Godard "Acossado"
Até que enfim vi um filme do Godard que conseguisse realmente mostrar algum traço de genialidade. Algum não, o filme é todo genial. Chama-se “Acossado”, e, se eu não me engano, é um dos primeiros da carreira do cineasta franco-suíço.
Ele é um Godard atípico. Quase um anti-Godard, pela sua extrema capacidade de fazer todo o sentido. O filme é todo certinho, sem sombra para erros (mesmo que sejam intencionais) ou qualquer falta que desvirtue a narrativa do filme. Mas não, não é nenhum filme que podemos chamar de convencional. Ele tem planos-seqüências de quase tirar o fôlego. Faz uma montagem completamente cortada em certos diálogos que produz um efeito sensacional e perfeito para o que ele queria.
E no roteiro, percebemos já alguns traços da personalidade do cultuado diretor. Há sempre uma referência aos EUA, dessa vez nem sempre desfavorável. O protagonista masculino é sempre uma personagem menor que a feminina. E há a homenagem ao marginal, à marginalidade, ao subterrâneo, ao fora dos padrões.
Os outros (poucos) filmes que vi do Homem sempre tendiam para uma experimentação exagerada nas imagens, que beirava o tosco. E é explícito que essa experimentação-tosca só aumentou durante a carreira dele. Os filmes mais do início da carreira – década de 60 – são bem mais palatáveis dos que os de 80. Há um de 89, seu eu não me engano, onde os atores no meio da cena paravam de atuar e faziam poses para a câmera, como estátuas, mesmo que isso não quisesse dizer nada o espectador. Ou dizia e eu que não pesquei a profundidade da referência.
No início de carreira, ele tem uma forma de filmar que, de certa forma, é parecida com de todos da Nouvelle Vague. Depois, parece-me, tenta criar a sua própria escola, fugindo dos padrões que eles mesmos estabeleceram. Para isso, tenta destruir as mesmas regras que obedeciam, com um cinema mais “prático”, sem tanto cuidado, ou detalhismo. O importante é a história, a mensagem passada. Se a luz estourou, ou se a cena não é de uma qualidade ímpar, paciência, tudo é pela experimentação.
Para um cara acostumado com o perfeccionismo atual da indústria cinematográfica, não só americana como mundial, como eu, fica complicado tentar entender essa falta de cuidado que existe com algumas pequeninas coisas nos filmes do Godard.
Mas é inviável tirar os méritos dos filmes dele, por que eles existem. Mesmo escondidos, mesmo singelos, mesmo pequeninos, sempre há algo que você vai parar para pensar e chegará a uma conclusão de que Godard deve entrar para o “Hall of Fame” dos diretores de todos os tempos.
sábado, 31 de agosto de 2002
É uma casa. Com três quartos e uma pequena área. Tinham umas 35 pessoas dentro. Mais ou menos. Músicas diferentes, pessoas diferentes, climas diferentes. Um dos anfitriões chega para outro e diz, Tenho que te contar algo. O outro pergunta o que é, ele responde, Aqui não, vamos para um quarto. Tentam sair do meio de todas as pessoas, alguém pede algo no caminho, é ignorado, e seguem. Abrem a porta, O que é, pergunta o outro. Tenho que admitir algo, diz um, Fala cara, Não sei como começar, Pelo começo, Cara, pausa dramática, Eu, Ãh, Eu gosto da nova música do Silverchair que toca na Fluminense, é isso, eu tenho que admitir isso, será melhor para mim. Silêncio sepulcral. Voltam para a festa e não se falam mais durante a tarde-noite.
sexta-feira, 30 de agosto de 2002
Da série, meus camaradas, os personagens.
Interlocutor. Não é linda a palavra, ele me disse. O incrível é que esse mesmo cara tentou vestibular para medicina. É, provavelmente, o cara mais prático que eu conheço. Pessimista da pior espécie. Daquele que nem acredita nele, nem no mundo. Gosto de todas as línguas do mundo, ele falou ontem. Interlocutor, sacou, Inter, locutor, sacou. Tinha começado a trabalhar em um banco. Acho que a caixa econômica, que já tirou alguns amigos meus da ativa. Morte à caixa. O homem dos múltiplos nomes e apelidos. Nunca se vê falante. Como ele viveria sem as letras e as línguas. E a música. A música, os barulhinhos, os gravões, o discman no ouvido, a eletrônica... Apenas sei que ele vai ser mais um dos caras do mundo.
Interlocutor. Não é linda a palavra, ele me disse. O incrível é que esse mesmo cara tentou vestibular para medicina. É, provavelmente, o cara mais prático que eu conheço. Pessimista da pior espécie. Daquele que nem acredita nele, nem no mundo. Gosto de todas as línguas do mundo, ele falou ontem. Interlocutor, sacou, Inter, locutor, sacou. Tinha começado a trabalhar em um banco. Acho que a caixa econômica, que já tirou alguns amigos meus da ativa. Morte à caixa. O homem dos múltiplos nomes e apelidos. Nunca se vê falante. Como ele viveria sem as letras e as línguas. E a música. A música, os barulhinhos, os gravões, o discman no ouvido, a eletrônica... Apenas sei que ele vai ser mais um dos caras do mundo.
terça-feira, 27 de agosto de 2002
dois atos
A música escapava um pouco. A frente da casa tinha um jardim, um belo jardim de grama chinesa, com um caminho de pedras talhadas. Ela havia me dito, Siga o caminho de pedras. Toquei a campainha e a porta se abriu logo depois. Segui o som.
Desde que havia começado a trabalhar na loja, tinha me impressionado com a mulher dele. Uma loira alta, de cabelos encaracolados até o meio das costas e os olhos claros. Acho que são azuis, mas, às vezes parecem verdes.
Ela estava sentada ao lado da piscina, numa mesa com mais três cadeiras vazias, ao seu lado. Abriu um sorriso, mas não se levantou. Beijei-a no rosto, educadamente, e sentei-me ao seu lado esquerdo, de costas para a piscina. Onde ele está, perguntei.
Ele havia me contratado para ser uma espécie de gerente da loja. Ele deixou toda a responsabilidade para mim. Iria de quando em quando apenas para pegar dinheiro, ou me salvar de algo. Normalmente ia com ela. Outras, ela ia sozinha.
Bebia algo escuro. Parecia coca, mas tinha álcool, com certeza. Já está vindo, me respondeu, Você quer algo para beber, perguntou, Aceito cerveja. Ela não se moveu, não tirou o sorriso do rosto, apenas continuou na minha direção com um olhar perdido.
Devemos marcar para fazermos algo junto, um dia ela disse, uns três meses após eu ter começado a trabalhar na loja. Eu não sabia como me portar com ela, quando ia sozinha. Sempre foi muito simpática comigo. Simpática demais.
Tome, ele chegou por trás de mim, silenciosamente, e me ofereceu a cerveja. Ele, me parecia, bebia uísque, ou algo da mesma cor. Sentou do meu lado esquerdo, de frente para a ela, e segurou a sua mão. Os dois olhavam para mim, sem pronunciar nenhuma palavra.
Um dia qualquer ela foi, mais uma vez, sozinha para a loja. Sempre gostei de você, disse. Sempre achei que você seria um ótimo funcionário. Obrigado, respondi apenas. Eu estava atrás do balcão e ela, atrás de mim. Por mais que eu tentasse me virar, ela ficava fora do meu raio de visão.
Após alguns segundos de silêncio, disse, Boa música. Que bom que você gostou, ele falou, sem se mexer na cadeira nem tirar o sorriso do rosto. Ela se aproximou dele e cochichou algo perto do seu ouvido. Ele não tinha mais que 30, 32 anos. Ela, no máximo 28. Ele levantou a cabeça, Portishead, uma banda inglesa.
Já era tarde da noite. Só sentia o calor da sua respiração a cada palavra. Virei-me de costas para o balcão, e ela não estava mais ali. Vi que a porta do depósito tinha acabado de ser fechada. Fechei o caixa. Segurei a maçaneta, Devo, me perguntei em voz baixa.
Dizem que é ótimo para fazer sexo, disse e provocou um silêncio. Você quer outra, ela perguntou com o dedo apontado para a minha lata, O que você bebe, devolvi, Vou fazer uma para você, sugeriu. Você fuma, ele me perguntou, Às vezes, respondi, Hoje, você fumaria conosco, Sim, claro. Ele pegou um charuto, sentiu o aroma, puxou um cortador, tirou a ponta, acendeu um isqueiro prateado e começou a puxar a fumaça. Esse é uma produção caseira, deu uma pequena risada e passou o charuto.
Uma nuvem de fumaça impedia de visualiza-la bem. Fechei o caixa, disse em tom baixo, Você me acha bonita, perguntou. Titubeei. Ela se levantou, veio na minha direção, saiu da fumaça e perguntou novamente, Você me acha bonita, Acho. Rapidamente. Ela estava muito próxima a mim. Pegou a minha mão, colocou logo acima dos seios, Sinta meu coração, ele ainda bate.
A bebida era muito forte. Tossi um pouco. Você tem namorada, ele perguntou. Não tinha. Um garoto tão bonito, e não tem namorada, ela completa, que pena. Elas não me querem, arrisquei. Você deve aproveitar a sua idade para fazer o que quiser, ele, Quantos anos você tem, ela inquiriu, 20, respondi. Com 20 anos tudo é esquecido, tudo é perdoado, tudo é fácil, ele.
Me abraça, ela pediu, e eu a abracei. Quando tentei falar alguma coisa, ela colocou o indicador no meio da minha boca para silenciar-me. Passou a mão pelo meu rosto, Eu queria que o mundo acabasse nesse momento. Tentei falar, mas ela sussurrou silêncio.
Você quer mais um desses, ele me perguntou, Aceito. Estava um pouco bêbado e queria mais bebida. Ele acendeu outro charuto e passou novamente para mim. Ela levantou-se para pegar outro drinque para mim, ele foi trocar de música. Voltou antes dele, abaixou-se atrás de mim e mordiscou o lóbulo da minha orelha, Eu quero você.
Ela se afastou um pouco e olhou fixamente nos meus olhos. Vá para a minha casa, hoje, disse. Mas, comecei e fui interrompido pelo dedo dela na minha boca. Primeiro, vá para sua, tome um bom banho, descanse um pouco, e depois vá para a minha. E o seu marido, Não se importe com ele, Ele vai estar em casa, perguntei, Não se importe com ele, ele gosta muito de você.
Eu acho a minha mulher maravilhosa, você não acha, a pergunta estourou no ar. A sua mulher é muito bonita, respondi encabulado. Ela estava sentada ao lado dele, os dois estavam de mãos dadas. Ele soltou a mão dela, se aproximou de mim, Você tem vontade de come-la, perguntou. Eu me encostei à cadeira, gaguejei, Não, não. Pode dizer a verdade, não se acanhe, ele se levantou e começou a caminhar para um bar que havia atrás de onde ele estava sentado. Ela se sentou atrás de mim e começou a beijar a minha orelha, meu pescoço, meu queixo, até que eu a beijei.
Só quero uma coisa, ele enfiou a mão entre nós e segurou minha cabeça pelo queixo. Já não conseguia fixar meus olhos nele ou nela, já não conseguia pensar direito, me sentia cansado, confuso, desconexo. Fui eu que te contratei, você deve saber, ele disse. Sim, senhor, respondi. Você foi uma grata surpresa, garoto de 20 anos, bonito e até inteligente. O que mais eu iria querer, ele perguntou em voz alta, com os olhos em mim. Ela continuava a me dar pequenos beijos pelo meu rosto e pescoço e orelha. Sua mão corria todo o meu corpo, abria me cinto, meu zíper, puxava minha camisa. Ele se aproximou, colocou o rosto a um palmo do meu, Para passar a noite com ela, tem de passar comigo.
Abri os olhos assustados. Pulei da cadeira numa trombada com os dois. Espere, pude escutar. Parei na saída, Não é a hora nem o lugar, e fui embora.
A música escapava um pouco. A frente da casa tinha um jardim, um belo jardim de grama chinesa, com um caminho de pedras talhadas. Ela havia me dito, Siga o caminho de pedras. Toquei a campainha e a porta se abriu logo depois. Segui o som.
Desde que havia começado a trabalhar na loja, tinha me impressionado com a mulher dele. Uma loira alta, de cabelos encaracolados até o meio das costas e os olhos claros. Acho que são azuis, mas, às vezes parecem verdes.
Ela estava sentada ao lado da piscina, numa mesa com mais três cadeiras vazias, ao seu lado. Abriu um sorriso, mas não se levantou. Beijei-a no rosto, educadamente, e sentei-me ao seu lado esquerdo, de costas para a piscina. Onde ele está, perguntei.
Ele havia me contratado para ser uma espécie de gerente da loja. Ele deixou toda a responsabilidade para mim. Iria de quando em quando apenas para pegar dinheiro, ou me salvar de algo. Normalmente ia com ela. Outras, ela ia sozinha.
Bebia algo escuro. Parecia coca, mas tinha álcool, com certeza. Já está vindo, me respondeu, Você quer algo para beber, perguntou, Aceito cerveja. Ela não se moveu, não tirou o sorriso do rosto, apenas continuou na minha direção com um olhar perdido.
Devemos marcar para fazermos algo junto, um dia ela disse, uns três meses após eu ter começado a trabalhar na loja. Eu não sabia como me portar com ela, quando ia sozinha. Sempre foi muito simpática comigo. Simpática demais.
Tome, ele chegou por trás de mim, silenciosamente, e me ofereceu a cerveja. Ele, me parecia, bebia uísque, ou algo da mesma cor. Sentou do meu lado esquerdo, de frente para a ela, e segurou a sua mão. Os dois olhavam para mim, sem pronunciar nenhuma palavra.
Um dia qualquer ela foi, mais uma vez, sozinha para a loja. Sempre gostei de você, disse. Sempre achei que você seria um ótimo funcionário. Obrigado, respondi apenas. Eu estava atrás do balcão e ela, atrás de mim. Por mais que eu tentasse me virar, ela ficava fora do meu raio de visão.
Após alguns segundos de silêncio, disse, Boa música. Que bom que você gostou, ele falou, sem se mexer na cadeira nem tirar o sorriso do rosto. Ela se aproximou dele e cochichou algo perto do seu ouvido. Ele não tinha mais que 30, 32 anos. Ela, no máximo 28. Ele levantou a cabeça, Portishead, uma banda inglesa.
Já era tarde da noite. Só sentia o calor da sua respiração a cada palavra. Virei-me de costas para o balcão, e ela não estava mais ali. Vi que a porta do depósito tinha acabado de ser fechada. Fechei o caixa. Segurei a maçaneta, Devo, me perguntei em voz baixa.
Dizem que é ótimo para fazer sexo, disse e provocou um silêncio. Você quer outra, ela perguntou com o dedo apontado para a minha lata, O que você bebe, devolvi, Vou fazer uma para você, sugeriu. Você fuma, ele me perguntou, Às vezes, respondi, Hoje, você fumaria conosco, Sim, claro. Ele pegou um charuto, sentiu o aroma, puxou um cortador, tirou a ponta, acendeu um isqueiro prateado e começou a puxar a fumaça. Esse é uma produção caseira, deu uma pequena risada e passou o charuto.
Uma nuvem de fumaça impedia de visualiza-la bem. Fechei o caixa, disse em tom baixo, Você me acha bonita, perguntou. Titubeei. Ela se levantou, veio na minha direção, saiu da fumaça e perguntou novamente, Você me acha bonita, Acho. Rapidamente. Ela estava muito próxima a mim. Pegou a minha mão, colocou logo acima dos seios, Sinta meu coração, ele ainda bate.
A bebida era muito forte. Tossi um pouco. Você tem namorada, ele perguntou. Não tinha. Um garoto tão bonito, e não tem namorada, ela completa, que pena. Elas não me querem, arrisquei. Você deve aproveitar a sua idade para fazer o que quiser, ele, Quantos anos você tem, ela inquiriu, 20, respondi. Com 20 anos tudo é esquecido, tudo é perdoado, tudo é fácil, ele.
Me abraça, ela pediu, e eu a abracei. Quando tentei falar alguma coisa, ela colocou o indicador no meio da minha boca para silenciar-me. Passou a mão pelo meu rosto, Eu queria que o mundo acabasse nesse momento. Tentei falar, mas ela sussurrou silêncio.
Você quer mais um desses, ele me perguntou, Aceito. Estava um pouco bêbado e queria mais bebida. Ele acendeu outro charuto e passou novamente para mim. Ela levantou-se para pegar outro drinque para mim, ele foi trocar de música. Voltou antes dele, abaixou-se atrás de mim e mordiscou o lóbulo da minha orelha, Eu quero você.
Ela se afastou um pouco e olhou fixamente nos meus olhos. Vá para a minha casa, hoje, disse. Mas, comecei e fui interrompido pelo dedo dela na minha boca. Primeiro, vá para sua, tome um bom banho, descanse um pouco, e depois vá para a minha. E o seu marido, Não se importe com ele, Ele vai estar em casa, perguntei, Não se importe com ele, ele gosta muito de você.
Eu acho a minha mulher maravilhosa, você não acha, a pergunta estourou no ar. A sua mulher é muito bonita, respondi encabulado. Ela estava sentada ao lado dele, os dois estavam de mãos dadas. Ele soltou a mão dela, se aproximou de mim, Você tem vontade de come-la, perguntou. Eu me encostei à cadeira, gaguejei, Não, não. Pode dizer a verdade, não se acanhe, ele se levantou e começou a caminhar para um bar que havia atrás de onde ele estava sentado. Ela se sentou atrás de mim e começou a beijar a minha orelha, meu pescoço, meu queixo, até que eu a beijei.
Só quero uma coisa, ele enfiou a mão entre nós e segurou minha cabeça pelo queixo. Já não conseguia fixar meus olhos nele ou nela, já não conseguia pensar direito, me sentia cansado, confuso, desconexo. Fui eu que te contratei, você deve saber, ele disse. Sim, senhor, respondi. Você foi uma grata surpresa, garoto de 20 anos, bonito e até inteligente. O que mais eu iria querer, ele perguntou em voz alta, com os olhos em mim. Ela continuava a me dar pequenos beijos pelo meu rosto e pescoço e orelha. Sua mão corria todo o meu corpo, abria me cinto, meu zíper, puxava minha camisa. Ele se aproximou, colocou o rosto a um palmo do meu, Para passar a noite com ela, tem de passar comigo.
Abri os olhos assustados. Pulei da cadeira numa trombada com os dois. Espere, pude escutar. Parei na saída, Não é a hora nem o lugar, e fui embora.
segunda-feira, 26 de agosto de 2002
a banda
Ao ser perguntada qual dos dois vocais era o melhor, a mãe respondeu, O da menina, sem sombra de dúvidas, o da menina.
No show, tocavam todas as músicas, com a luz sempre focada no vocal da frente, dele. Todos os outros integrantes ficavam na penumbra. Apenas nos solos, ou introduções, ou viradas, era permitido uma valorização do resto da banda. Em algumas músicas, havia a participação do vocal dela. Quando toda a platéia vibrava ainda mais. A voz dela era doce, delicada, pequenina, o que contrastava com a do guitarrista, que era louca, esganiçada.
Gostei do show e acho que todo mundo gostou, disse a menina após. Todos os integrantes da banda estavam empolgados. Era o primeiro da turnê do novo cd. A primeira onde o guitarrista permitia que houvesse a participação de outros integrantes na produção e na mixagem do disco. Além de terem gravado uma música de autoria da menina.
O primeiro acorde da música soou. Vamos tocar uma das novas, falou a menina ao microfone, e foi prontamente respondida pela platéia que lotava o ginásio. Ela deu um pequeno sorriso. A música era dela. Tudo isso é para gente, ela se perguntou. A música aumentava o tom e a platéia acompanhava. O refrão foi logo repetido. Ela pulava, toda banda pulava, o solo, o pequeno solo da guitarra, no canto do palco, o refrão novamente, a canção sobe, atinge o clímax, permanece, mantém-se, continua, perde força, diminui, diminui e fecha. A menina, então, rege a platéia só com o refrão. Ela sobe, eles sobem, ela desce, eles estão juntos, ela encurta, eles acompanham.
Acho que devemos cortar aquela música, aquela sua música, diz o guitarrista, atrás do palco, já no camarim, onde todos estavam com cervejas nas mãos e cigarros entre os dedos. A menina tirava os brincos, com o cigarro na boca e tentou perguntar, O que, os outros integrantes também pararam de conversar e olharam para ele curiosos. A música desvirtua a nossa banda, ele argumenta, Como assim, pergunta um do fundo, com o pescoço de uma garrafa, no meio da palma da mão. O guitarrista encosta-se a uma mesa, abre uma garrafa, Nossa banda não pode ter este tipo de música bonitinha, o vocal é muito delicado, não tem nada a ver com o que a gente faz. Todos se sentem constrangidos. A música era boa, todos sabiam. Todos sabiam.
No ensaio, ele se atrasa. Começam a tocar sem ele. A primeira música é a dela. A banda está certinha, nada falta, nada está fora do lugar. Percebem que o solo é desnecessário. Toda a banda está empolgada. Ela tenta alguns truques no vocal, arrisca-se na guitarra, o refrão contagia a todos que cantam junto. A música termina e ele chega, Vejo que começaram sem mim, Só aquecimento, diz um, E o que vocês tocavam, pergunta ele, Nada, diz outro, Apenas aquela música, diz ela, Ah, fala ele, Vamos então continuar, Você não quer tentar tocar a música, não, pergunta ela, Não acho necessário, Mas, ela é boa, você sabe disso, Ela não é boa para a gente, ele diz com ar de desprezo. Nós tocamos todas as suas músicas, ela diz, Algumas são horríveis, diz um no fundo, Quais são horríveis, me digam, ele inquire. Silêncio. Eles não achavam que existia uma música da banda que fosse horrível, pois ele, apesar da aparente intransigência, era bastante criterioso. O mesmo aplicava-se a toda banda. Apenas achavam que havia canções piores que a da menina. Ele pendurou a guitarra, Vamos, passou a palheta pelas cordas, afinou, No três, e começaram a tocar juntos.
Antes de subirem no palco, com o guitarrista na frente, os outros integrantes aproximaram-se da menina e disseram que estariam com ela de qualquer maneira, caso ela desejasse. Ela sorriu.
Ele na frente do palco, com uma guitarra, ela do seu lado esquerdo, com outra de apoio, atrás dele a bateria, e do seu lado direito, o baixo. Ele marca, Um, dois, três, todos começam a tocar e a platéia responde da maneira usual. Ela toca para a banda, meio de costas para o público. A primeira música com participação dela no vocal transforma a platéia em coro. Havia uma sintonia fina entre a brutalidade do vocal dele e a forma delicada dela de cantar, quase como uma conversa. Ela se vira para os fãs, abre os braços, fecha os olhos, a luz acompanha toda a evolução. Ele canta de lado para o microfone, fixado nela, naquela menina pequena, de pele bastante clara, de cabelos curtos e negros, de olhos necessariamente azuis, Ela é linda, ele pensa. Acaba a música. A platéia pede pela música dela. Ela cora um pouco e se afasta do microfone. Ele toca o primeiro acorde. Ela sorri e fala para todos, A música é nova, dá uma pausa, sorri novamente, Eu fico, ficamos surpresos em saber que vocês já conhecem a música, e canta o refrão, primeiro à capela, depois com toda a banda.
Os dois, ele e ela, vão para o escritório encontrar o empresário. A música dela deve ser a de trabalho, sentencia o homem atrás da mesa. Ela fica quieta, para segurar o sorriso de satisfação, ele se mexe na cadeira, um pouco incomodado.
Entram num bar, do tipo pub, que há ali perto. Sentam no canto mais escuro e pedem uma cerveja para cada. Sempre te achei linda, atira ele. Você sabe, você sabe que eu sempre te achei linda. Silêncio. No show, no nosso último show, percebi que você é uma das meninas mais lindas que já vi e conheci. Ela toma mais um gole de cerveja, um pouco envergonhada. O que você quer comigo, ela pergunta. Ele encosta-se à poltrona, com os olhos fixos nela, pega a cerveja pelo gargalo, leva à boca, sem mover nada mais, segura a garrafa próxima ao peito, e a coloca na mesa novamente. Eu quero você, como nunca quis nada mais. Beijam-se.
Eu trouxe umas novas coisas, diz ela com um grande sorriso no ensaio. Deixe-me ver, diz um e outro às suas maneiras. O que é isso, ele levanta a voz e arranca as folhas das mãos dos dois. O que é isso, repete com intenção de demonstrar alguma coisa errada. É algo que eu escrevi, ela fala de maneira gentil. Ontem eu peguei o violão e tentei musicá-las, vê se você gosta, Não, eu acho que você não entendeu, ele grita na direção dela. Aquela sua música foi a única exceção que eu abri para você, ela começa a chorar, Essa banda não tocará mais músicas suas, nem de ninguém mais, apenas minhas composições. Ela tenta limpar o rosto entre soluços. Então, diz ela fungando, fique com sua banda e com todas as suas composições somente para você. Os músicos saem logo depois dela do estúdio.
Hoje: Ela montou, junto com a irmã, uma outra banda onde a maioria das composições é dela. Os outros músicos tocaram, e tocam de vez em quando, com as duas. Ele segue carreira solo. Contrata os músicos para gravarem os seus discos e excursionarem. Somente.
Ao ser perguntada qual dos dois vocais era o melhor, a mãe respondeu, O da menina, sem sombra de dúvidas, o da menina.
No show, tocavam todas as músicas, com a luz sempre focada no vocal da frente, dele. Todos os outros integrantes ficavam na penumbra. Apenas nos solos, ou introduções, ou viradas, era permitido uma valorização do resto da banda. Em algumas músicas, havia a participação do vocal dela. Quando toda a platéia vibrava ainda mais. A voz dela era doce, delicada, pequenina, o que contrastava com a do guitarrista, que era louca, esganiçada.
Gostei do show e acho que todo mundo gostou, disse a menina após. Todos os integrantes da banda estavam empolgados. Era o primeiro da turnê do novo cd. A primeira onde o guitarrista permitia que houvesse a participação de outros integrantes na produção e na mixagem do disco. Além de terem gravado uma música de autoria da menina.
O primeiro acorde da música soou. Vamos tocar uma das novas, falou a menina ao microfone, e foi prontamente respondida pela platéia que lotava o ginásio. Ela deu um pequeno sorriso. A música era dela. Tudo isso é para gente, ela se perguntou. A música aumentava o tom e a platéia acompanhava. O refrão foi logo repetido. Ela pulava, toda banda pulava, o solo, o pequeno solo da guitarra, no canto do palco, o refrão novamente, a canção sobe, atinge o clímax, permanece, mantém-se, continua, perde força, diminui, diminui e fecha. A menina, então, rege a platéia só com o refrão. Ela sobe, eles sobem, ela desce, eles estão juntos, ela encurta, eles acompanham.
Acho que devemos cortar aquela música, aquela sua música, diz o guitarrista, atrás do palco, já no camarim, onde todos estavam com cervejas nas mãos e cigarros entre os dedos. A menina tirava os brincos, com o cigarro na boca e tentou perguntar, O que, os outros integrantes também pararam de conversar e olharam para ele curiosos. A música desvirtua a nossa banda, ele argumenta, Como assim, pergunta um do fundo, com o pescoço de uma garrafa, no meio da palma da mão. O guitarrista encosta-se a uma mesa, abre uma garrafa, Nossa banda não pode ter este tipo de música bonitinha, o vocal é muito delicado, não tem nada a ver com o que a gente faz. Todos se sentem constrangidos. A música era boa, todos sabiam. Todos sabiam.
No ensaio, ele se atrasa. Começam a tocar sem ele. A primeira música é a dela. A banda está certinha, nada falta, nada está fora do lugar. Percebem que o solo é desnecessário. Toda a banda está empolgada. Ela tenta alguns truques no vocal, arrisca-se na guitarra, o refrão contagia a todos que cantam junto. A música termina e ele chega, Vejo que começaram sem mim, Só aquecimento, diz um, E o que vocês tocavam, pergunta ele, Nada, diz outro, Apenas aquela música, diz ela, Ah, fala ele, Vamos então continuar, Você não quer tentar tocar a música, não, pergunta ela, Não acho necessário, Mas, ela é boa, você sabe disso, Ela não é boa para a gente, ele diz com ar de desprezo. Nós tocamos todas as suas músicas, ela diz, Algumas são horríveis, diz um no fundo, Quais são horríveis, me digam, ele inquire. Silêncio. Eles não achavam que existia uma música da banda que fosse horrível, pois ele, apesar da aparente intransigência, era bastante criterioso. O mesmo aplicava-se a toda banda. Apenas achavam que havia canções piores que a da menina. Ele pendurou a guitarra, Vamos, passou a palheta pelas cordas, afinou, No três, e começaram a tocar juntos.
Antes de subirem no palco, com o guitarrista na frente, os outros integrantes aproximaram-se da menina e disseram que estariam com ela de qualquer maneira, caso ela desejasse. Ela sorriu.
Ele na frente do palco, com uma guitarra, ela do seu lado esquerdo, com outra de apoio, atrás dele a bateria, e do seu lado direito, o baixo. Ele marca, Um, dois, três, todos começam a tocar e a platéia responde da maneira usual. Ela toca para a banda, meio de costas para o público. A primeira música com participação dela no vocal transforma a platéia em coro. Havia uma sintonia fina entre a brutalidade do vocal dele e a forma delicada dela de cantar, quase como uma conversa. Ela se vira para os fãs, abre os braços, fecha os olhos, a luz acompanha toda a evolução. Ele canta de lado para o microfone, fixado nela, naquela menina pequena, de pele bastante clara, de cabelos curtos e negros, de olhos necessariamente azuis, Ela é linda, ele pensa. Acaba a música. A platéia pede pela música dela. Ela cora um pouco e se afasta do microfone. Ele toca o primeiro acorde. Ela sorri e fala para todos, A música é nova, dá uma pausa, sorri novamente, Eu fico, ficamos surpresos em saber que vocês já conhecem a música, e canta o refrão, primeiro à capela, depois com toda a banda.
Os dois, ele e ela, vão para o escritório encontrar o empresário. A música dela deve ser a de trabalho, sentencia o homem atrás da mesa. Ela fica quieta, para segurar o sorriso de satisfação, ele se mexe na cadeira, um pouco incomodado.
Entram num bar, do tipo pub, que há ali perto. Sentam no canto mais escuro e pedem uma cerveja para cada. Sempre te achei linda, atira ele. Você sabe, você sabe que eu sempre te achei linda. Silêncio. No show, no nosso último show, percebi que você é uma das meninas mais lindas que já vi e conheci. Ela toma mais um gole de cerveja, um pouco envergonhada. O que você quer comigo, ela pergunta. Ele encosta-se à poltrona, com os olhos fixos nela, pega a cerveja pelo gargalo, leva à boca, sem mover nada mais, segura a garrafa próxima ao peito, e a coloca na mesa novamente. Eu quero você, como nunca quis nada mais. Beijam-se.
Eu trouxe umas novas coisas, diz ela com um grande sorriso no ensaio. Deixe-me ver, diz um e outro às suas maneiras. O que é isso, ele levanta a voz e arranca as folhas das mãos dos dois. O que é isso, repete com intenção de demonstrar alguma coisa errada. É algo que eu escrevi, ela fala de maneira gentil. Ontem eu peguei o violão e tentei musicá-las, vê se você gosta, Não, eu acho que você não entendeu, ele grita na direção dela. Aquela sua música foi a única exceção que eu abri para você, ela começa a chorar, Essa banda não tocará mais músicas suas, nem de ninguém mais, apenas minhas composições. Ela tenta limpar o rosto entre soluços. Então, diz ela fungando, fique com sua banda e com todas as suas composições somente para você. Os músicos saem logo depois dela do estúdio.
Hoje: Ela montou, junto com a irmã, uma outra banda onde a maioria das composições é dela. Os outros músicos tocaram, e tocam de vez em quando, com as duas. Ele segue carreira solo. Contrata os músicos para gravarem os seus discos e excursionarem. Somente.
segunda-feira, 19 de agosto de 2002
Dezessete
Não havia problema nenhum com ela. Meu amigo me dissera um pouco antes que não se importaria com nada. Eu pude ver que ela queria. Desde que eu cheguei, ela não tirava os olhos de mim. Logo veio conversar comigo. Oi, ela disse, Como está, eu disse, Há quanto tempo, ela disse, Eu não tenho nada para fazer aqui, respondi, ela silenciou.
Havia um pequeno problema. Eu a queria, como a quero ainda agora. Mas não há nada de mais. Ela me pediu para prometer não esquece-la hoje. Já sofri demais, ela disse, Você tem apenas 17 anos, eu disse, E você parece que tem 32, ela respondeu na hora, o que me fez pensar, O que ela quer dizer com isso.
Nós conversamos, andamos de mãos dadas e ela falou que iria ao banheiro. Havia muitas pessoas no banheiro. Nos perdemos. Encontrei desconhecidos, amigos e os chatos de sempre que não via há tempos. Há tempos não voltava para cidade.
Quinze minutos depois, ela me encontrou, nós nos encontramos por acaso. Conversamos pouco, não gostava da maneira como ela pronunciava algumas palavras. Ela repetia expressões. Beijei-a. Distanciamos-nos do grupo que havia em torno. Ela estava tonta, havia bebido e fumado demais. Você tem apenas 17 anos, perguntei. Ela sorriu.
Ela tinha olhos extremamente azuis, azuis escuros, dos mais belos que existem. Pintava o cabelo de preto porque não gostava dos louros originais. Me depilei hoje, ela soltou em uma das suas frases soltas. Olhei para ela com o intuito de desvendar a frase, mas sentido não havia, ou até agora não percebi.
Falei que gostaria de mais uma cerveja. Pedi para ela buscar para mim, Você tem olhos mais bonitos que os meus, disse. Coloquei a minha mão gelada de segurar o copo de cerveja nas costas nuas dela. Nenhuma mulher precisa mostrar sempre as mesmas partes do corpo para ser sensual, ela disse, ou algo parecido – repentinamente – antes de nos beijarmos.
Os grandes olhos azuis dela não conseguiam fixar-se em mim. Acho até agora que ela não sabia o que estava fazendo. No dia seguinte me disse que tinha sido a noite mais louca da sua vida.
Tenho 21, disse, Ah, ela disse, Nunca fiquei com uma menina tão mais nova que eu, disse. Ela, me parece, não escutou.
Sugeri ao meu amigo irmos embora. Rachamos um táxi e paramos em um lugar neutro entre nossas casas. Meu amigo estava com uma menina maravilhosa de cabelos vermelhos. Eles já se conheciam. Convidei a todos para irem ao meu apartamento que estava vazio, mas meu amigo e a menina que estava com ele não aceitaram.
Ela me puxou para apresentar-me ao namorado de uma amiga dela ainda na festa. Não sei o porquê. Eu já o conhecia desde antes. Ele disse que nós éramos amigos. Tentei puxar na minha memória, mas não vi nada que denunciasse isso. Eu duvidava até do seu nome. Nos distanciamos, ela tropeçou num buraco e quase caiu no chão, e não voltei a vê-los. Nem a amiga nem o namorado.
Quando chegamos no prédio que cresci, observei toda a vizinhança para saber quem estava em casa ou se algo havia mudado. Percebi que um camarada meu estava em casa com o seu novo carro. Subimos as escadas em silêncio, como quase toda a noite que estava pela metade, e avistamos o porteiro que abriu o pequeno portão para nós ao me reconhecer. Ele me cumprimentou e eu respondi.
Tomamos uma tequila na festa. Meu amigo e sua amiga e eu, antes dela chegar. Pedi, junto com o meu amigo, uma segunda dose. Não fazia muito efeito, não queria ficar doido. Nessa hora, a vi.
Nos agarramos no elevador e aproveitamos o espelho que há. Entrei em casa e ela me pediu para não fazermos nada e eu ignorei. Logo ela esqueceu um pouco a promessa e estávamos no chão da sala tirando algumas roupas. Disse para ela, na festa, que não passava a noite com uma menina há muito, Jura, ela me perguntou. Fomos para o quarto com a cama de casal. Ela não queria tirar a calcinha para provar, para ela mesma talvez, que poderia fazer, ou não fazer, o que queria. Pedi para ela tirar a minha roupa que restava. E só paramos quando estava manhã clara.
Você quer tomar um banho, perguntei, Eu te darei um banho, ela respondeu. Molhei meu rosto e fechei meus olhos. Escutei lá no fundo ela me perguntar, Você ainda acha que eu tenho 17 anos, respondi em voz alta que Não. O que, ela me perguntou e eu abri os olhos e disse, Nada. Ela começou a passar o sabonete pelo meu corpo e eu agarrava todo o dela, circundava pela cintura, uma cintura fina, a mais fina que há, puxava para mais perto com os olhos fechados.
Levei-a em casa a pé. Ela me disse na festa, Não me esqueça, por favor, não quero mais isso. Eu sorri enquanto ela procurava as chaves. Não pense que você vem aqui e apenas me usa, ela havia dito antes. Dei meu telefone para ela, todos os números que ela pode me achar, num misto de culpa e tesão quando ela abriu a porta de casa. Me liga, ela disse, Você tem 17 anos mesmo, perguntei, ela sorriu feliz, eu dei um beijo e voltei para casa para tentar dormir.
Não havia problema nenhum com ela. Meu amigo me dissera um pouco antes que não se importaria com nada. Eu pude ver que ela queria. Desde que eu cheguei, ela não tirava os olhos de mim. Logo veio conversar comigo. Oi, ela disse, Como está, eu disse, Há quanto tempo, ela disse, Eu não tenho nada para fazer aqui, respondi, ela silenciou.
Havia um pequeno problema. Eu a queria, como a quero ainda agora. Mas não há nada de mais. Ela me pediu para prometer não esquece-la hoje. Já sofri demais, ela disse, Você tem apenas 17 anos, eu disse, E você parece que tem 32, ela respondeu na hora, o que me fez pensar, O que ela quer dizer com isso.
Nós conversamos, andamos de mãos dadas e ela falou que iria ao banheiro. Havia muitas pessoas no banheiro. Nos perdemos. Encontrei desconhecidos, amigos e os chatos de sempre que não via há tempos. Há tempos não voltava para cidade.
Quinze minutos depois, ela me encontrou, nós nos encontramos por acaso. Conversamos pouco, não gostava da maneira como ela pronunciava algumas palavras. Ela repetia expressões. Beijei-a. Distanciamos-nos do grupo que havia em torno. Ela estava tonta, havia bebido e fumado demais. Você tem apenas 17 anos, perguntei. Ela sorriu.
Ela tinha olhos extremamente azuis, azuis escuros, dos mais belos que existem. Pintava o cabelo de preto porque não gostava dos louros originais. Me depilei hoje, ela soltou em uma das suas frases soltas. Olhei para ela com o intuito de desvendar a frase, mas sentido não havia, ou até agora não percebi.
Falei que gostaria de mais uma cerveja. Pedi para ela buscar para mim, Você tem olhos mais bonitos que os meus, disse. Coloquei a minha mão gelada de segurar o copo de cerveja nas costas nuas dela. Nenhuma mulher precisa mostrar sempre as mesmas partes do corpo para ser sensual, ela disse, ou algo parecido – repentinamente – antes de nos beijarmos.
Os grandes olhos azuis dela não conseguiam fixar-se em mim. Acho até agora que ela não sabia o que estava fazendo. No dia seguinte me disse que tinha sido a noite mais louca da sua vida.
Tenho 21, disse, Ah, ela disse, Nunca fiquei com uma menina tão mais nova que eu, disse. Ela, me parece, não escutou.
Sugeri ao meu amigo irmos embora. Rachamos um táxi e paramos em um lugar neutro entre nossas casas. Meu amigo estava com uma menina maravilhosa de cabelos vermelhos. Eles já se conheciam. Convidei a todos para irem ao meu apartamento que estava vazio, mas meu amigo e a menina que estava com ele não aceitaram.
Ela me puxou para apresentar-me ao namorado de uma amiga dela ainda na festa. Não sei o porquê. Eu já o conhecia desde antes. Ele disse que nós éramos amigos. Tentei puxar na minha memória, mas não vi nada que denunciasse isso. Eu duvidava até do seu nome. Nos distanciamos, ela tropeçou num buraco e quase caiu no chão, e não voltei a vê-los. Nem a amiga nem o namorado.
Quando chegamos no prédio que cresci, observei toda a vizinhança para saber quem estava em casa ou se algo havia mudado. Percebi que um camarada meu estava em casa com o seu novo carro. Subimos as escadas em silêncio, como quase toda a noite que estava pela metade, e avistamos o porteiro que abriu o pequeno portão para nós ao me reconhecer. Ele me cumprimentou e eu respondi.
Tomamos uma tequila na festa. Meu amigo e sua amiga e eu, antes dela chegar. Pedi, junto com o meu amigo, uma segunda dose. Não fazia muito efeito, não queria ficar doido. Nessa hora, a vi.
Nos agarramos no elevador e aproveitamos o espelho que há. Entrei em casa e ela me pediu para não fazermos nada e eu ignorei. Logo ela esqueceu um pouco a promessa e estávamos no chão da sala tirando algumas roupas. Disse para ela, na festa, que não passava a noite com uma menina há muito, Jura, ela me perguntou. Fomos para o quarto com a cama de casal. Ela não queria tirar a calcinha para provar, para ela mesma talvez, que poderia fazer, ou não fazer, o que queria. Pedi para ela tirar a minha roupa que restava. E só paramos quando estava manhã clara.
Você quer tomar um banho, perguntei, Eu te darei um banho, ela respondeu. Molhei meu rosto e fechei meus olhos. Escutei lá no fundo ela me perguntar, Você ainda acha que eu tenho 17 anos, respondi em voz alta que Não. O que, ela me perguntou e eu abri os olhos e disse, Nada. Ela começou a passar o sabonete pelo meu corpo e eu agarrava todo o dela, circundava pela cintura, uma cintura fina, a mais fina que há, puxava para mais perto com os olhos fechados.
Levei-a em casa a pé. Ela me disse na festa, Não me esqueça, por favor, não quero mais isso. Eu sorri enquanto ela procurava as chaves. Não pense que você vem aqui e apenas me usa, ela havia dito antes. Dei meu telefone para ela, todos os números que ela pode me achar, num misto de culpa e tesão quando ela abriu a porta de casa. Me liga, ela disse, Você tem 17 anos mesmo, perguntei, ela sorriu feliz, eu dei um beijo e voltei para casa para tentar dormir.
domingo, 18 de agosto de 2002
(eu tinha perdido esse texto. é antigo e tem algumas falhas grotescas...)
Déja vu
Imaginem que um homem pudesse estar andando na rua, naquele período entre o amanhecer e a madrugada, quando o céu começa a tomar cores acinzentadas, violetas e, por fim, azuladas. Andando numa rua larga, com árvores dos dois lados, com poucos carros passando, fazendo uma longa caminhada, quando céu já está azul no final. Ou outro homem indo trabalhar pela parte da manhã, chegando no centro da cidade, naquele preto do asfalto misturado com o cinza do concreto misturado com as cores das pessoas e das roupas das pessoas que passam por ele. Ou a mulher sozinha no ponto de ônibus, voltando para casa, no final da tarde, depois de um passeio sem compromisso, apenas pelo prazer de andar, com o céu se avermelhando, com um zumbido de cigarras, com uma brisa vindo do mar. Ou ainda um garoto na fila no meio da rua em frente a um cinema se transformando em vitrine, em horizonte, em papel de parede.
E esse homem, andando na rua, ou indo trabalhar, ou esperando o ônibus, ou em uma fila, percebe-se, sem mas nem porquê, que tudo aquilo que ele estava presenciando, ele já tinha visto. Que tudo fosse igual a um déjà vu completo. Que tudo era a repetição de um filme que ele já tinha assistido. Que tudo se repetia, e não parava de se repetir. Que quando acabasse um momento, iniciaria outro exatamente igual ao momento anterior. Que não houvesse um início, um meio ou um fim. Que não pudesse identificar esses segmentos. Que tudo fosse conectado, um com o outro, sendo o início muitas vezes o meio e o fim e o início e o meio de novo. Que parecesse uma fita constantemente rebobinada, passando uma cena e logo se repetindo.
O homem, andando, indo trabalhar, esperando o ônibus, na fila, começaria a reparar as nuanças de tudo o que ele não tinha reparado anteriormente. Ficaria tomando notas mentais sobre esse ou aquele detalhe. E repetia para si tudo, todos os momentos, até gravá-los na memória.
Ás vezes a cena se repetia de maneira diferente, como se fosse um jogo dos sete erros. Ou sempre se repetia de maneira, delicadamente, diferente. De maneira que quase não se notava as modificações de um fotograma para o outro. E depois dos oito quadros ou dezesseis quadros no segundo, dependendo da sua velocidade, a cena já era essencialmente outra. Mas ainda era aquela anterior. Apenas acrescida de alguns detalhes que não tinham sido notados anteriormente.
Para alguns parecia que a cena só se repetia, de forma completamente monótona. Outros conseguiam ver toda a dinâmica do processo. Outros, ainda, ficavam olhando e apreciando, indo de um lado para o outro. Saltando de uma velocidade para a outra. Saboreando todas as sensações como se fosse um bom vinho tinto. Rindo um pouco pelo engrandecimento através do conhecer.
Alguns sentaram e quase enlouqueceram, ou enlouqueceram de verdade, vendo todas as cenas se repetirem na frente. Se sentiam presos dentro de um cárcere sem portas. Como se tivessem aberto todas as trancas da prisão e o mundo tivesse se tornado a prisão. A liberdade se transformou na falta de liberdade. Não sabiam lidar com o poder que a decisão tem. Optar virou um desafio e um incômodo.
Outros, com o tempo, acabaram se acostumando com a idéia e, hoje em dia, nem mais ligam para isso. Apenas andam ou param na rua ou em casa como se não soubessem da verdade. Vivem uma vida medíocre, no sentido de ser média, cotidiana, comum. Optaram não optar.
E os últimos brincam. Pulam de um lado para o outro. Deslizam por entre todas idéias estabelecidas. Não concebem os conceitos nem conceituam os ditados. Tomam as verdades nas mãos, nas palmas das mãos, e olham para elas, miudinhas, quietas e inócuas.
Déja vu
Imaginem que um homem pudesse estar andando na rua, naquele período entre o amanhecer e a madrugada, quando o céu começa a tomar cores acinzentadas, violetas e, por fim, azuladas. Andando numa rua larga, com árvores dos dois lados, com poucos carros passando, fazendo uma longa caminhada, quando céu já está azul no final. Ou outro homem indo trabalhar pela parte da manhã, chegando no centro da cidade, naquele preto do asfalto misturado com o cinza do concreto misturado com as cores das pessoas e das roupas das pessoas que passam por ele. Ou a mulher sozinha no ponto de ônibus, voltando para casa, no final da tarde, depois de um passeio sem compromisso, apenas pelo prazer de andar, com o céu se avermelhando, com um zumbido de cigarras, com uma brisa vindo do mar. Ou ainda um garoto na fila no meio da rua em frente a um cinema se transformando em vitrine, em horizonte, em papel de parede.
E esse homem, andando na rua, ou indo trabalhar, ou esperando o ônibus, ou em uma fila, percebe-se, sem mas nem porquê, que tudo aquilo que ele estava presenciando, ele já tinha visto. Que tudo fosse igual a um déjà vu completo. Que tudo era a repetição de um filme que ele já tinha assistido. Que tudo se repetia, e não parava de se repetir. Que quando acabasse um momento, iniciaria outro exatamente igual ao momento anterior. Que não houvesse um início, um meio ou um fim. Que não pudesse identificar esses segmentos. Que tudo fosse conectado, um com o outro, sendo o início muitas vezes o meio e o fim e o início e o meio de novo. Que parecesse uma fita constantemente rebobinada, passando uma cena e logo se repetindo.
O homem, andando, indo trabalhar, esperando o ônibus, na fila, começaria a reparar as nuanças de tudo o que ele não tinha reparado anteriormente. Ficaria tomando notas mentais sobre esse ou aquele detalhe. E repetia para si tudo, todos os momentos, até gravá-los na memória.
Ás vezes a cena se repetia de maneira diferente, como se fosse um jogo dos sete erros. Ou sempre se repetia de maneira, delicadamente, diferente. De maneira que quase não se notava as modificações de um fotograma para o outro. E depois dos oito quadros ou dezesseis quadros no segundo, dependendo da sua velocidade, a cena já era essencialmente outra. Mas ainda era aquela anterior. Apenas acrescida de alguns detalhes que não tinham sido notados anteriormente.
Para alguns parecia que a cena só se repetia, de forma completamente monótona. Outros conseguiam ver toda a dinâmica do processo. Outros, ainda, ficavam olhando e apreciando, indo de um lado para o outro. Saltando de uma velocidade para a outra. Saboreando todas as sensações como se fosse um bom vinho tinto. Rindo um pouco pelo engrandecimento através do conhecer.
Alguns sentaram e quase enlouqueceram, ou enlouqueceram de verdade, vendo todas as cenas se repetirem na frente. Se sentiam presos dentro de um cárcere sem portas. Como se tivessem aberto todas as trancas da prisão e o mundo tivesse se tornado a prisão. A liberdade se transformou na falta de liberdade. Não sabiam lidar com o poder que a decisão tem. Optar virou um desafio e um incômodo.
Outros, com o tempo, acabaram se acostumando com a idéia e, hoje em dia, nem mais ligam para isso. Apenas andam ou param na rua ou em casa como se não soubessem da verdade. Vivem uma vida medíocre, no sentido de ser média, cotidiana, comum. Optaram não optar.
E os últimos brincam. Pulam de um lado para o outro. Deslizam por entre todas idéias estabelecidas. Não concebem os conceitos nem conceituam os ditados. Tomam as verdades nas mãos, nas palmas das mãos, e olham para elas, miudinhas, quietas e inócuas.
quarta-feira, 14 de agosto de 2002
Qual será o futuro do cinema?
Dando prosseguimento ao raciocínio, podemos suspeitar o óbvio: grande parte das futuras produções será feita em vídeo digital de alta definição. Sim, e daí? E a forma de narrar? Mudará alguma coisa? Podemos supor algo...
No início era a gravura. Depois vieram as pinturas, fotografias, cinema, televisão, internet e (salvo os meus óbvios esquecimentos óbvios) essa foi a evolução (apresentada de maneira tosca e rasteira) da forma de representar a realidade através de imagens. O (famoso) simulacro do real.
O que eu quis e quero dizer com isso? Que o cinema – da maneira mais tradicionalista que essa palavra pode ser interpretada, ou seja, como queima de película – foi a primeira representação de imagens em movimento que já houve na história. Porém, a partir do cinema, as representações de imagens sempre evoluíram em movimento.
(Rápido parêntese: é certo que as outras técnicas de reprodução de imagens ainda co-existem e evoluíram todas as suas maneiras. Vide caso claro da fotografia, por exemplo. O que defendo como parâmetro é a evolução apenas cronológica da tecnologia de retratar as imagens. Apenas isso).
Ou seja, o cinema teve por um longo tempo a companhia de outras tecnologias para retratar as imagens em movimento. E, como aconteceu com a pintura, por exemplo, com o advento e popularização da fotografia, o cinema foi influenciado e influenciou as outras tecnologias.
E aqui está a tese que defendo: o cinema está sendo muito influenciado pelo o que eu chamo de estética MTV. O que seria isso? Uma combinação no formato de narrativa com um único intuito, o aumento na velocidade. Alguns diretores utilizaram as técnicas aprendidas na produção de videoclipes, ou em séries de TV, ou em novelas, ou em publicidade ou em qualquer outro tipo de mídia que é necessário passar uma informação em pouquíssimo tempo, senão você perde o espectador.
Exemplo: as câmeras trêmulas. Antes um recurso escasso, que representa agilidade e/ou nervosismo, agora é quase unanimidade nas produções. Outro exemplo: várias histórias sendo contadas ao mesmo tempo. Talvez essa maneira tenha sido inaugurada pelo R. Altman e depois (bem) utilizada pelo Q. Tarantino em “Pulp Fiction”. Agora, ficou quase banalizada também. Outro: a iluminação de filmes cada vez mais naturalista. É muito difícil encontrarmos, nos filmes atuais, iluminações que dialoguem com o filme. Cada vez mais o fotógrafo passa completamente despercebido. E, com certeza, o principal elemento que configura essa estética MTV: o corte rápido e frenético. Exemplos não faltam, basta que lembre de algum filme que foi reverenciado ultimamente (do próprio “Pulp Fiction” até o recente “Réquiem para um sonho”, do D. Aronofsky) que encontraremos esse frenesi nos cortes.
Essa forma de narrar, antes que eu receba dúzias de pedradas, não é boa nem ruim em essência, na minha humilde opinião. Não podemos juntar gatos tão diferentes no mesmo saco. Não será uma escola de cinema que fará um filme bom ou ruim. Aliás, não há nada que explique, ou antecipe, se o dito cujo ficará bom ou ruim. Não há manual de como filmar, ou um receita que explique que ao fazer uma sucessão de cortes em seqüência, colocar quinze histórias diferentes no mesmo longa, e tudo filmado na mão com luz a ponto de estourar, a produção ficará boa. Isso parece uma obviedade, mas não considero. Por mais que o cara que está por trás da câmera, que tem o poder de dizer e desdizer, tenha estudado bastante o assunto, seja o maior cinéfilo do mundo, conheça todos os meandros da (dita) arte, apenas a prática – ou a sorte – farão dele um cineasta, com todas as letras. Como tudo na vida, aliás.
Mas voltemos. Com essa idéia de Cinema-videoclipe na cabeça, nasceu, e nascerá, toda uma nova onda (?) de produções relâmpagos. Não me interessa destrinchar os motivos que levaram, ou levarão, os cineastas a optarem por narrativas cada vez mais velozes, cada vez mais parecidas com clipes gigantes. Apenas devo cruzar os dedos para que os filmes não sejam descartados como a maioria dos (próprios) clipes ou peças publicitárias ou (até) videogames (que muitas vezes são as “obras” inspiradoras).
Para encontrarmos filmes com grandes planos seqüências, por exemplo, ou deveremos percorrer os sebos, ou visitarmos os antigos diretores – ou diretores à antiga que sempre existirão – que opta(ra)m pelo tal recurso. Os (pós-) modernos, ou contemporâneos para melhor exemplificar, considerarão a forma de narrar antiga, obsoleta, ou “out”, para usar uma linguagem que me faça ser entendido.
Como tudo dentro de uma sociedade orgânica e mutante, como a nossa, o cinema nunca conseguiria (nem nunca conseguiu) ficar imune a todas as influências que o circundam. Haverá – como já há – filmes bons e ótimos dessa nova tendência. E outros nem tanto. O grande problema, e é uma preocupação de alto grau de egoísmo, é que, mais no futuro, o editor – pelo poder que ele recebe com esse novo formato de decidir sobre a vida e a morte de um filme – fique mais importante que o diretor dos filmes. Nessa hora, acho que estaremos em apuros...
Dando prosseguimento ao raciocínio, podemos suspeitar o óbvio: grande parte das futuras produções será feita em vídeo digital de alta definição. Sim, e daí? E a forma de narrar? Mudará alguma coisa? Podemos supor algo...
No início era a gravura. Depois vieram as pinturas, fotografias, cinema, televisão, internet e (salvo os meus óbvios esquecimentos óbvios) essa foi a evolução (apresentada de maneira tosca e rasteira) da forma de representar a realidade através de imagens. O (famoso) simulacro do real.
O que eu quis e quero dizer com isso? Que o cinema – da maneira mais tradicionalista que essa palavra pode ser interpretada, ou seja, como queima de película – foi a primeira representação de imagens em movimento que já houve na história. Porém, a partir do cinema, as representações de imagens sempre evoluíram em movimento.
(Rápido parêntese: é certo que as outras técnicas de reprodução de imagens ainda co-existem e evoluíram todas as suas maneiras. Vide caso claro da fotografia, por exemplo. O que defendo como parâmetro é a evolução apenas cronológica da tecnologia de retratar as imagens. Apenas isso).
Ou seja, o cinema teve por um longo tempo a companhia de outras tecnologias para retratar as imagens em movimento. E, como aconteceu com a pintura, por exemplo, com o advento e popularização da fotografia, o cinema foi influenciado e influenciou as outras tecnologias.
E aqui está a tese que defendo: o cinema está sendo muito influenciado pelo o que eu chamo de estética MTV. O que seria isso? Uma combinação no formato de narrativa com um único intuito, o aumento na velocidade. Alguns diretores utilizaram as técnicas aprendidas na produção de videoclipes, ou em séries de TV, ou em novelas, ou em publicidade ou em qualquer outro tipo de mídia que é necessário passar uma informação em pouquíssimo tempo, senão você perde o espectador.
Exemplo: as câmeras trêmulas. Antes um recurso escasso, que representa agilidade e/ou nervosismo, agora é quase unanimidade nas produções. Outro exemplo: várias histórias sendo contadas ao mesmo tempo. Talvez essa maneira tenha sido inaugurada pelo R. Altman e depois (bem) utilizada pelo Q. Tarantino em “Pulp Fiction”. Agora, ficou quase banalizada também. Outro: a iluminação de filmes cada vez mais naturalista. É muito difícil encontrarmos, nos filmes atuais, iluminações que dialoguem com o filme. Cada vez mais o fotógrafo passa completamente despercebido. E, com certeza, o principal elemento que configura essa estética MTV: o corte rápido e frenético. Exemplos não faltam, basta que lembre de algum filme que foi reverenciado ultimamente (do próprio “Pulp Fiction” até o recente “Réquiem para um sonho”, do D. Aronofsky) que encontraremos esse frenesi nos cortes.
Essa forma de narrar, antes que eu receba dúzias de pedradas, não é boa nem ruim em essência, na minha humilde opinião. Não podemos juntar gatos tão diferentes no mesmo saco. Não será uma escola de cinema que fará um filme bom ou ruim. Aliás, não há nada que explique, ou antecipe, se o dito cujo ficará bom ou ruim. Não há manual de como filmar, ou um receita que explique que ao fazer uma sucessão de cortes em seqüência, colocar quinze histórias diferentes no mesmo longa, e tudo filmado na mão com luz a ponto de estourar, a produção ficará boa. Isso parece uma obviedade, mas não considero. Por mais que o cara que está por trás da câmera, que tem o poder de dizer e desdizer, tenha estudado bastante o assunto, seja o maior cinéfilo do mundo, conheça todos os meandros da (dita) arte, apenas a prática – ou a sorte – farão dele um cineasta, com todas as letras. Como tudo na vida, aliás.
Mas voltemos. Com essa idéia de Cinema-videoclipe na cabeça, nasceu, e nascerá, toda uma nova onda (?) de produções relâmpagos. Não me interessa destrinchar os motivos que levaram, ou levarão, os cineastas a optarem por narrativas cada vez mais velozes, cada vez mais parecidas com clipes gigantes. Apenas devo cruzar os dedos para que os filmes não sejam descartados como a maioria dos (próprios) clipes ou peças publicitárias ou (até) videogames (que muitas vezes são as “obras” inspiradoras).
Para encontrarmos filmes com grandes planos seqüências, por exemplo, ou deveremos percorrer os sebos, ou visitarmos os antigos diretores – ou diretores à antiga que sempre existirão – que opta(ra)m pelo tal recurso. Os (pós-) modernos, ou contemporâneos para melhor exemplificar, considerarão a forma de narrar antiga, obsoleta, ou “out”, para usar uma linguagem que me faça ser entendido.
Como tudo dentro de uma sociedade orgânica e mutante, como a nossa, o cinema nunca conseguiria (nem nunca conseguiu) ficar imune a todas as influências que o circundam. Haverá – como já há – filmes bons e ótimos dessa nova tendência. E outros nem tanto. O grande problema, e é uma preocupação de alto grau de egoísmo, é que, mais no futuro, o editor – pelo poder que ele recebe com esse novo formato de decidir sobre a vida e a morte de um filme – fique mais importante que o diretor dos filmes. Nessa hora, acho que estaremos em apuros...
E então ele me disse: “Eu não posso ver isto”, e me jogou o livro em cima, “Leio, mas não consigo acreditar. Consigo, mas não quero. Quero, mas não posso. Não posso acreditar no que ele diz. Seria como matar o meu futuro. Se ele disser que tudo o que eu espero é em vão, para que continuar a existir? Preciso me agarrar em algo, mesmo que saiba que é ingenuidade, para que tudo faça sentido. Se percebermos que não temos um motivo por que lutar, que não temos nenhum ideal para perseguir... Eu tenho que ter uma crença. Eu devo acreditar que se eu continuar no meu trabalho, da maneira como trabalho, lá pelos meus 60 anos eu posso me aposentar e viver feliz da vida para sempre. E, antes disso, eu posso ganhar dinheiro suficiente para poder viajar por todo o mundo. Você sabe. Eu trabalho para juntar dinheiro para poder viajar. Eu aceito tudo, o meu chefe, acordar cedo todos os dias, o trabalho sacal e repetitivo apenas para poder viajar. Eu acredito que assim eu serei feliz. Eu estarei casado, com minha família, e viajarei com ela. Eu quero isso. Eu tenho que enxergar os meus pés em algum caminho e ter um pote de ouro me esperando lá no fundo. Repito para mim todos os dias, Vale a pena, tudo vale a pena, serei recompensado, chegarei lá. Canto um mantra de incentivo. Crio pequenos entraves somente para perceber que posso ultrapassar as minhas limitações. Como posso aceitar alguma coisa que dispensa toda a minha ilusão? O meu futuro? Eu preciso disso para viver. Como posso encarar minha insignificância perante tudo? Como você quer que eu encare a notícia de que o mundo não seria diferente sem mim? Não. Você sabe que eu não me considero importante. Mas o que eu quero dizer é algo mais terreno. Como encarar o fato das pessoas que me rondam serem praticamente as mesmas caso eu não existisse? Eu sei o que você quer dizer. Eu vejo um filme e ele é importante para mim. Mas, o que eu sou para o filme? Por isso eu devo acreditar em algo... Se eu descobrisse agora que eu nunca iria conseguir viajar, eu não acreditaria nisso e continuaria no meu trabalho...”.
terça-feira, 13 de agosto de 2002
Latinos
Éramos em quatro desde que mamãe nos deixou. Eu, meu pai e dois irmãos bem mais velhos. Papai todo dia, ao fechar a loja dava uma última suspirada pela janela, como que esperasse o dia que mamãe voltaria correndo para os braços dele.
Meu irmão mais velho completou dezoito anos em janeiro. Ele se chama Rodrigo, mas eu só o chamo de Russo, porque todo mundo o chama de Russo. Ele tem os cabelos bem vermelhos. Ele se alistou no exército. Vai ser um pracinha. Meu pai se orgulha muito dele. Eu o acho engraçado. Ele é todo desengonçado e gosta de dançar junto da sua namorada, Lane. Os dois vão se casar. Pelo menos é isso que o Tio Franco fala. Diz que um nasceu para o outro. Que dá para ver isso na áurea deles. Eu não sei o que é isso, mas acredito no Tio Franco.
Meu pai não gosta que eu encontre o Tio Franco. Ele e meu pai não se falam desde a época que mamãe foi embora. Ele ficou do lado da minha mãe, que foi viver com outro homem na casa dela, e contra o meu pai. Eu lembro que, quando eu era bem pequeno, meu pai e meu tio costumavam tomar vinho na taberna do Seu Paolo e voltavam para casa cantando música lá da Itália que só os dois conhecem.
Meu irmão do meio se chama Franco igual ao meu tio. Foi uma homenagem a ele. E o meu tio colocou o nome de Giovanni no seu filho mais novo em homenagem ao meu pai. Meu pai diz que Franco, meu irmão, puxou a cuca destrambelhada do meu tio. Os olhos dele sempre miram o horizonte.
Parece que meu pai tinha substituído as brigas com o Tio Franco pelas com o meu irmão. Meu pai vive a gritar com o meu irmão. De uns tempos para cá, meu irmão resolveu responder o meu pai. Isso me assustava muito. Russo sempre tentou interpelar mas, das últimas vezes ele não estava em casa, já estava no quartel.
Tudo por causa da Rosa. Uma menina muito bonita que mora na rua de baixo. Uma menina de cabelos castanhos que fazem ondas pelo seu corpo até no meio das suas costas. Quando eles se encontram, ela sempre está com um laço vermelho no cabelo e com um vestido com botões na frente. Meu pai diz que ela não presta. Meu irmão disse que a vida era dele e que meu pai não poderia mandar nele para sempre.
Os dois se encontravam normalmente na casa de Tio Franco. Toda a terça-feira. Meu irmão dizia que ia no curso de alemão, e Rosa dizia para os pais dela que ia para o grupo da igreja. Quando eles chegavam, Tio Franco saia da sala e os deixavam sozinhos. Eu sei disso tudo porque um dia estava lá na casa do meu tio brincando e vi os dois chegarem e sentarem na sala. Os dois começaram a se beijar e eu corri para o quarto.
A casa do Tio Franco não fica muito longe da minha casa. Toda a semana vou lá de bicicleta, na hora que meu pai está ainda na loja. Eu termino a lição de casa e saio para passear. Adoro sentir o vento no meu rosto.
Um dia meu pai me perguntou porque eu não atendi o telefone quando ele ligou. Disse que tinha saído para brincar um pouco com os meus amigos da rua. Meu pai achou estranho, porque eu nunca brincava com eles, mas achou melhor não dizer mais nada. E eu percebi que poderia falar isso toda a vez que eu quisesse ir na casa do Tio Franco.
Se meu pai soubesse que o Tio Franco está acobertando os encontros entre o meu irmão e a Rosa, ele iria ficar furioso. Igual naquele dia que, brigando com o meu irmão, ele disse que Rosa era uma mulher da vida que nem mamãe. O Russo entrou no meio dos dois, com uma mão no peito de cada. Eu estava assistindo tudo de cima da escada. Os dois pararam e cada um foi para um canto da casa.
Depois meu irmão saiu correndo e bateu a porta de casa. Essa noite ele passou fora e o meu pai ficou acordado. Meu irmão Franco chegou de manhã cedo cambaleando. Meu pai perguntou se ele tinha bebido. Ele respondeu que não tinha bebido, que tinha persistido. Russo, que tinha cochilado no sofá, foi fazer um café fresco, forte e preto, como ele mesmo disse, para Franco.
Ontem meu irmão trouxe Rosa aqui para a casa. Ela me cumprimentou e pude reparar nos olhos castanhos da cor de madeira vermelha dela. Pareciam que estavam com fogo. Eles subiram, foram para o quarto dele e a porta bateu. Fiquei na sala vendo algum desenho animado enquanto os dois não saiam de lá. Meu irmão tinha me pedido para tomar conta da casa.
Quando ele saiu, vinha com uma mala na mão e com a Rosa na outra. Passou por mim e abaixou. Disse que a partir de amanhã eu é que teria que tomar conta do meu pai. Ele me deu uma abraço apertado, levantou, ajeitou o chapéu na cabeça e saiu puxando a mão da Rosa. Ela ainda me lançou o último olhar, mas eu virei o rosto com medo.
Mini epílogo
Agora meu pai fica passa mais tempo na janela. Qualquer que seja o barulho ele corre e fica ali parado. Com o olhar distante. Parece que ele tenta captar aquele olhar do meu irmão. Dizem que era também igual ao do meu tio Franco.
Éramos em quatro desde que mamãe nos deixou. Eu, meu pai e dois irmãos bem mais velhos. Papai todo dia, ao fechar a loja dava uma última suspirada pela janela, como que esperasse o dia que mamãe voltaria correndo para os braços dele.
Meu irmão mais velho completou dezoito anos em janeiro. Ele se chama Rodrigo, mas eu só o chamo de Russo, porque todo mundo o chama de Russo. Ele tem os cabelos bem vermelhos. Ele se alistou no exército. Vai ser um pracinha. Meu pai se orgulha muito dele. Eu o acho engraçado. Ele é todo desengonçado e gosta de dançar junto da sua namorada, Lane. Os dois vão se casar. Pelo menos é isso que o Tio Franco fala. Diz que um nasceu para o outro. Que dá para ver isso na áurea deles. Eu não sei o que é isso, mas acredito no Tio Franco.
Meu pai não gosta que eu encontre o Tio Franco. Ele e meu pai não se falam desde a época que mamãe foi embora. Ele ficou do lado da minha mãe, que foi viver com outro homem na casa dela, e contra o meu pai. Eu lembro que, quando eu era bem pequeno, meu pai e meu tio costumavam tomar vinho na taberna do Seu Paolo e voltavam para casa cantando música lá da Itália que só os dois conhecem.
Meu irmão do meio se chama Franco igual ao meu tio. Foi uma homenagem a ele. E o meu tio colocou o nome de Giovanni no seu filho mais novo em homenagem ao meu pai. Meu pai diz que Franco, meu irmão, puxou a cuca destrambelhada do meu tio. Os olhos dele sempre miram o horizonte.
Parece que meu pai tinha substituído as brigas com o Tio Franco pelas com o meu irmão. Meu pai vive a gritar com o meu irmão. De uns tempos para cá, meu irmão resolveu responder o meu pai. Isso me assustava muito. Russo sempre tentou interpelar mas, das últimas vezes ele não estava em casa, já estava no quartel.
Tudo por causa da Rosa. Uma menina muito bonita que mora na rua de baixo. Uma menina de cabelos castanhos que fazem ondas pelo seu corpo até no meio das suas costas. Quando eles se encontram, ela sempre está com um laço vermelho no cabelo e com um vestido com botões na frente. Meu pai diz que ela não presta. Meu irmão disse que a vida era dele e que meu pai não poderia mandar nele para sempre.
Os dois se encontravam normalmente na casa de Tio Franco. Toda a terça-feira. Meu irmão dizia que ia no curso de alemão, e Rosa dizia para os pais dela que ia para o grupo da igreja. Quando eles chegavam, Tio Franco saia da sala e os deixavam sozinhos. Eu sei disso tudo porque um dia estava lá na casa do meu tio brincando e vi os dois chegarem e sentarem na sala. Os dois começaram a se beijar e eu corri para o quarto.
A casa do Tio Franco não fica muito longe da minha casa. Toda a semana vou lá de bicicleta, na hora que meu pai está ainda na loja. Eu termino a lição de casa e saio para passear. Adoro sentir o vento no meu rosto.
Um dia meu pai me perguntou porque eu não atendi o telefone quando ele ligou. Disse que tinha saído para brincar um pouco com os meus amigos da rua. Meu pai achou estranho, porque eu nunca brincava com eles, mas achou melhor não dizer mais nada. E eu percebi que poderia falar isso toda a vez que eu quisesse ir na casa do Tio Franco.
Se meu pai soubesse que o Tio Franco está acobertando os encontros entre o meu irmão e a Rosa, ele iria ficar furioso. Igual naquele dia que, brigando com o meu irmão, ele disse que Rosa era uma mulher da vida que nem mamãe. O Russo entrou no meio dos dois, com uma mão no peito de cada. Eu estava assistindo tudo de cima da escada. Os dois pararam e cada um foi para um canto da casa.
Depois meu irmão saiu correndo e bateu a porta de casa. Essa noite ele passou fora e o meu pai ficou acordado. Meu irmão Franco chegou de manhã cedo cambaleando. Meu pai perguntou se ele tinha bebido. Ele respondeu que não tinha bebido, que tinha persistido. Russo, que tinha cochilado no sofá, foi fazer um café fresco, forte e preto, como ele mesmo disse, para Franco.
Ontem meu irmão trouxe Rosa aqui para a casa. Ela me cumprimentou e pude reparar nos olhos castanhos da cor de madeira vermelha dela. Pareciam que estavam com fogo. Eles subiram, foram para o quarto dele e a porta bateu. Fiquei na sala vendo algum desenho animado enquanto os dois não saiam de lá. Meu irmão tinha me pedido para tomar conta da casa.
Quando ele saiu, vinha com uma mala na mão e com a Rosa na outra. Passou por mim e abaixou. Disse que a partir de amanhã eu é que teria que tomar conta do meu pai. Ele me deu uma abraço apertado, levantou, ajeitou o chapéu na cabeça e saiu puxando a mão da Rosa. Ela ainda me lançou o último olhar, mas eu virei o rosto com medo.
Mini epílogo
Agora meu pai fica passa mais tempo na janela. Qualquer que seja o barulho ele corre e fica ali parado. Com o olhar distante. Parece que ele tenta captar aquele olhar do meu irmão. Dizem que era também igual ao do meu tio Franco.
Eva
A mira procura qualquer coisa que se move. O longo cano mira e espera a ordem do gatilho para cuspir sem nenhum traço de culpa. O atirador, que traja apenas uma calça com suspensórios, um cigarro na boca e meias sem sapatos, ignora quem são os pontos que se movem lá no fundo da sua visão. Ele acabara de acordar e antes de tomar o desjejum costuma apertar o gatilho pelo menos uma vez. Lá embaixo, um senhor, com uma picareta nas mãos, tenta abrir uma vala comum. Passa por ele uma mulher, com um lenço nos cabelos e uma criança nos braços. A mira vai dele para ela e volta para ele. Perto deles há um soldado armado e que ignora completamente quem são as pessoas as quais ele deve zelar pela falta de liberdade. São apenas rostos, ele pensa nesse momento. O cano sai do velho com a picareta e acompanha a vala. Encontra outros homens de todas as idades que também cavam. Ele ignora se eles sabem que podem morrer a qualquer momento. Mas isso não importa. Há uma concentração de homens parados que tentam tirar uma pedra do rastro da vala. O homem aponta na direção da concentração de gente e dispara algumas vezes. Três homens caem. Logo alguns outros retiram os corpos e voltam para substituir os caídos.
O atirador levanta o corpo e olha para a aglomeração de pessoas lá embaixo. Longe da mira parecem tão distantes. Puxa os suspensórios e aparece um meio sorriso com cuidado para não deixar cair o cigarro da boca. Vira-se de frente para o quarto que dormiu e caminha para ele, saindo da sacada. Encontra Eva que segura suas roupas e olha para ele sem demonstrar nenhuma emoção no rosto. Ele olha para ela e ela repara na fumaça que sobe do cigarro aceso que se equilibra na boca do homem. Ele fica nervoso e grita alguma coisa ininteligível por causa do cigarro na boca. Ela não sabe o que fazer e abre um pouco a boca espantada. Ele grita novamente e caminha na direção dela. Os dois estão separados pela cama dele. Segura o braço dela e a puxa para o lado onde estava. Ela fecha os olhos de forma indecisa, talvez por causa da claridade que vinha da varanda, talvez por causa do rifle parado ali. Eu disse para você colocar a minha roupa aqui, diz o homem de forma nervosa. Ela abre os olhos na direção dele. Repara na sua respiração cansada, nervosa, hesitante e nos seus olhos injetados de raiva. Ele segura o braço dela e olha para o seu rosto com os cabelos desalinhados jogados na testa e a fumaça do cigarro que sobe e forma uma pequenina cortina. Ele larga o braço dela, se apóia na porta da varanda com olhos lá embaixo e olhos dentro do quarto, passa a mão no cabelo, tira o cigarro da boca e aponta para poltrona, Ali, coloca a roupa ali, diz. Ela, silenciosamente, coloca a roupa no lugar indicado e se vira em direção a saída. Caminha de maneira rápida, mas com cuidado. Espere, grita ele da porta da varanda, ela se vira, ele olha para os olhos dela, olhos de um verde único, o rosto róseo, o cabelo castanho escuro grudado na cabeça, olha para toda ela com as roupas indignas dela, indignas dela, ele pensa, Desculpa, ele fala com a mão com o cigarro apontando para o quarto e para a poltrona. Ela se vira e sai do quarto.
Ele se arruma e se encaminha para tomar o desjejum. Senta na cabeceira da grande mesa vazia de madeira maciça na copa. Eva entra no recinto com duas tigelas, uma em cada mão, e apressasse para colocar na frente dele. Ele acompanha a movimentação dela somente com os olhos sem produzir nenhum som. Ela sai da copa e retorna com mais duas travessas e repete o movimento anterior. Ele espera que ela saia do recinto para olhar para os pratos. Começa a comer do que estava mais próximo dele. Ela volta com um jarro e coloca na frente dele. Sai novamente. O que é isso, ele pergunta puxando uma das terrinas para próximo dele, O que é isso, ele repete aumentando o tom de voz. Ela entra no recinto com uma xícara nas mãos. O que é isso, ele quase grita sem desviar os olhos dela, Você fez comida da sua raça para mim, ele inquire com as duas mãos postadas em cima da mesa e os olhos injetados, Essa comida você devia fazer para os porcos, ele se levanta e derruba a tigela no chão, Nunca mais, ele levanta o dedo em riste, Nunca mais faça esse tipo de comida para mim, ouviu, você está entendendo, ele berra, ela abaixa a cabeça, ele sai da copa.
Desce as escadas, passa pela secretária que faz um cumprimento, e entra no seu escritório feito todo em madeira de lei escura. Puxa a pesada cadeira e senta atrás da mesa. Entrecruza os dedos e olha através deles para a porta impassível. Ela é inferior, ela é inferior, repete mentalmente como um mantram. Fica imóvel durante minutos. Levanta-se e caminha lentamente escutando cada som da sola das botinas no chão para a janela. Abre a cortina e olha para fora. Sujos, fala baixo para ele mesmo, Imundos, repete. Volta um pouco mais seguro para a mesa. Antes, porém, a secretária bate à porta e a abre. Ela anuncia que o subcomandante quer entrar para despachar. Ele autoriza e senta-se na pesada cadeira com os dedos entrecruzados na frente do rosto.
O subcomandante faz o cumprimento e ele o autoriza a sentar-se. O subcomandante começa a passar as informações de movimentações da tropa e de todo exército. Ele olha além do subcomandante para a porta. O subcomandante continua com os olhos fixos nos papéis que tem na sua frente. Ele levanta-se e o subcomandante pára de falar, ele pede que continue, que não se importe com ele de pé. Ele se encaminha para a porta com a voz do subcomandante bem no fundo. O subcomandante se vira na tentativa de acompanhar o pequeno passeio dele. Ele espalma a mão direita na porta e com a esquerda segura a maçaneta. Ela é inferior, não pode, ele repete para si baixo, O que foi que disse, senhor comandante, pergunta o outro. Ele se vira e ordena que ele não repare no que ele diz. O subcomandante pede perdão e pergunta se deve continuar, ele autoriza e volta para a mesa e para se sentar na cadeira.
Continua a fala no fundo e ele olha para os dedos entrecruzados da mão. Pega um cigarro leva a boca e vê que o subcomandante se oferece para acende-lo. Ele aceita, mas com um olhar agressivo. O subcomandante prossegue e ele repara na fumaça que queima o cigarro. Traga mais uma vez e escuta o cigarro queimar e vê a brasa consumir o toco. Bate a cinza do cigarro no cinzeiro de prata que há em cima da mesa. Olha para fora. Eva, ele escuta, O que há com ela, ele, num misto de inquietude, curiosidade e nervosismo, pergunta para o subcomandante, É que, o senhor sabe, não é aconselhável ter alguém de raça inferior trabalhando para o senhor, Quem disse isso, ele questiona em tom arrogante, Ninguém, responde o subcomandante, Escuta-se por ai, completa, E o que dizem, ele instiga, Nada, apenas que não é de bom tom o senhor ter uma criada da raça deles, Pois eu acho que quem fala isso está completamente errado, Eva faz o seu serviço de maneira impecável, não tenho o que reclamar. Mas, o subcomandante começou a falar, Eu não terminei, e eu tenho certeza que eles prestam para estes tipos de afazeres menos qualificados sim, eles devem nos servir, Sim, entendo comandante, mas, Mas o que, acho que fui claro, Sim, senhor. Ele bate a cinza do cigarro que ficou parado no cinzeiro e traga com os olhos na fumaça. Senhor, peço permissão para me retirar, todas as considerações foram feitas, Claro, pode ir. O subcomandante levanta-se. Quando gira a maçaneta, ele pede para chamar sua secretária, Claro, senhor, responde o subcomandante.
Sim, senhor, a secretária diz ao entrar no escritório. Peça a Eva que traga o café para mim agora, sim, Sim senhor, ela responde. Ele apaga o cigarro e pega outro. Coloca na boca e abre a gaveta à procura do isqueiro de prata que há dentro. Acende o isqueiro e repara na chama. Aproxima do cigarro dá uma tragada e desliga o isqueiro. Guarda-o na gaveta e traga uma vez mais. Vê a brasa que come o cigarro, prende a fumaça e a solta pelo nariz. Batem à porta. Entre, ele diz. Eva entra com um bule e uma xícara grande de porcelana em cima de uma bandeja. Coloca ambos os utensílios na frente dele. Ele observa todos os movimentos dela. Ele fica imóvel, com os olhos plantados no rosto dela, explorando cada detalhe, conhecendo as pequeninas dobras de expressão, descobrindo o cheiro dela, detalhando o tom da sua pele. Ela enche a xícara com o café forte, da maneira como ele gosta, e coloca o bule em cima da bandeja novamente. Ele segura o braço livre dela. Ela olha para ele assustada. Ele começa a apertar o braço dela, ela desvia os olhos dos dele e repara na mão dele que faz a pressão. Ele a solta e olha para janela. Dá mais uma tragada com as mãos trêmulas. Ela se vira e sai do escritório. Ele se levanta e vai para a janela. Repara num homem que empurra um carrinho com pedras dentro e que passa na frente da janela. Porcos, repete para si mesmo, Imundos. Anda rapidamente para a porta em direção à saída. Consegue enxergar o homem que havia passado em frente a sua janela e anda na sua direção. Quando chega próximo, grita para ele parar. O homem vira-se num sobressalto, ele saca a sua pistola do coldre e mira para ele, o homem cai de joelhos, ele se aproxima e encosta o cano na testa dele e aperta o gatilho. Vira-se, limpa o cano com a manga da camisa e a coloca de volta no coldre. Antes de entrar no escritório, o subcomandante, que havia visto toda a cena, alcança-o. Senhor, posso perguntar o motivo do tiro no homem, Pode perguntar sim, mas eu talvez não queira responder, Senhor, nós não podemos mata-los dessa forma ou corremos o risco deles se revoltarem, Então, meu caro subcomandante, diga para esses porcos imundos não passarem tão próximos da minha janela, você me escutou, Sim, senhor. O subcomandante sai em direção a um oficial menos graduado e ele para o escritório.
Entra na sua sala e se apóia na mesa com as duas mãos e de costas para a porta. Pega o café e toma um gole. Sente que já tinha esfriado um pouco. Engole mais um pouco. Mexe na xícara como se quisesse misturar algo. Coloca a xícara de volta no pires. Volta-se para a porta, abre-a e pede a secretária que chame Eva para retirar a xícara. Sim, senhor, ela responde. Ele abre a gaveta e pega o isqueiro. Acende mais um cigarro e olha pela janela o lado de fora. Tira a cortina de maneira que a luz entre sem nenhum entrave. Demora um pouco e escuta batidas na porta. Entre, ele diz. Eva entra cabisbaixa. Ele olha para fora, tenta evita-la. Ele escuta o barulho do pires ao encostar-se à bandeja. Estava muito ruim, diz ele olhando através da fumaça para ela. Ela se vira, ainda com a cabeça baixa, e volta-se para porta, Da próxima vez, tente fazer um café melhor, ela abre a porta e sai. Ele apaga o cigarro e acende outro.
Avisa para a secretária que vai almoçar e sobe as escadas tentando ser o mais silencioso possível. Senta na cabeceira da mesa. Eva está na cozinha ainda. Ele tenta escutar o barulho dela. Percebe que ela murmura uma música de melodia suave. Ele fecha os olhos e imagina que ela canta para ele. Não, ele abre repentinamente os olhos, Ela é inferior. Arrasta a cadeira e tenta levantar-se. Eva percebe que ele já havia subido e pára de cantarolar. Ele se apóia no umbral da porta da cozinha e a olha trabalhar. Não precisa parar de cantar, diz ele, Eu não me incomodo. Ela lava algumas louças de forma impassível. Ninguém vai saber, ele fala, Vamos, ele dá um passo à frente, Cante, ele se aproxima dela, Cante para mim, ele segura a cintura dela com ambas as mãos, ela pára de lavar a louça, ele fecha os olhos, Vamos, cante para mim, ela fica imóvel, ele tenta sussurrar a mesma harmonia perto do ouvido dela, ela não se mexe, Vamos, cante comigo, eu sei que você sabe, hum-hum-huum, eu escutei, vamos, ela não se move. Ele pára de cantarolar, abre os olhos, a vira e agarra o rosto dela aproximando-o do seu e grita, Eu disse para você cantar para mim, começa a balançar a cabeça dela, Cante para mim quando eu mandar, entendeu, joga a cabeça dela de um lado para o outro, ela começa a chorar, Cante para mim, cante, cante, ele pára. Larga o rosto dela e se apóia na pia. Ela sai da cozinha no meio do choro.
A pia ainda pingava. Ele fecha a torneira e sai da cozinha para a sala onde fica o bar. Abre a porta de vidro da cristaleira e pega o conhaque com um copo. Coloca um cigarro na boca e abre a primeira gaveta abaixo do bar para apanhar um isqueiro fajuto e o acende. Senta numa poltrona de costas para o corredor que liga o quarto à cozinha. Enche o copo e toma em uma talagada. Repete a ação mais duas vezes. Enche o copo pela quarta vez, se encosta à poltrona e traga o cigarro. Repara na fumaça do cigarro. Ela é inferior, repete para si mesmo, Porcos imundos. Vira novamente a bebida e enche o copo mais uma vez. Porcos imundos. Traga o cigarro. Porcos imundos. Vira a bebida e enche o copo. Traga o cigarro, Porcos imundos, Porcos imundos, Porcos imundos. Levanta-se.
Caminha cambaleante pelo corredor que leva para o quarto de Eva. Porcos imundos. Abre a porta. Ela está deitada na cama de bruços com o rosto no travesseiro chorando. Ele olha para ela. Ela se assusta com ele parado na porta do quarto e pára de chorar. Ele repara no seu rosto, mais róseo ainda. Percebe que os seus olhos verdes ressaltavam-se. Lindos olhos verdes. Não, ela é um dos porcos imundos, pensou. Você deveria me servir o almoço, ele fala. Ela se senta na cama, passa a mão pelo rosto e se levanta. Chega perto dele e ele não se afasta da porta. Ela percebe que ele está embriagado e dá um passo atrás. Vai colocar a minha comida, ele aponta para o corredor. Ela abaixa a cabeça e cruza as mãos como se quisesse se defender. Ele dá um passo à frente, Vai colocar a minha comida, agarra o cabelo dela, Eu te ordeno, e a empurra em cima da cama. Ela cai e começa a chorar novamente, Porcos imundos, começa a gritar, Você é inferior, você é igual a eles, começa a enforca-la, Porcos imundos, aperta o pescoço dela mais, Você é inferior, se aproxima, tenta dar um beijo, mas ela já está inerte, Porcos imundos, Porcos imundos. Ele se ajoelha no chão, abaixa a cabeça, e começa a murmurar, Por que você tinha que ser inferior, ele grita, Por que... Ele se levanta, olha para ela deitada, para o rosto róseo, para os cabelos castanhos e volta para a sala. Senta na poltrona e acende um cigarro. Olha através da fumaça a parede vazia. Porcos imundos, repete para si mesmo em tom bem baixo, Ela é inferior, ela é inferior, ela é um dos porcos imundos.
A mira procura qualquer coisa que se move. O longo cano mira e espera a ordem do gatilho para cuspir sem nenhum traço de culpa. O atirador, que traja apenas uma calça com suspensórios, um cigarro na boca e meias sem sapatos, ignora quem são os pontos que se movem lá no fundo da sua visão. Ele acabara de acordar e antes de tomar o desjejum costuma apertar o gatilho pelo menos uma vez. Lá embaixo, um senhor, com uma picareta nas mãos, tenta abrir uma vala comum. Passa por ele uma mulher, com um lenço nos cabelos e uma criança nos braços. A mira vai dele para ela e volta para ele. Perto deles há um soldado armado e que ignora completamente quem são as pessoas as quais ele deve zelar pela falta de liberdade. São apenas rostos, ele pensa nesse momento. O cano sai do velho com a picareta e acompanha a vala. Encontra outros homens de todas as idades que também cavam. Ele ignora se eles sabem que podem morrer a qualquer momento. Mas isso não importa. Há uma concentração de homens parados que tentam tirar uma pedra do rastro da vala. O homem aponta na direção da concentração de gente e dispara algumas vezes. Três homens caem. Logo alguns outros retiram os corpos e voltam para substituir os caídos.
O atirador levanta o corpo e olha para a aglomeração de pessoas lá embaixo. Longe da mira parecem tão distantes. Puxa os suspensórios e aparece um meio sorriso com cuidado para não deixar cair o cigarro da boca. Vira-se de frente para o quarto que dormiu e caminha para ele, saindo da sacada. Encontra Eva que segura suas roupas e olha para ele sem demonstrar nenhuma emoção no rosto. Ele olha para ela e ela repara na fumaça que sobe do cigarro aceso que se equilibra na boca do homem. Ele fica nervoso e grita alguma coisa ininteligível por causa do cigarro na boca. Ela não sabe o que fazer e abre um pouco a boca espantada. Ele grita novamente e caminha na direção dela. Os dois estão separados pela cama dele. Segura o braço dela e a puxa para o lado onde estava. Ela fecha os olhos de forma indecisa, talvez por causa da claridade que vinha da varanda, talvez por causa do rifle parado ali. Eu disse para você colocar a minha roupa aqui, diz o homem de forma nervosa. Ela abre os olhos na direção dele. Repara na sua respiração cansada, nervosa, hesitante e nos seus olhos injetados de raiva. Ele segura o braço dela e olha para o seu rosto com os cabelos desalinhados jogados na testa e a fumaça do cigarro que sobe e forma uma pequenina cortina. Ele larga o braço dela, se apóia na porta da varanda com olhos lá embaixo e olhos dentro do quarto, passa a mão no cabelo, tira o cigarro da boca e aponta para poltrona, Ali, coloca a roupa ali, diz. Ela, silenciosamente, coloca a roupa no lugar indicado e se vira em direção a saída. Caminha de maneira rápida, mas com cuidado. Espere, grita ele da porta da varanda, ela se vira, ele olha para os olhos dela, olhos de um verde único, o rosto róseo, o cabelo castanho escuro grudado na cabeça, olha para toda ela com as roupas indignas dela, indignas dela, ele pensa, Desculpa, ele fala com a mão com o cigarro apontando para o quarto e para a poltrona. Ela se vira e sai do quarto.
Ele se arruma e se encaminha para tomar o desjejum. Senta na cabeceira da grande mesa vazia de madeira maciça na copa. Eva entra no recinto com duas tigelas, uma em cada mão, e apressasse para colocar na frente dele. Ele acompanha a movimentação dela somente com os olhos sem produzir nenhum som. Ela sai da copa e retorna com mais duas travessas e repete o movimento anterior. Ele espera que ela saia do recinto para olhar para os pratos. Começa a comer do que estava mais próximo dele. Ela volta com um jarro e coloca na frente dele. Sai novamente. O que é isso, ele pergunta puxando uma das terrinas para próximo dele, O que é isso, ele repete aumentando o tom de voz. Ela entra no recinto com uma xícara nas mãos. O que é isso, ele quase grita sem desviar os olhos dela, Você fez comida da sua raça para mim, ele inquire com as duas mãos postadas em cima da mesa e os olhos injetados, Essa comida você devia fazer para os porcos, ele se levanta e derruba a tigela no chão, Nunca mais, ele levanta o dedo em riste, Nunca mais faça esse tipo de comida para mim, ouviu, você está entendendo, ele berra, ela abaixa a cabeça, ele sai da copa.
Desce as escadas, passa pela secretária que faz um cumprimento, e entra no seu escritório feito todo em madeira de lei escura. Puxa a pesada cadeira e senta atrás da mesa. Entrecruza os dedos e olha através deles para a porta impassível. Ela é inferior, ela é inferior, repete mentalmente como um mantram. Fica imóvel durante minutos. Levanta-se e caminha lentamente escutando cada som da sola das botinas no chão para a janela. Abre a cortina e olha para fora. Sujos, fala baixo para ele mesmo, Imundos, repete. Volta um pouco mais seguro para a mesa. Antes, porém, a secretária bate à porta e a abre. Ela anuncia que o subcomandante quer entrar para despachar. Ele autoriza e senta-se na pesada cadeira com os dedos entrecruzados na frente do rosto.
O subcomandante faz o cumprimento e ele o autoriza a sentar-se. O subcomandante começa a passar as informações de movimentações da tropa e de todo exército. Ele olha além do subcomandante para a porta. O subcomandante continua com os olhos fixos nos papéis que tem na sua frente. Ele levanta-se e o subcomandante pára de falar, ele pede que continue, que não se importe com ele de pé. Ele se encaminha para a porta com a voz do subcomandante bem no fundo. O subcomandante se vira na tentativa de acompanhar o pequeno passeio dele. Ele espalma a mão direita na porta e com a esquerda segura a maçaneta. Ela é inferior, não pode, ele repete para si baixo, O que foi que disse, senhor comandante, pergunta o outro. Ele se vira e ordena que ele não repare no que ele diz. O subcomandante pede perdão e pergunta se deve continuar, ele autoriza e volta para a mesa e para se sentar na cadeira.
Continua a fala no fundo e ele olha para os dedos entrecruzados da mão. Pega um cigarro leva a boca e vê que o subcomandante se oferece para acende-lo. Ele aceita, mas com um olhar agressivo. O subcomandante prossegue e ele repara na fumaça que queima o cigarro. Traga mais uma vez e escuta o cigarro queimar e vê a brasa consumir o toco. Bate a cinza do cigarro no cinzeiro de prata que há em cima da mesa. Olha para fora. Eva, ele escuta, O que há com ela, ele, num misto de inquietude, curiosidade e nervosismo, pergunta para o subcomandante, É que, o senhor sabe, não é aconselhável ter alguém de raça inferior trabalhando para o senhor, Quem disse isso, ele questiona em tom arrogante, Ninguém, responde o subcomandante, Escuta-se por ai, completa, E o que dizem, ele instiga, Nada, apenas que não é de bom tom o senhor ter uma criada da raça deles, Pois eu acho que quem fala isso está completamente errado, Eva faz o seu serviço de maneira impecável, não tenho o que reclamar. Mas, o subcomandante começou a falar, Eu não terminei, e eu tenho certeza que eles prestam para estes tipos de afazeres menos qualificados sim, eles devem nos servir, Sim, entendo comandante, mas, Mas o que, acho que fui claro, Sim, senhor. Ele bate a cinza do cigarro que ficou parado no cinzeiro e traga com os olhos na fumaça. Senhor, peço permissão para me retirar, todas as considerações foram feitas, Claro, pode ir. O subcomandante levanta-se. Quando gira a maçaneta, ele pede para chamar sua secretária, Claro, senhor, responde o subcomandante.
Sim, senhor, a secretária diz ao entrar no escritório. Peça a Eva que traga o café para mim agora, sim, Sim senhor, ela responde. Ele apaga o cigarro e pega outro. Coloca na boca e abre a gaveta à procura do isqueiro de prata que há dentro. Acende o isqueiro e repara na chama. Aproxima do cigarro dá uma tragada e desliga o isqueiro. Guarda-o na gaveta e traga uma vez mais. Vê a brasa que come o cigarro, prende a fumaça e a solta pelo nariz. Batem à porta. Entre, ele diz. Eva entra com um bule e uma xícara grande de porcelana em cima de uma bandeja. Coloca ambos os utensílios na frente dele. Ele observa todos os movimentos dela. Ele fica imóvel, com os olhos plantados no rosto dela, explorando cada detalhe, conhecendo as pequeninas dobras de expressão, descobrindo o cheiro dela, detalhando o tom da sua pele. Ela enche a xícara com o café forte, da maneira como ele gosta, e coloca o bule em cima da bandeja novamente. Ele segura o braço livre dela. Ela olha para ele assustada. Ele começa a apertar o braço dela, ela desvia os olhos dos dele e repara na mão dele que faz a pressão. Ele a solta e olha para janela. Dá mais uma tragada com as mãos trêmulas. Ela se vira e sai do escritório. Ele se levanta e vai para a janela. Repara num homem que empurra um carrinho com pedras dentro e que passa na frente da janela. Porcos, repete para si mesmo, Imundos. Anda rapidamente para a porta em direção à saída. Consegue enxergar o homem que havia passado em frente a sua janela e anda na sua direção. Quando chega próximo, grita para ele parar. O homem vira-se num sobressalto, ele saca a sua pistola do coldre e mira para ele, o homem cai de joelhos, ele se aproxima e encosta o cano na testa dele e aperta o gatilho. Vira-se, limpa o cano com a manga da camisa e a coloca de volta no coldre. Antes de entrar no escritório, o subcomandante, que havia visto toda a cena, alcança-o. Senhor, posso perguntar o motivo do tiro no homem, Pode perguntar sim, mas eu talvez não queira responder, Senhor, nós não podemos mata-los dessa forma ou corremos o risco deles se revoltarem, Então, meu caro subcomandante, diga para esses porcos imundos não passarem tão próximos da minha janela, você me escutou, Sim, senhor. O subcomandante sai em direção a um oficial menos graduado e ele para o escritório.
Entra na sua sala e se apóia na mesa com as duas mãos e de costas para a porta. Pega o café e toma um gole. Sente que já tinha esfriado um pouco. Engole mais um pouco. Mexe na xícara como se quisesse misturar algo. Coloca a xícara de volta no pires. Volta-se para a porta, abre-a e pede a secretária que chame Eva para retirar a xícara. Sim, senhor, ela responde. Ele abre a gaveta e pega o isqueiro. Acende mais um cigarro e olha pela janela o lado de fora. Tira a cortina de maneira que a luz entre sem nenhum entrave. Demora um pouco e escuta batidas na porta. Entre, ele diz. Eva entra cabisbaixa. Ele olha para fora, tenta evita-la. Ele escuta o barulho do pires ao encostar-se à bandeja. Estava muito ruim, diz ele olhando através da fumaça para ela. Ela se vira, ainda com a cabeça baixa, e volta-se para porta, Da próxima vez, tente fazer um café melhor, ela abre a porta e sai. Ele apaga o cigarro e acende outro.
Avisa para a secretária que vai almoçar e sobe as escadas tentando ser o mais silencioso possível. Senta na cabeceira da mesa. Eva está na cozinha ainda. Ele tenta escutar o barulho dela. Percebe que ela murmura uma música de melodia suave. Ele fecha os olhos e imagina que ela canta para ele. Não, ele abre repentinamente os olhos, Ela é inferior. Arrasta a cadeira e tenta levantar-se. Eva percebe que ele já havia subido e pára de cantarolar. Ele se apóia no umbral da porta da cozinha e a olha trabalhar. Não precisa parar de cantar, diz ele, Eu não me incomodo. Ela lava algumas louças de forma impassível. Ninguém vai saber, ele fala, Vamos, ele dá um passo à frente, Cante, ele se aproxima dela, Cante para mim, ele segura a cintura dela com ambas as mãos, ela pára de lavar a louça, ele fecha os olhos, Vamos, cante para mim, ela fica imóvel, ele tenta sussurrar a mesma harmonia perto do ouvido dela, ela não se mexe, Vamos, cante comigo, eu sei que você sabe, hum-hum-huum, eu escutei, vamos, ela não se move. Ele pára de cantarolar, abre os olhos, a vira e agarra o rosto dela aproximando-o do seu e grita, Eu disse para você cantar para mim, começa a balançar a cabeça dela, Cante para mim quando eu mandar, entendeu, joga a cabeça dela de um lado para o outro, ela começa a chorar, Cante para mim, cante, cante, ele pára. Larga o rosto dela e se apóia na pia. Ela sai da cozinha no meio do choro.
A pia ainda pingava. Ele fecha a torneira e sai da cozinha para a sala onde fica o bar. Abre a porta de vidro da cristaleira e pega o conhaque com um copo. Coloca um cigarro na boca e abre a primeira gaveta abaixo do bar para apanhar um isqueiro fajuto e o acende. Senta numa poltrona de costas para o corredor que liga o quarto à cozinha. Enche o copo e toma em uma talagada. Repete a ação mais duas vezes. Enche o copo pela quarta vez, se encosta à poltrona e traga o cigarro. Repara na fumaça do cigarro. Ela é inferior, repete para si mesmo, Porcos imundos. Vira novamente a bebida e enche o copo mais uma vez. Porcos imundos. Traga o cigarro. Porcos imundos. Vira a bebida e enche o copo. Traga o cigarro, Porcos imundos, Porcos imundos, Porcos imundos. Levanta-se.
Caminha cambaleante pelo corredor que leva para o quarto de Eva. Porcos imundos. Abre a porta. Ela está deitada na cama de bruços com o rosto no travesseiro chorando. Ele olha para ela. Ela se assusta com ele parado na porta do quarto e pára de chorar. Ele repara no seu rosto, mais róseo ainda. Percebe que os seus olhos verdes ressaltavam-se. Lindos olhos verdes. Não, ela é um dos porcos imundos, pensou. Você deveria me servir o almoço, ele fala. Ela se senta na cama, passa a mão pelo rosto e se levanta. Chega perto dele e ele não se afasta da porta. Ela percebe que ele está embriagado e dá um passo atrás. Vai colocar a minha comida, ele aponta para o corredor. Ela abaixa a cabeça e cruza as mãos como se quisesse se defender. Ele dá um passo à frente, Vai colocar a minha comida, agarra o cabelo dela, Eu te ordeno, e a empurra em cima da cama. Ela cai e começa a chorar novamente, Porcos imundos, começa a gritar, Você é inferior, você é igual a eles, começa a enforca-la, Porcos imundos, aperta o pescoço dela mais, Você é inferior, se aproxima, tenta dar um beijo, mas ela já está inerte, Porcos imundos, Porcos imundos. Ele se ajoelha no chão, abaixa a cabeça, e começa a murmurar, Por que você tinha que ser inferior, ele grita, Por que... Ele se levanta, olha para ela deitada, para o rosto róseo, para os cabelos castanhos e volta para a sala. Senta na poltrona e acende um cigarro. Olha através da fumaça a parede vazia. Porcos imundos, repete para si mesmo em tom bem baixo, Ela é inferior, ela é inferior, ela é um dos porcos imundos.
quinta-feira, 8 de agosto de 2002
Ultimamente freqüentei ambientes em que pude escutar definições diferentes do que seria cinema. Então, surgiu a inquietação óbvia, o que é cinema afinal?
Para ambientar melhor, um dos grupos – talvez o menos preparado – comentou um exemplo do que eles não consideram cinema. Disseram que a trilogia “Senhor dos anéis” não era cinema por ser uma adaptação literal do livro que originou. Até ai, a teoria estaria completamente furada, principalmente se considerarmos que o cinema abusa de adaptações literais de obras literárias. Porém, eles afirmaram que o cinema não precisa retratar todos os detalhes e pormenores especificados nos livros por meio de palavras (diálogos ou o recurso do off). Ou seja, o que eles queriam dizer desde o início era que o cinema é uma arte (?) visual, que lida com imagens em movimento, e não literária. Pode usar o recurso da palavra escrita ou falada, mas nunca será prioritário.
O outro grupo que escutei afirmou que, para início de conversa, cinema é feito com película. Cinema é filme. Qualquer coisa feita com vídeo, por mais que tenha inclinações dramatúrgicas não será cinema. Cinema seria o processo de queima da película pela luz que entra através das lentes. Cinema teria a ver com o processo óptico apenas. Vídeo teria ligação com o processo digital.
Com isso abre-se uma imensidão de possibilidades para se pensar. É óbvio que, por ter melhor qualidade, a película de 35 mm foi, durante anos, a preferida entre os que aspiravam se tornar cineastas. O vídeo, mesmo sendo bem mais barato e mais prático – não é necessário revelar e tem-se o resultado na hora – perdia no quesito qualidade.
Porém, com o desenvolvimento da tecnologia de vídeo digital, já é possível fazer “filmes” 100% digitais – desde a captação de imagens até a sua projeção – e sem perder qualidade nenhuma com isso. Vide o segundo episódio de “Star Wars”.
É claro que, para não haver nenhuma perda de qualidade na projeção, deve-se ter equipamentos digitais de projeção. Senão, o processo de projeção passa pela transferência do vídeo digital para a película de 35 mm e depois para os projetores tradicionais, com uma pequena perda de definição nesse caso.
Com esses projetores digitais, o vídeo conseguiu a mesma qualidade da película, mas as suas grandes vantagens iniciais – o barateamento, por causa da carência de câmeras de alta definição a preços acessíveis, e a praticidade da produção, por causa da necessidade de implementação desses novos projetores – foram por água abaixo.
Mas, e não é preciso ser nenhum gênio para descobrir isso, a tecnologia digital tende a substituir a película. Basta que haja uma substituição dos projetores tradicionais pelos digitais e que as câmeras digitais fiquem mais populares e acessíveis. E então, teremos produções de cinema, ou apenas de vídeo digital?
Já vejo nostálgicos daqui a vinte, trinta anos que dirão que, “na época deles que era bom”. Ou aqueles que sentiram saudade da película, da textura da película, ou das faltas e problemas e manchas da película. Mais ou menos como acontece atualmente com o vinil e o cd, ou o sexo sem e com camisinha de antes e depois da aids.
(Aqui cabe um parêntese. Não há como ter uma posição imparcial e imutável agora. Com essa tecnologia toda que o digital traz, haverá uma melhora substancial da edição, ou da inclusão de efeitos especiais, por exemplo. O problema da captação e da projeção será, logo, logo, resolvido. E então, por qual lado optar? O da película e o gosto do tradicional, ou o digital e opção pela facilidade?).
E com o predomínio futuro do vídeo digital, voltamos para a pergunta inicial, será isso cinema? Filme é óbvio que não é. Gravaremos as cenas, ao invés de filma-las. Mas isto não é cinema? Porque, se o fato de filmar, única e exclusivamente, já consistir em “fazer cinema”, todas as produções caseiras de super8 que eram tão comuns até mais ou menos a década de 70 deveriam ser consideradas cinema.
E se alguém, agora, disser que cinema deve ter algum tipo de sentido, não início, meio e fim, mas um sentido por onde corre a narrativa, e por isso as produções caseiras não se encaixam na definição, podemos perguntar, então, onde encaixaríamos os filmes experimentais. Nem cito o caso de filmes surrealistas, ou filmes com montagens desconexas, porque, mal ou bem, estes têm sempre um sentido, há uma mensagem intrínseca, que talvez não tenhamos as chaves necessárias para decodificar. Isto de “Cão Andaluz” do Buñuel e “Muholland Drive” do David Lynch a todos os filmes do Godard. O caso é dos filmes experimentais. Filmes onde basta à câmera abrir as suas lentes para queimar a película. Onde tudo é tentado e permitido, onde novas formas de entender o cinema são estudadas, onde não há limite e, normalmente, onde o cinema dá passos para frente. Isso, então, não seria cinema?
Não, posso escutar algumas pessoas respondendo a pergunta. E talvez eu mesmo responda que não também. Eu, até hoje, não considerei nenhuma obra estritamente experimental cinema. E, dessa forma, cinema seria a representação dramática através de imagens projetadas em movimento e cortes que suprimam o desnecessário e provoque elipses, independente da forma de captação, armazenamento e de projeção dessas imagens. Mas, será isso mesmo?
Também não. Isso pode ser novela, mini-série, telefilme ou qualquer coisa que passe na televisão, por exemplo. Com a internet e a melhora em conexões então... Tudo fica bem mais confuso. Tudo bem. Cinema é o que foi feito para passar no Cinema ou que fica bem ao ser exibido no Cinema. O lugar da projeção daria o nome para a arte. Ah, a tal da pós-modernidade...
Para ambientar melhor, um dos grupos – talvez o menos preparado – comentou um exemplo do que eles não consideram cinema. Disseram que a trilogia “Senhor dos anéis” não era cinema por ser uma adaptação literal do livro que originou. Até ai, a teoria estaria completamente furada, principalmente se considerarmos que o cinema abusa de adaptações literais de obras literárias. Porém, eles afirmaram que o cinema não precisa retratar todos os detalhes e pormenores especificados nos livros por meio de palavras (diálogos ou o recurso do off). Ou seja, o que eles queriam dizer desde o início era que o cinema é uma arte (?) visual, que lida com imagens em movimento, e não literária. Pode usar o recurso da palavra escrita ou falada, mas nunca será prioritário.
O outro grupo que escutei afirmou que, para início de conversa, cinema é feito com película. Cinema é filme. Qualquer coisa feita com vídeo, por mais que tenha inclinações dramatúrgicas não será cinema. Cinema seria o processo de queima da película pela luz que entra através das lentes. Cinema teria a ver com o processo óptico apenas. Vídeo teria ligação com o processo digital.
Com isso abre-se uma imensidão de possibilidades para se pensar. É óbvio que, por ter melhor qualidade, a película de 35 mm foi, durante anos, a preferida entre os que aspiravam se tornar cineastas. O vídeo, mesmo sendo bem mais barato e mais prático – não é necessário revelar e tem-se o resultado na hora – perdia no quesito qualidade.
Porém, com o desenvolvimento da tecnologia de vídeo digital, já é possível fazer “filmes” 100% digitais – desde a captação de imagens até a sua projeção – e sem perder qualidade nenhuma com isso. Vide o segundo episódio de “Star Wars”.
É claro que, para não haver nenhuma perda de qualidade na projeção, deve-se ter equipamentos digitais de projeção. Senão, o processo de projeção passa pela transferência do vídeo digital para a película de 35 mm e depois para os projetores tradicionais, com uma pequena perda de definição nesse caso.
Com esses projetores digitais, o vídeo conseguiu a mesma qualidade da película, mas as suas grandes vantagens iniciais – o barateamento, por causa da carência de câmeras de alta definição a preços acessíveis, e a praticidade da produção, por causa da necessidade de implementação desses novos projetores – foram por água abaixo.
Mas, e não é preciso ser nenhum gênio para descobrir isso, a tecnologia digital tende a substituir a película. Basta que haja uma substituição dos projetores tradicionais pelos digitais e que as câmeras digitais fiquem mais populares e acessíveis. E então, teremos produções de cinema, ou apenas de vídeo digital?
Já vejo nostálgicos daqui a vinte, trinta anos que dirão que, “na época deles que era bom”. Ou aqueles que sentiram saudade da película, da textura da película, ou das faltas e problemas e manchas da película. Mais ou menos como acontece atualmente com o vinil e o cd, ou o sexo sem e com camisinha de antes e depois da aids.
(Aqui cabe um parêntese. Não há como ter uma posição imparcial e imutável agora. Com essa tecnologia toda que o digital traz, haverá uma melhora substancial da edição, ou da inclusão de efeitos especiais, por exemplo. O problema da captação e da projeção será, logo, logo, resolvido. E então, por qual lado optar? O da película e o gosto do tradicional, ou o digital e opção pela facilidade?).
E com o predomínio futuro do vídeo digital, voltamos para a pergunta inicial, será isso cinema? Filme é óbvio que não é. Gravaremos as cenas, ao invés de filma-las. Mas isto não é cinema? Porque, se o fato de filmar, única e exclusivamente, já consistir em “fazer cinema”, todas as produções caseiras de super8 que eram tão comuns até mais ou menos a década de 70 deveriam ser consideradas cinema.
E se alguém, agora, disser que cinema deve ter algum tipo de sentido, não início, meio e fim, mas um sentido por onde corre a narrativa, e por isso as produções caseiras não se encaixam na definição, podemos perguntar, então, onde encaixaríamos os filmes experimentais. Nem cito o caso de filmes surrealistas, ou filmes com montagens desconexas, porque, mal ou bem, estes têm sempre um sentido, há uma mensagem intrínseca, que talvez não tenhamos as chaves necessárias para decodificar. Isto de “Cão Andaluz” do Buñuel e “Muholland Drive” do David Lynch a todos os filmes do Godard. O caso é dos filmes experimentais. Filmes onde basta à câmera abrir as suas lentes para queimar a película. Onde tudo é tentado e permitido, onde novas formas de entender o cinema são estudadas, onde não há limite e, normalmente, onde o cinema dá passos para frente. Isso, então, não seria cinema?
Não, posso escutar algumas pessoas respondendo a pergunta. E talvez eu mesmo responda que não também. Eu, até hoje, não considerei nenhuma obra estritamente experimental cinema. E, dessa forma, cinema seria a representação dramática através de imagens projetadas em movimento e cortes que suprimam o desnecessário e provoque elipses, independente da forma de captação, armazenamento e de projeção dessas imagens. Mas, será isso mesmo?
Também não. Isso pode ser novela, mini-série, telefilme ou qualquer coisa que passe na televisão, por exemplo. Com a internet e a melhora em conexões então... Tudo fica bem mais confuso. Tudo bem. Cinema é o que foi feito para passar no Cinema ou que fica bem ao ser exibido no Cinema. O lugar da projeção daria o nome para a arte. Ah, a tal da pós-modernidade...
quarta-feira, 7 de agosto de 2002
da série cenas insólitas na madrugada:
bando de hômi doidão de n possibilidades na sala em torno de conversas cotidianas. então, começa o lula a ser entrevistado pela ana paula padrão - um espetáculo - e rola um silêncio sepulcral para observá-lo. seria uma pontinha de otimismo que passava debaixo dos nossos olhos, pergunto-me agora.
bando de hômi doidão de n possibilidades na sala em torno de conversas cotidianas. então, começa o lula a ser entrevistado pela ana paula padrão - um espetáculo - e rola um silêncio sepulcral para observá-lo. seria uma pontinha de otimismo que passava debaixo dos nossos olhos, pergunto-me agora.
segunda-feira, 5 de agosto de 2002
sábado, 3 de agosto de 2002
Crônicas...
Nas últimas duas semanas, aconteceram alguns eventos que tiveram muitos fatos que se interligam. Por uma incrível coincidência do destino, claro.
Fui, em ordem cronológica, a um lançamento de uma revista, a “premiere” de um filme e ao evento de divulgação de um site que está começando.
Todos os contatos que me fizeram ir às festas estão na década de 20. Todos terminaram a faculdade (ou estão em vias de) e labutam (ou querem labutar) em algo que não é intimamente ligado ao que foi ensinado em sala-de-aula. Todos (uns mais, outros menos) acreditam no que fazem, ou tem idéia do que querem fazer. E todos (isso com certeza) têm certeza de que não querem repetir as fórmulas já batidas ou conservadoras, chatas e monótonas que nos fazem engolir no dia-a-dia comum.
A revista e o filme foram feitos sem nenhum aparato profissional, com os dois pés no amadorismo. O que não tira, ou não tirou, em nenhum momento o peso das iniciativas.
A revista é uma iniciativa de alunos da UFF em parceria com outros estudantes de outras faculdades que se dizem sérias (leia-se UERJ, UFRJ e PUC) para divulgar informações entre as instituições de ensino superior. A idéia (muito legal) é fazer uma rede de comunicação que interligue os campus, para mostrar, por exemplo, se vai ocorrer um evento cultural na UFF, para entrevistar o novo reitor da UFRJ ou para falar de uma iniciativa de telejornalismo na rede que deu certo na UERJ. Assim nasceu a Intercampi (página na web www.intercampi.com )
O filme é obra de uma oficina de super8 realizada por um grupo de cineastas que adoram o filão alternativo (muito por não terem oportunidade de mostrar os seus trabalhos no sistemão). Eles se reuniram e resolveram divulgar a maneira mais artesanal de fazer cinema, cinema real, com película, luz, fotômetro, projetor, organização, produção, montagem em moviola, edição digital etc. A maneira mais artesanal e mais barata também (apesar do rolo de três minutos custar 100 reais). O próximo passo da galera que organizou essa oficina é fazer uma parecida em 16mm. Mais informações: www.curtaocurta.com.br
O site que fui no lançamento foi montado com toda a expertise de uma ong que se preocupa em defender os direitos e gritar para todos os lados os deveres das mulheres. A ong, chamada Cemina (cuidado ao ler, pois deve ter entonação de palavras proparoxítonas, mesmo sem presença do acento agudo) faz um trabalho de divulgação de informações muito úteis para que as mulheres saibam o que fazer, por exemplo, num caso de violência doméstica. No site, que é uma plataforma na rede para o programa que eles já veiculam há 10 anos na rádio bandeirantes, ainda pode ser encontrado entrevistas com opiniões de mulheres de renome, e outras nem tanto, sobre fatos cotidianos ou sobre situações que chamaram a atenção na semana. E claro, muito mais conteúdo para informar a internauta (e por que não o internauta?) sem esquecer do caráter lúdico que a internet exige. Endereço: www.radiofalamulher.com
O que foi mais interessante, além do fato óbvio de todas as reuniões denotarem um início de uma atitude que (parece) tem tudo para ser desenvolvida e, quem sabe, dar certo, é que nenhum dos responsáveis que me fizeram ir as festas, teve que abrir mão de alguma coisa. Por mais que tenha havido, em algum grau, alguma adaptação a problemas e eventuais imprevistos, todos fizeram algo com o coração. Todos (e isso eu posso assegurar) ralaram muito para colocar o projeto em funcionamento, mas que ao olharem para trás percebem como foi também prazeroso produzir algo. Principalmente algo novo e diferente.
Nas últimas duas semanas, aconteceram alguns eventos que tiveram muitos fatos que se interligam. Por uma incrível coincidência do destino, claro.
Fui, em ordem cronológica, a um lançamento de uma revista, a “premiere” de um filme e ao evento de divulgação de um site que está começando.
Todos os contatos que me fizeram ir às festas estão na década de 20. Todos terminaram a faculdade (ou estão em vias de) e labutam (ou querem labutar) em algo que não é intimamente ligado ao que foi ensinado em sala-de-aula. Todos (uns mais, outros menos) acreditam no que fazem, ou tem idéia do que querem fazer. E todos (isso com certeza) têm certeza de que não querem repetir as fórmulas já batidas ou conservadoras, chatas e monótonas que nos fazem engolir no dia-a-dia comum.
A revista e o filme foram feitos sem nenhum aparato profissional, com os dois pés no amadorismo. O que não tira, ou não tirou, em nenhum momento o peso das iniciativas.
A revista é uma iniciativa de alunos da UFF em parceria com outros estudantes de outras faculdades que se dizem sérias (leia-se UERJ, UFRJ e PUC) para divulgar informações entre as instituições de ensino superior. A idéia (muito legal) é fazer uma rede de comunicação que interligue os campus, para mostrar, por exemplo, se vai ocorrer um evento cultural na UFF, para entrevistar o novo reitor da UFRJ ou para falar de uma iniciativa de telejornalismo na rede que deu certo na UERJ. Assim nasceu a Intercampi (página na web www.intercampi.com )
O filme é obra de uma oficina de super8 realizada por um grupo de cineastas que adoram o filão alternativo (muito por não terem oportunidade de mostrar os seus trabalhos no sistemão). Eles se reuniram e resolveram divulgar a maneira mais artesanal de fazer cinema, cinema real, com película, luz, fotômetro, projetor, organização, produção, montagem em moviola, edição digital etc. A maneira mais artesanal e mais barata também (apesar do rolo de três minutos custar 100 reais). O próximo passo da galera que organizou essa oficina é fazer uma parecida em 16mm. Mais informações: www.curtaocurta.com.br
O site que fui no lançamento foi montado com toda a expertise de uma ong que se preocupa em defender os direitos e gritar para todos os lados os deveres das mulheres. A ong, chamada Cemina (cuidado ao ler, pois deve ter entonação de palavras proparoxítonas, mesmo sem presença do acento agudo) faz um trabalho de divulgação de informações muito úteis para que as mulheres saibam o que fazer, por exemplo, num caso de violência doméstica. No site, que é uma plataforma na rede para o programa que eles já veiculam há 10 anos na rádio bandeirantes, ainda pode ser encontrado entrevistas com opiniões de mulheres de renome, e outras nem tanto, sobre fatos cotidianos ou sobre situações que chamaram a atenção na semana. E claro, muito mais conteúdo para informar a internauta (e por que não o internauta?) sem esquecer do caráter lúdico que a internet exige. Endereço: www.radiofalamulher.com
O que foi mais interessante, além do fato óbvio de todas as reuniões denotarem um início de uma atitude que (parece) tem tudo para ser desenvolvida e, quem sabe, dar certo, é que nenhum dos responsáveis que me fizeram ir as festas, teve que abrir mão de alguma coisa. Por mais que tenha havido, em algum grau, alguma adaptação a problemas e eventuais imprevistos, todos fizeram algo com o coração. Todos (e isso eu posso assegurar) ralaram muito para colocar o projeto em funcionamento, mas que ao olharem para trás percebem como foi também prazeroso produzir algo. Principalmente algo novo e diferente.
sexta-feira, 2 de agosto de 2002
O que vc quer ser quando crescer, perguntaram para ele entre um gole e outro de café na sala. Eu não sei, ele disse cabisbaixo. Como vc não sabe, insistiram, queriam que ele dissesse algo para impressionar a todos na sala, Vc não tem nenhum sonho, não tem nenhuma vontade, completaram. Nada, nenhum, ele mentiu. queria muitas coisas na vida, mas não tinha coragem de admiti-las por achar sempre que era distante e impossível de atingir. e todas as vezes que via que, talvez houvesse alguma possibilidade de alcançar o improvável, ele achava que não era necessário dizer a quatro ventos. pensava que era quase um pecado admitir seus sonhos publicamente. poderia passar como pretensioso. ou, ainda, tinha medo das vozes dissonantes entre os ouvintes. Vc não quer ser advogado, ou médico, continuaram a questioná-lo, e uma voz no fundo gritou, Engenheiro, o menino tem cara de engenheiro, fala, fala para todo mundo ouvir que vc quer construir pontes, prédios, tudo. ele não respondeu. ficou no canto, como estava, imóvel e com olhar assustado. Eu não sei o que quero, mas tenho certeza do que não quero, disse e surpreendeu a todos pelo tom sério. O que, disse o homem mais próximo a ele, O que vc não quer. Eu não quero ser vcs, respondeu.
ou ainda. Eu tenho certeza, intrigou a todos pela confiança. O que quer, perguntaram em quase uníssono, Eu quero ser deus, esse deus que vcs conhecem e confiam, esse deus que tudo vê e tudo faz, esse deus que cria e destrói com a mesma facilidade, esse deus que tem o poder de dar a vida e matar, esse deus que escolhe os destinos e prescreve os fins, esse deus que decide a sua vontade, e apontou para um homem aleatoriamente, ou a sua vontade, e apontou para outro, ou a sua, e apontou para mais um. Eu quero ser o dono da verdade, eu quero decidir o que vai acontecer e o que aconteceu, eu quero ser a sua vontade, a vontade de todo mundo.
silêncio de todos.
ou ainda. Eu tenho certeza, intrigou a todos pela confiança. O que quer, perguntaram em quase uníssono, Eu quero ser deus, esse deus que vcs conhecem e confiam, esse deus que tudo vê e tudo faz, esse deus que cria e destrói com a mesma facilidade, esse deus que tem o poder de dar a vida e matar, esse deus que escolhe os destinos e prescreve os fins, esse deus que decide a sua vontade, e apontou para um homem aleatoriamente, ou a sua vontade, e apontou para outro, ou a sua, e apontou para mais um. Eu quero ser o dono da verdade, eu quero decidir o que vai acontecer e o que aconteceu, eu quero ser a sua vontade, a vontade de todo mundo.
silêncio de todos.
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