segunda-feira, 26 de agosto de 2002

a banda

Ao ser perguntada qual dos dois vocais era o melhor, a mãe respondeu, O da menina, sem sombra de dúvidas, o da menina.

No show, tocavam todas as músicas, com a luz sempre focada no vocal da frente, dele. Todos os outros integrantes ficavam na penumbra. Apenas nos solos, ou introduções, ou viradas, era permitido uma valorização do resto da banda. Em algumas músicas, havia a participação do vocal dela. Quando toda a platéia vibrava ainda mais. A voz dela era doce, delicada, pequenina, o que contrastava com a do guitarrista, que era louca, esganiçada.

Gostei do show e acho que todo mundo gostou, disse a menina após. Todos os integrantes da banda estavam empolgados. Era o primeiro da turnê do novo cd. A primeira onde o guitarrista permitia que houvesse a participação de outros integrantes na produção e na mixagem do disco. Além de terem gravado uma música de autoria da menina.

O primeiro acorde da música soou. Vamos tocar uma das novas, falou a menina ao microfone, e foi prontamente respondida pela platéia que lotava o ginásio. Ela deu um pequeno sorriso. A música era dela. Tudo isso é para gente, ela se perguntou. A música aumentava o tom e a platéia acompanhava. O refrão foi logo repetido. Ela pulava, toda banda pulava, o solo, o pequeno solo da guitarra, no canto do palco, o refrão novamente, a canção sobe, atinge o clímax, permanece, mantém-se, continua, perde força, diminui, diminui e fecha. A menina, então, rege a platéia só com o refrão. Ela sobe, eles sobem, ela desce, eles estão juntos, ela encurta, eles acompanham.

Acho que devemos cortar aquela música, aquela sua música, diz o guitarrista, atrás do palco, já no camarim, onde todos estavam com cervejas nas mãos e cigarros entre os dedos. A menina tirava os brincos, com o cigarro na boca e tentou perguntar, O que, os outros integrantes também pararam de conversar e olharam para ele curiosos. A música desvirtua a nossa banda, ele argumenta, Como assim, pergunta um do fundo, com o pescoço de uma garrafa, no meio da palma da mão. O guitarrista encosta-se a uma mesa, abre uma garrafa, Nossa banda não pode ter este tipo de música bonitinha, o vocal é muito delicado, não tem nada a ver com o que a gente faz. Todos se sentem constrangidos. A música era boa, todos sabiam. Todos sabiam.

No ensaio, ele se atrasa. Começam a tocar sem ele. A primeira música é a dela. A banda está certinha, nada falta, nada está fora do lugar. Percebem que o solo é desnecessário. Toda a banda está empolgada. Ela tenta alguns truques no vocal, arrisca-se na guitarra, o refrão contagia a todos que cantam junto. A música termina e ele chega, Vejo que começaram sem mim, Só aquecimento, diz um, E o que vocês tocavam, pergunta ele, Nada, diz outro, Apenas aquela música, diz ela, Ah, fala ele, Vamos então continuar, Você não quer tentar tocar a música, não, pergunta ela, Não acho necessário, Mas, ela é boa, você sabe disso, Ela não é boa para a gente, ele diz com ar de desprezo. Nós tocamos todas as suas músicas, ela diz, Algumas são horríveis, diz um no fundo, Quais são horríveis, me digam, ele inquire. Silêncio. Eles não achavam que existia uma música da banda que fosse horrível, pois ele, apesar da aparente intransigência, era bastante criterioso. O mesmo aplicava-se a toda banda. Apenas achavam que havia canções piores que a da menina. Ele pendurou a guitarra, Vamos, passou a palheta pelas cordas, afinou, No três, e começaram a tocar juntos.

Antes de subirem no palco, com o guitarrista na frente, os outros integrantes aproximaram-se da menina e disseram que estariam com ela de qualquer maneira, caso ela desejasse. Ela sorriu.

Ele na frente do palco, com uma guitarra, ela do seu lado esquerdo, com outra de apoio, atrás dele a bateria, e do seu lado direito, o baixo. Ele marca, Um, dois, três, todos começam a tocar e a platéia responde da maneira usual. Ela toca para a banda, meio de costas para o público. A primeira música com participação dela no vocal transforma a platéia em coro. Havia uma sintonia fina entre a brutalidade do vocal dele e a forma delicada dela de cantar, quase como uma conversa. Ela se vira para os fãs, abre os braços, fecha os olhos, a luz acompanha toda a evolução. Ele canta de lado para o microfone, fixado nela, naquela menina pequena, de pele bastante clara, de cabelos curtos e negros, de olhos necessariamente azuis, Ela é linda, ele pensa. Acaba a música. A platéia pede pela música dela. Ela cora um pouco e se afasta do microfone. Ele toca o primeiro acorde. Ela sorri e fala para todos, A música é nova, dá uma pausa, sorri novamente, Eu fico, ficamos surpresos em saber que vocês já conhecem a música, e canta o refrão, primeiro à capela, depois com toda a banda.

Os dois, ele e ela, vão para o escritório encontrar o empresário. A música dela deve ser a de trabalho, sentencia o homem atrás da mesa. Ela fica quieta, para segurar o sorriso de satisfação, ele se mexe na cadeira, um pouco incomodado.

Entram num bar, do tipo pub, que há ali perto. Sentam no canto mais escuro e pedem uma cerveja para cada. Sempre te achei linda, atira ele. Você sabe, você sabe que eu sempre te achei linda. Silêncio. No show, no nosso último show, percebi que você é uma das meninas mais lindas que já vi e conheci. Ela toma mais um gole de cerveja, um pouco envergonhada. O que você quer comigo, ela pergunta. Ele encosta-se à poltrona, com os olhos fixos nela, pega a cerveja pelo gargalo, leva à boca, sem mover nada mais, segura a garrafa próxima ao peito, e a coloca na mesa novamente. Eu quero você, como nunca quis nada mais. Beijam-se.

Eu trouxe umas novas coisas, diz ela com um grande sorriso no ensaio. Deixe-me ver, diz um e outro às suas maneiras. O que é isso, ele levanta a voz e arranca as folhas das mãos dos dois. O que é isso, repete com intenção de demonstrar alguma coisa errada. É algo que eu escrevi, ela fala de maneira gentil. Ontem eu peguei o violão e tentei musicá-las, vê se você gosta, Não, eu acho que você não entendeu, ele grita na direção dela. Aquela sua música foi a única exceção que eu abri para você, ela começa a chorar, Essa banda não tocará mais músicas suas, nem de ninguém mais, apenas minhas composições. Ela tenta limpar o rosto entre soluços. Então, diz ela fungando, fique com sua banda e com todas as suas composições somente para você. Os músicos saem logo depois dela do estúdio.

Hoje: Ela montou, junto com a irmã, uma outra banda onde a maioria das composições é dela. Os outros músicos tocaram, e tocam de vez em quando, com as duas. Ele segue carreira solo. Contrata os músicos para gravarem os seus discos e excursionarem. Somente.

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