sexta-feira, 5 de novembro de 2004

Vilã boa é vilã que apanha

Há umas semanas, Maria Do Carmo descontou toda a sua raiva de mãe que teve a filha raptada espancando a própria seqüestradora. Se a linha anterior pareceu indecifrável, principalmente porque as personagens eram de todo desconhecidas, melhor para você. Os ossos do ofício me fazem saber quem são elas, quando tal fato aconteceu e ter a noção de que o público em geral adorou e delira quando a mocinha consegue se vingar literalmente com as próprias mãos.

Explicando: Na novela das 9h, ‘Senhora do Destino’, a primeira filha de Do Carmo (Susana Vieira), Lindalva (Carolina Dieckmann), havia sido seqüestrada por Nazaré (Renata Sorrah) ainda na maternidade. História obviamente inspirada no caso do Pedrinho, aquele moleque de Goiás que só conheceu a verdadeira mãe com quinze anos, já que a mulher que o criou era uma ladra de bebês, inclusive estando nesse momento na cadeia.

OK, mas para que isso tudo?, é necessário perguntar num terceiro parágrafo. Este é o mote. Há várias novelas esse expediente (espancamento de uma personagem má por uma boa) tem se repetido e, sem nenhuma exceção, os resultados de audiências são absurdamente altos. Os noveleiros já fizeram um apanhado pela cabeça, mas ajudo aos outros mais atarefados com dois exemplos mais recentes: Maria Clara (Malu Mader) e Laura (Cláudia Abreu) em ‘Celebridade’; e Doris (Regina Alves) de ‘Mulheres apaixonadas’ que detestava os avôs e apanhou do próprio pai.

Numa conversa de botequim, uma amiga argumentou que as agressões eram, ao menos, para demonstrar que as mocinhas agora fazem coisas impensáveis na teledramaturgia de cinco, dez anos atrás. Entretanto, não foi ressaltado que, independente dessa ‘evolução’ no conceito da ação, estamos ainda dentro do mesmo esquema maniqueísta, boazinha sofre nas mãos do mal, boazinha vence o mal num golpe. O que mudou, apenas, foi que o ‘golpe’ agora não é mais força de expressão.

E o povo adorou. Todos os picos de audiência da novela sempre estiveram nos capítulos desenlaces. Essas cenas de violência quase explícita (sempre muito mal feitas, pessimamente produzidas, por sinal) funcionam como um ‘plot point’ perfeito. A partir daquele momento, as mocinhas já não serão mais tão submissas aos maltratos da malvada.

O que difere é apenas a incitação à violência. A mocinha não mais se contenta com uma vingança moral, mas tem que extravasar toda a raiva que foi acumulando em sua personagem desde o início da novela. Não é de assustar que a mãe de Pedrinho – a espectadora padrão, para quem a novela atual foi ‘feita’ – disse que a surra de Do Carmo funcionava como se fosse ela a bater na mãe meliante. O público vai ao delírio junto.

O péssimo é que os valores que estão sendo passados – além da tradicional fantasia de que as coisas tendem a se resolver independente da vontade das pessoas – é que para se sentir bem, tranqüilo consigo mesmo, você deve bater em seu inimigo. Quase como nas cavernas. A civilização do diálogo é passado, ou pior, ultrapassado.

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