatez. Lembrei-me que gostava muito de chá preto, mas não tinha idéia de para que servia.

Almas conhecidas passavam diante dos olhos que já não entendiam muito bem. Ao fundo, pude distinguir a camisa florida argüindo por uma carona. O intuito era levar os dezessete anos embora. Engoli mais um pouco do amarelo amargo e morno e ri de alguma piada sem nenhum motivo. Tocava algo que era bom, vinha do fundo da alma, escutava Kurt cantar e tentava ainda concatenar sobre os motivos que o levaram. Um pouco depois, todos os drogados do mundo estavam ao redor. Muitos, para ser eufêmico, com suas mentes a uma distância segura. Estavam ali por estar. Chá mate é o meu preferido, e dá ligadeira, disse e tive que explicar o vocabulário dos gaúchos.

A noção de tempo havia abandonado meu corpo para voltar só quando acordasse, longas horas depois. A camisa florida retorna com o que lhe deu carona e só. Logo somos apenas uma grande e disforme roda. Murmura-se pelos cantos pelos mais diferentes motivos. É facilmente identificável a sujeira que acompanha cada um. Uns ainda tentam disfarçar, mas estão fadados ao fracasso nessa empreitada. O cheiro de carne podre invade cada narina dali. Não me importo porque não tenho nada para me preocupar. Minha madrugada era aquela e não tinha nada além daquela. Sorria com a maior das paciências possíveis para todos. Produzia pequenas gafes contornáveis que eram motivos de constrangimentos rápidos, mas completamente plausíveis. Fico ao lado do dono da carona e falamos sobre algo que já ficou para trás, em algum lugar perdido no meio da minha memória. A camisa florida retorna e pede, quase ordena, um novo favor para o dono do carro. Digo que a camisa florida só abre a boca para pedir dinheiro ou para pedir carona. É a vez dele de ignorar o que eu digo e repete o anseio pela carona, que diz, meio encorajado por mim, acredito um pouco, não voltará no momento. Digo que a camisa florida só abre a boca para pedir dinheiro ou para pedir carona. Novamente. E rio, gargalho muito alto, surpreso com a minha sapiência, e sabendo que a camisa florida nada mais podia fazer além de tornar a pedir, seria um eterno pedinte, quase um mendigo. E eu me debruçando sobre a barriga, com caretas e espasmos. E com olhos atentos para todas as expressões de raiva que passavam no rosto da camisa que transparece sua insatisfação com a realidade sendo posta as claras. Com certeza era mais fácil para a camisa florida enquanto todos os seus pedidos eram apenas encarados como favores que um dia seriam retribuídos, não como ordens que deveriam ser acatadas. A camisa florida parecia um general impotente que os homens riem das suas ordens. E eu ria, para ajudar na figura de linguagem, eu ria. Foi-se embora em seguida despedindo-se de longe para demonstrar sua cordialidade. Ficamos uns poucos segundos a mais apenas. Tínhamos em mente a demonstração de um certo tipo de vitória, mesmo que pequena e boba. Com certo exagero, uma desmistificação de uma camisa florida azul e ordinária. Dessas que ninguém tem por receio de parecer exagerado, ou ridículo em demasia.